ARQUITECTURA DOS SENTIDOS

Lobo rouco, lobo louco

brown and blue wallpaper

por Mariana Santos Martins // Setembro 20, 2023


Categoria: Opinião

minuto/s restantes

Os mantras entoam-se no horizonte, como uivos de lobo, e pouco mais nos sobra que agarrar o cestinho e continuar no caminho de cabeça baixa (não te desvies do caminho), segurar o corpo a tremer e manter o medo da floresta longe de nós (não te desvies do caminho).

Quase todas as verdades que importam estão guardadas em histórias de crianças. Quase tudo o resto está construído em cima disso, com a diferença que uma criança ainda consegue levitar e um adulto é demasiado pesado para o fazer (demasiadas bolas de ferro nos tornozelos).

Gray Timber Wolf

Era uma vez.

(_Estava na floresta um lobo a uivar, por trás duma giesta eu pus-me a
escutar…_)

Na História Interminável, um lobo negro é convocado pelo Nada para lhe permitir engolir a terra da Fantasia, obliterando a sua existência contra os esforços de uma criança guerreira e uma criança leitora (e
durante anos eu tremia com a perspectiva de que o Lobo e o Nada estariam escondidos no piso de cima de casa, pois se o piso era escuro e como um nada, até eu chegar lá acima e acender a luz, certamente viveriam lá, esperando matreiramente para me devorar).

No Capuchinho Vermelho, o lobo trapaceia até conseguir comer a avozinha e se travestir no seu pijama, de forma a ouvir melhor, a ver melhor e com a boca tão grande comer a indefesa menina.

Nos Três Porquinhos, o lobo bufa a sua raiva contra as frágeis casas dos três irmãos, esfomeado, raivoso e determinado.

No Pedro e o Lobo já vemos que, na verdade, o lobo é mais um instrumento, faz parte da composição, e com todos os outros sons conseguimos chegar a uma história, que acaba como tem sempre de terminar. Com um pato que talvez morra, e caçadores que talvez apareçam, pululantes, a terminar a opressão num grande estrondo.

As histórias de crianças têm lá tudo ou quase tudo. Deixam os avisos que importam e condensam tudo em frasco de doce de conserva. Com princípio, meio e fim.

A diferença é que, porventura, no frasco de doce o fim da opressão é um estrondo rápido e definitivo. Mas depois do Big Bang a geleia espalhou-se a alta velocidade em todas as direcções e nós não conseguimos ver o açúcar concentrado numa partícula compreensível. Apreensível.

Por mais que almejemos pelo troar dos caçadores que nos vêm salvar, o mais seguro que devemos contar, é que o fugirmos do lobo ainda só acabou de começar.

Mariana Santos Martins é arquitecta


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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