Recensão: A sociedade industrial e o seu futuro – O Manifesto do Unabomber

A genialidade que descambou na loucura

por Maria Afonso Peixoto // Setembro 19, 2023


Categoria: Cultura

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Título

A sociedade industrial e o seu futuro

Autor

THEODORE KACZYNSKI (tradução: João Franco e Álvaro Fernandes)

Editora

Libertária (Fevereiro de 2022)

Cotação

15/20

Recensão

Um prodígio da matemática, com um Q.I. de 167, Theodore Kaczynski – mais conhecido como Unabomber –, parecia enquadrar-se na definição de génio, com um futuro promissor, até à primeira metade da sua vida. Contudo, o “génio” transformou-se em “louco” e num terrorista condenado. Depois de obter um doutoramento em Matemática e de, com apenas 25 anos, tornar-se professor na Universidade da Califórnia, em Berkeley, Kaczynski decidiu demitir-se no final dos anos de 1960 e mudou-se para uma cabana no Estado de Montana, adoptando um estilo de vida primitivo, sobrevivendo como agricultor, caçador e recolector.

Foi também nesse período que, em nome dos seus ideais revolucionários e contra o progresso tecnológico, começou a enviar bombas por correio entre 1978 e 1995, que mataram três pessoas e feriram outras tantas – os alvos dos seus ataques eram sobretudo companhias aéreas, faculdades e empresas. Em 1996, prometeu pôr um fim aos seus atentados se o New York Times e Washington Post publicassem o seu manifesto, A sociedade industrial e o seu futuro – condição que os dois jornais norte-americanos aceitaram.  

Após a publicação do texto pelos jornais, Kaczynski foi finalmente identificado pelas autoridades e detido, em Abril de 1996. Foi na prisão que passou os seus últimos dias e onde faleceu em Junho deste ano, com 81 anos. A sua história deu origem a filmes, documentários e séries, tendo o mais recente sido o filme Ted K, de 2021. 

A sociedade industrial e o seu futuro é, fundamentalmente, um manifesto “anti-tecnologia”. Para Kaczynski, a Revolução Industrial levou a uma cisão entre os cidadãos e a Natureza, transformando o estilo da vida da população de um modo que atenta contra a sua essência. O autor argumenta que os males provocados pelo progresso tecnológico não superam os seus eventuais benefícios, e que, mesmo com todos os desafios que enfrentava, o homem primitivo estava melhor do que o homem moderno. 

Na parte inicial do livro, Kacznyski teoriza que os seres humanos têm uma necessidade intrínseca de “empoderamento”, que é satisfeita através da conquista de objectivos por via do seu esforço. Contudo, defende, uma vez que na actual sociedade industrial e tecnológica, todas as pulsões mais primárias do Homem são supridas sem que ele tenha de empreender grandes esforços, o resultado é um sentimento de frustração e impotência.

Como forma de colmatar o vazio e a ausência de sentido na vida pela impossibilidade de assegurar a sua subsistência pelas próprias mãos, o Homem dedica-se a “actividades de substituição” – que incluem todos os trabalhos nos sectores secundário e terciário, ascensão na hierarquia social, estatuto, ciência e tecnologia. Porém, para o autor, estes ofícios nunca preenchem verdadeiramente a necessidade de empoderamento da sociedade.

Kaczynski considera que a única forma de erradicar os danos colaterais do progresso tecnológico é por meio de uma revolução. Nesse sentido, afirma que qualquer tentativa de reforma ou de “remendo” é inútil e não surtirá qualquer efeito; apenas um corte radical e a abolição da tecnologia poderá salvar o mundo da escravidão e de uma distopia de calibre similar à de Admirável Mundo Novo. A este respeito, é irredutível: a liberdade e tecnologia são irreconciliáveis (pág. 77).

Curiosamente, o “esquerdismo” moderno é um dos principais alvos da sua crítica, atribuindo ao movimento uma série de características que considera perniciosas e até mesmo impeditivas da revolução que pretende levar a cabo. Por “esquerdista”, o autor entende, em traços gerais, aquele que simpatiza com as ideologias do “feminismo, dos direitos dos homossexuais, das minorias étnicas, dos animais e politicamente correcto” (pág. 138). 

Kaczynski acusa estes esquerdistas de tendências totalitárias e colectivistas, e de um tom moralista, sentimentos de inferioridade, e uma vontade de poder reprimida e frustrada, que os impele ao seu activismo prepotente, hostil, e a queixumes fúteis e constantes.

Sobre a modernidade, o autor também denuncia uma abundância de direitos “no papel”, mas que, na realidade, não são tão “importantes” para o cidadão comum quanto possam parecer. Um dos exemplos que dá é o da liberdade de imprensa:

“(…) a liberdade de imprensa de pouco serve ao cidadão comum enquanto indivíduo. Os mass media estão na sua maioria sob controlo de grandes organizações, integradas no sistema. Quem tiver algum dinheiro pode mandar imprimir o que quiser, ou ainda distribuir conteúdos na Internet ou qualquer coisa que o valha, mas o que tiver a dizer será submerso pelo vasto volume de material publicado pelos mass media, não surtindo qualquer efeito prático. Abalar a sociedade com palavras é, por conseguinte, quase impossível para a maioria dos indivíduos e pequenos grupos.” (pág. 61) 

“Excessos” à parte, nomeadamente o ímpeto revolucionário e a apologia da violência, Kaczynski avança ideias válidas, alicerçadas em argumentos sólidos, factuais e coerentes. A sua preocupação com a ameaça de uma tecnocracia em que uma ínfima minoria de burocratas “invisíveis” consideram as massas inúteis e descartáveis – e decidem, sem escrutínio, o seu destino –, utilizando-as apenas como peças bem oleadas de uma engrenagem por si montada não só é plausível, como parece cada vez mais real. 

De facto, com a crescente concentração de poderes, possibilitada pela inovação tecnológica, torna-se difícil discordar de Kaczynski quando afirma que “a restrição da liberdade é inevitável na sociedade industrial” (pág. 69).

Nenhum dos cenários que o autor vislumbra para o futuro da sociedade tecnologicamente evoluída é risonho, mas entre as suas previsões, estas farão o topo das mais negras: 

“(…) uma vez que o trabalho humano já não será necessário, as massas serão supérfluas, um fardo sem utilidade para o sistema. Se a elite for impiedosa pode simplesmente decidir-se pelo seu extermínio. Caso tenham uma réstia de humanidade poderão usar de propaganda ou outras técnicas, biológicas ou psicológicas, para reduzir a taxa de natalidade até as massas se extinguirem, deixando o mundo para a elite”.

Certo é que, atendendo aos acontecimentos dos últimos anos, o que Kaczynski, que morreu em Junho passado num prisão da Carolina do Norte, vaticinou não parece assim tão descabido. Por isso, a respeito deste revolucionário, à pergunta “louco ou génio à frente do seu tempo?”, a resposta terá de ser, infelizmente: um pouco dos dois!

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