James Crawford, escritor e investigador

‘Agora, as fronteiras servem para impedir a entrada de certas pessoas e para a divisão entre ricos e pobres’

por Maria Afonso Peixoto // Setembro 23, 2023


Categoria: Entrevista P1

minuto/s restantes

Fronteiras e “muros”: se o mundo precisa de mais ou de menos é uma questão polémica e fracturante. Há quem defenda um reforço das fronteiras a nível global, e quem gostasse que as linhas que dividem as nações fossem mais permeáveis. Escritor, locutor e agente literário escocês, James Crawford investigou os arquivos arqueológicos e arquitectónicos durante mais de uma década e está entre os que acreditam ser possível um Mundo onde as fronteiras dividem menos e agregam mais. Através de dados históricos, viagens, e até Mitologia, este escocês procurou entender como começaram e evoluíram, até aos dias de hoje, as dinâmicas em torno das fronteiras. O resultado foi o livro O poder das fronteiras, recentemente editado em Portugal pela Saída de Emergência, e que foi o foco de uma conversa com o PÁGINA UM.


Em O poder das fronteiras, explica que foi uma semana específica de 2018 que despertou em si a vontade de compreender a origem das fronteiras e a forma como moldam o nosso Mundo. Quando decidiu escrever este livro, o que tinha em mente?

Foi o tipo de sensação que se tem quando a pressão acumulada sobre alguma coisa se começa a intensificar. Claramente, existem problemas em torno das fronteiras, e sempre existiram, mas pareciam estar a tornar-se cada vez mais sérios. E eu tinha esta questão: serão as fronteiras um sintoma? Toda a tensão, conflitos e pressão em redor das linhas fronteiriças, seriam um sintoma de outras questões, ou, até certo ponto, seriam as próprias fronteiras que estavam a causar estes problemas?  A forma como operam já não resulta… Foi essa questão que eu me propus a responder. Esse sentimento, de que falo no início do livro, essa semana em que eu via, em todo o lado, notícias sobre a fronteira dos Estados Unidos com o México, ou o conflito israelo-palestiniano, ou as Coreias do Sul e do Norte; e depois, o então primeiro-ministro do meu país a dizer: “fizemos um acordo que vai acabar, de vez, com a livre circulação”, como se isso fosse uma coisa boa. Senti que o Mundo tinha enlouquecido, o meu país tinha enlouquecido.

Não percebeu os motivos dessa alegria…

Perguntei: que é que estava a acontecer? Então, tudo aquilo me colocou numa missão, digamos assim… Eu acho que as pessoas não entendem realmente de onde vêm as fronteiras. Qual é a sua origem. Onde começaram. Como mudaram ao longo do tempo. E como estão a funcionar actualmente. E será que as fronteiras conseguem realmente subsistir no Mundo Moderno? Há tantas situações, e não apenas com fronteiras, mas com outros assuntos, em que estabelecemos uma maneira de fazer as coisas, e depois o Mundo muda e essa maneira deixa de funcionar. Mas agarramo-nos a isso, porque é o que conhecemos; e eu acho que as fronteiras são um dos exemplos mais extremos disso. Foram criadas para resolver um problema específico, que foi uma guerra religiosa em meados do século XVII. Mas não funcionam quando lidamos com fenómenos como a globalização, a Internet, as alterações climáticas e a migração em massa, porque são problemas diferentes. Então, o livro é sobre tentar entender se as fronteiras, como operam actualmente, serão sustentáveis. E se não forem, o que podemos fazer?

Para falar no presente e no futuro, recua até à fronteira mais antiga que se conhece: a Mesopotâmia…

Falar sobre essa primeira fronteira, este pedaço de um pilar que marcou aquilo que temos a certeza de que foi uma fronteira; vê-la e retirá-la do armazém do Museu Britânico e tê-la à minha frente… Não era muito grande, e estava cheia de inscrições. Pela tradução, alguns sugerem que o que está lá escrito foi a primeira tentativa de fazer História. Antes disso, tudo acontecia num eterno presente; não se tentava juntar uma sequência de eventos, que é como reconstruímos a História. Esta fronteira “explicava” porque é que lá estava. Nessa primeira tentativa de escrever História, temos o primeiro registo de sempre do uso da frase “Terra de Ninguém”. Tocar naquele objecto com os meus dedos, e pensar no facto de ter sido escrito 4500 anos antes de eu lhe ter tocado, e saber o impacto que essa frase teve no Mundo ao longo do tempo, sobretudo no início do século XX, com a Primeira Guerra Mundial… E a forma como a Primeira Guerra Mundial foi quase como uma guerra fronteiriça, em que se criaram estas duas longas linhas, que vão desde o Mar do Norte até à fronteira da Suíça, nos Alpes, e enviaram pessoas através dessa linha para lutarem umas contra as outras; é tão grotesco. Mas o facto de haver uma conexão entre esse pilar fronteiriço, que eu toquei, que é de 2400 a.C., e a Primeira Guerra Mundial, foi realmente chocante.

Visualização da “primeira” fronteira do mundo no Museu Britânico

Fez várias viagens para escrever este livro. Que descoberta ou momento destacaria?

Ir para West Bank, e ficar no Walled Off Hotel, do artista Banksy, mesmo ao pé do muro da Cisjordânia, foi uma experiência muito estranha. O hotel é ao mesmo tempo uma piada e uma provocação, e uma forma de arte de protesto, mas também é muito real para as pessoas que vivem lá, para os palestinianos. Eu acho que nós, no Ocidente, não conseguimos sequer imaginar como será viver ao lado de um muro de cimento de oito metros de altura, que nos separa de uma terra que sempre conhecemos. É algo tão surreal. E sei que é muito difícil, mas se tirarmos a religião e a política do West Bank, durante um segundo, o que temos é quase o futuro sombrio das fronteiras. Se as coisas correrem mal no Mundo, veremos mais destes muros a aparecer em todo o lado e, em certa medida, é o que estamos a ver. E já não se trata de dividir dois países, que foi o que as fronteiras começaram por fazer. Agora, as fronteiras servem para impedir a entrada de certas pessoas e para a divisão entre ricos e pobres. Essa parece ser a tendência; tentar conter o fluxo de migração em massa a nível global, em vez de ser uma questão entre duas nações. É sobre a circulação de pessoas, e o que se vê em Israel é um exemplo de quão extremo isso se pode tornar.

Vista da varanda do Walled Off Hotel, do famoso artista britânico Banksy, para o muro da Cisjordânia, em Belém. O hotel é conhecido por ter “a pior vista do mundo”.

Fala também na queda do Muro de Berlim, e de como esse momento fez com que alguns antecipassem um mundo com menos fronteiras, mas que não foi bem assim. Na sua opinião, o mundo ficou mais ou menos dividido, desde então?

As evidências sugerem uma maior divisão. A queda do Muro de Berlim parecia abrir a possibilidade, não de um Mundo sem fronteiras, mas de um Mundo onde o impacto das fronteiras se faria sentir menos. E nós, obviamente, vivemos isso, experienciámo-lo dentro da União Europeia, com o Acordo de Schengen. Grande parte das infraestruturas fronteiriças entre países europeus foram desmanteladas e podíamos circular com bastante liberdade; milhões e milhões de pessoas podiam circular livremente. Esta era a liberdade de movimento, que Theresa May, a antiga primeira-ministra britânica, falou em terminar, como se isso fosse algo positivo. Quando o Muro de Berlim caiu, havia apenas 12 muros fronteiriços em todo o mundo. Neste momento, há mais de 74, e há mais a serem construídos. A maioria foi construída desde o início dos anos 2000, nos últimos 20 anos. Então, apenas com base na evidência física de separação, é um aumento de seis vezes desde 1989.

Um paradoxo…

De certa forma, a fronteira que era o Muro de Berlim, que fazia parte da Cortina de Ferro, dividiu o mundo em dois, mas agora dividimos o Mundo em muitas partes diferentes. Porém, sem dúvida, o sentido do Norte global e do Sul global é onde estão as maiores divisões e de onde brotam as maiores tensões. Seja com a fronteira dos Estados Unidos e do México, seja o Mar Mediterrâneo, como esta espécie de fronteira marítima que as pessoas estão sempre a tentar atravessar, e todos os problemas que tivemos com barcos de migrantes. Depois, vemos coisas como o Governo britânico a tentar enviar refugiados para Ruanda, a terceirizar uma fronteira a 643 quilómetros a sul do Reino Unido. Todas estas tendências, na minha opinião, são uma última tentativa de nos agarrarmos a uma forma antiga de fazer as coisas.

Não está muito optimista…

E diria que há duas maneiras de ver isto: uma optimista, que é interpretar como um estágio de negação que se tem sempre antes de as coisas mudarem, e quase forçam mais, porque se trata de simbolismo… E acho que muitos dos muros que construímos, seja o muro de Donald Trump no México, ou o movimento “parem os barcos” na Inglaterra, ou os muros que estão a ser construídos entre a Grécia e a Turquia, ou entre a Polónia e a Bielorrússia… Sabemos que estes muros não são, na verdade, muito eficazes a impedir que as pessoas circulem. São construídos para apelar aos eleitores, para que os partidos de direita, em particular, pareçam fortes. Por isso, tornam-se um símbolo, mesmo que sejam ineficazes enquanto políticas.

No seu entender, foi o que aconteceu com o Brexit?

Acho que foi uma espécie de olhar nostálgico para o passado, um dos aspectos que espoletou o Brexit, no meu país: uma sensação de tentar recuperar a grandeza do Império Britânico, virando as costas à Europa. E obviamente falhou redondamente. Podemos ver economicamente o que aconteceu ao meu país desde então, mas também podemos ver o poder de uma fronteira através disso. As fronteiras permitiram o desenvolvimento das nações. Antes de haver fronteiras, a palavra “nação” não existia. Não pensávamos em identidade nacional, porque as fronteiras não eram desenhadas tão duramente como foram depois de meados do século XVII. E agora há quase a sensação de que as próprias fronteiras são a fonte do nosso nacionalismo, por isso definimo-nos em oposição a outras pessoas. E acho que foi isso que aconteceu no Reino Unido, definirmo-nos em oposição à Europa. Podemos ver que na América há uma política isolacionista que define a posição americana em relação aos outros países, que tenta virar as costas para o mundo e ter essa política de “América Primeiro”. Mas com o impacte das alterações climáticas, a pressão que vai ser colocada nas fronteiras será tão extrema, que penso que vamos ser confrontados com a realidade de mudar a forma como funcionam.

Então, que modelo imagina para o funcionamento das fronteiras? Um modelo mais cooperativo, ou um mundo sem fronteiras?

Eu não acredito que alguma vez possa haver um Mundo sem fronteiras. Logisticamente, seria muito complicado. Mas já tivemos conflitos por causa de fronteiras, vimos isso a acontecer. Aconteceu na Europa, e lidámos com isso de uma forma, de certo modo, que o mundo nunca viu. Sempre que alguém fala dos problemas com as fronteiras, as pessoas dizem: “não é possível um mundo sem fronteiras, é utópico e louco”. E sem dúvida que não é o que eu defendo. Se recuarmos, como eu tentei fazer no livro, e desconstruirmos o que é uma fronteira, vemos que, no final de contas, cada fronteira é uma história. É uma história que contamos. Nenhuma fronteira política alguma vez existiu de forma natural, e nunca existirá. Quando se ergue uma fronteira política, trata-se de uma história. E quem é que a está a contar? É contada por algum motivo em particular. Mas também é possível contar uma versão diferente da história, e é aí que reside a questão: estas histórias não são eternas. As fronteiras, que criamos, sugerindo que nunca se movem, não é verdade, porque movem-se o tempo inteiro. No livro dou exemplos. Um dos mais reveladores é a dos Estados Unidos com o México, que estava num lugar completamente diferente até há 200 anos. Cerca de 805 quilómetros quadrados do que é agora os Estados Unidos era México até o ano de 1848. Portanto, a ideia de que as fronteiras actuais são uma estrutura fixa e eterna, é obviamente ridícula.

No livro fala também no conceito de nicho climático humano, como a única verdadeira fronteira que existe para a Humanidade…

É a ideia de que cada espécie na Terra tem um nicho climático, e um dos exemplos mais óbvios é a “linha de árvores”, em que acima de uma determinada altura numa montanha, uma árvore não cresce porque a temperatura é demasiado baixa. Há um matemático ecologista com quem falei sobre isto, que investigou sobre se haverá ou não um nicho climático humano. Ou seja, se as condições sob as quais os humanos tenderam a prosperar, e as áreas do planeta onde têm vivido, estão dentro deste nicho climático. E ele descobriu que sim, muito claramente, e que os seres humanos sempre tenderam a viver em lugares com temperaturas entre 11 e os 15 graus centígrados. E cerca de 95 a 97% de toda a população global vive dentro desse nicho, mas com o impacte das mudanças climáticas, esse nicho vai mudar nos próximos 50 anos mais do que mudou nos últimos 6.000 anos. E se mudar como foi projectado, com as estimativas para o aumentar das temperaturas do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, em vez de ser 97% da Humanidade a viver nesse nicho, será apenas 70 ou 75%. Portanto, cerca de 25% da população mundial viverá em sítios com temperaturas mais elevadas do que se costumava viver. E estamos a falar de dois mil milhões de pessoas. Portanto, a questão é, se dois mil milhões de pessoas viverem em regiões sem condições, o que irão fazer? Presumivelmente, deslocar-se-ão, e isso colocará uma pressão sem precedentes nas fronteiras.

As bordas de um glaciar no vale de Ötztal, no Tirol, nos Alpes austríacos, na fronteira entre Áustria e Itália (Áustria à esquerda, Itália à direita)

Acredita que as alterações climáticas terão um impacte assim tão significativo, que obrigue a redefinir as fronteiras?

Temos de reflectir sobre a gestão de um fluxo de pessoas por causa das alterações climáticas. Obviamente, neste Verão, com as ondas de calor, as secas e os incêndios florestais no Sul da Europa e na América do Norte, acho que as pessoas estão a perceber quão severos podem ser os impactes das alterações climáticas. E isso faz com que as fronteiras, como estão actualmente, se tornem insustentáveis. Vemos que as outras espécies, sejam plantas ou animais, estão a deslocar-se. Mas as pessoas não. É como se tivéssemos desistido da liberdade de movimento que as outras espécies têm; e isso vai tornar-se cada vez mais um problema. Então, é nisso que temos de trabalhar em cooperação. E uma das coisas que o matemático ecologista me disse é que, na verdade, existem linhas fronteiriças na Natureza, que se chamam ecótonos. Por exemplo, quando se passa da savana para o deserto, ou para uma floresta tropical. Esses ecótonos são os lugares onde se encontra a maior biodiversidade, porque muitas coisas se juntam. E, portanto, a forma como uma fronteira funciona na Natureza é exactamente o oposto das fronteiras que criámos, que é um corte abrupto entre os dois lados. Na Natureza, é um lugar de troca, comunidade e agregação. E se pudéssemos repensar as fronteiras dessa forma, acho que seria uma transformação de como o Mundo funciona. E já há exemplos disso.

Numa moto de neve, no lago gelado que forma a fronteira entre a Suécia e a Finlândia

A Grande Muralha Verde, em África, de que fala no final do livro, é um desses exemplos?

Sim, esta ideia de criar uma espécie de mosaico na paisagem, de um extremo de África até ao outro, ao longo do Sahel, em parte para combater as alterações climáticas. Plantaram-se árvores, ajudou-se a agricultura, criou-se uma agrofloresta… É um muro que foi concebido para aproximar as pessoas, em vez de as afastar. Portanto, há exemplos, não é apenas um desejo utópico, e acho que esse é o ideal para o qual devíamos apontar. Mas precisamos de dialogar, e o perigo actual é que estamos simplesmente a virar costas aos problemas e a construir muros, mesmo sabendo não ser essa a solução. É uma medida de curto prazo, em grande parte para conseguir votos e para que certos partidos políticos se mantenham no poder.

Seria possível que se construíssem mais Grandes Muralhas Verdes? Para si, é uma expressão positiva que os muros, geralmente com uma conotação negativa, podem ter?

Sim, eu falei com uma das responsáveis pelo projecto, que trabalha na Grande Muralha Verde para as Nações Unidas, e ela disse que adoraria vê-las em todo o lado. E eu perguntei-lhe se conseguia imaginar uma na fronteira dos Estados Unidos com o México, e ela respondeu que não podia comentar esse assunto [risos]. Mas é um exemplo perfeito. O Sahel é um território que se tem degradado muito com as alterações climáticas. Está a caminho da desertificação. E a ideia de tentar fazer deste lugar um sítio de intercâmbio e comunidade, em vez de um lugar de confronto e oposição… Não há nada que nos impeça de fazer o mesmo, a não ser as narrativas políticas que contamos. E acho que é isso que é tão interessante sobre o que precisamos de fazer, e os paralelos com as alterações climáticas são exactamente os mesmos. Temos a tecnologia e o conhecimento necessários para mudar os nossos comportamentos. A questão é: podemos mudar a forma como nos comportamos? Não é se é possível fazê-lo, mas se é possível mudar a nossa mentalidade.

Estabelece também uma metáfora entre as fronteiras e as defesas do organismo humano contra os vírus, como a covid-19. A intenção era mostrar, através de comparações, como funcionam as fronteiras?

Sim, eu comecei a escrever o livro antes da pandemia, e estava a meio quando eclodiu. Uma das histórias que conto, quando estava na Noruega, é sobre o povo Sámi, a última população indígena da Europa, e o impacto das fronteiras. Quando me vim embora da Noruega, foi o dia em que o país fechou as suas fronteiras a todos os estrangeiros, em Março de 2020 [risos]. A partir daí, o Mundo encolheu progressivamente. Eu estava a viajar por causa do livro, e a partir daí, o Mundo encolheu à minha volta. Pelo menos, eu tinha um propósito, porque estava a escrever o livro. Antes, tinha pensado em escrever sobre a possibilidade de pandemias e o que elas faziam às fronteiras. E depois, dei por mim a viver uma pandemia. Por isso é que, em vez de dedicar apenas meio capítulo ao tema, foi praticamente um capítulo inteiro. E é fascinante ver como a “tecnologia” em torno das fronteiras se desenvolveu como uma forma de controlar a propagação de doenças, desde a Peste Negra até a cólera. Antes de se implementar um passaporte, era mais importante ter documentos a comprovar que não se tinha doenças, para poder atravessar lugares. Depois, falei com biólogos sobre as fronteiras. Porque começamos a pensar no que realmente acontece quando o SARS-CoV-2 entra no nosso corpo: o vírus está a cruzar um “limiar”, é uma metáfora para uma fronteira. E é tão interessante ouvir um virologista falar sobre o que acontece, porque, na verdade, o problema está, particularmente com a primeira onda, na reacção exagerada do corpo ao vírus. E como o corpo, os diferentes órgãos, reagem exageradamente a esta espécie de “invasão”, começam a autodestruir-se. Parece uma metáfora certeira! Tantos destes problemas são espoletados pelo medo, ao tentar ser-se forte nas fronteiras. E é esse stress constante e sentido de se estar sob ataque, que leva a um colapso. Então, parecia que havia paralelos realmente fortes entre a covid-19 e o que estava a acontecer, em geral, a nível geopolítico.

Faz quase uma visão “panorâmica” de diferentes tipos de fronteiras [risos].

Sim, acho que o livro foi sobre tentar entender todas as diferentes dimensões de fronteiras, sejam físicas, celulares ou paisagísticas. Eu não tenho formação em Biologia. Por isso, falar com um biólogo, que estava a ser pago pelo Governo americano para entender como a covid-19 actuava, foi incrível; ter a sua visão e depois ver como as fronteiras se tornaram tão importantes durante a pandemia… Estávamos a fechar as fronteiras, mas claro que o vírus passou de qualquer maneira. Portanto, foram importantes, mas totalmente ineficazes. A única verdadeira fronteira era a nossa própria pele, as nossas células. Isso foi poderoso para mim, na altura, porque não tínhamos a certeza se o Mundo voltaria a recuperar qualquer sentido de normalidade. Todos esses factores conjugados tiveram um grande peso na experiência emocional que foi escrever o livro.

Fala também de fronteiras tecnológicas, nomeadamente a Grande Firewall da China, que mostrou ser possível colocar barreiras ao suposto Mundo livre e que seria a Internet.

A Grande Firewall é algo que considero tão trágico. O início da Internet foi sobre quebrar fronteiras, e qualquer pessoa de qualquer ponto do planeta se poder juntar.  E o facto de certos países olharem para isto e dizerem: “não, não gostamos disto, queremos ser capazes de controlar o fluxo de informação e ideias, tal como uma fronteira controla o fluxo de pessoas”… É tão contraditório e totalmente contra o propósito para o qual a Internet foi criada. E é um sintoma da febre de fronteiras que se desenvolveu, mas, além disso, não funciona. As coisas passam, há sempre lacunas, sabemos que os “muros” não resultam. Todas as evidências nos mostram isso. Sempre que se ergue um muro, e a história comprova-o, em algum momento cairá. Não há nenhum muro que tenha durado desde o momento em que foi criado até agora. Eles desaparecem, deslocam-se, alteram-se. E tal como agora estamos a debruçar-nos sobre as alterações climáticas, e com a forma como lidamos com as emissões de carbono; há tanto dinheiro investido na indústria fóssil, tantos interesses instalados, que é difícil ultrapassar isso. E acho que é semelhante ao que acontece com as fronteiras. É um apego, mas acho que é aquele último apego antes da mudança. É isso que eu espero. E temos de ter esperança, porque caso contrário, caímos em desespero. Mas há exemplos, não é que não existam. E foi por isso que escrevi o livro, para contar estas histórias e transmiti-las ao maior número de pessoas possível. O meu livro não é um manifesto, não dou um plano de acção sobre como mudar as fronteiras, mas espero que no final da leitura, se entenda porque é que não estão a funcionar, porque estão a quebrar, e o que temos de fazer para nos adaptarmos e, espero eu, mudarmos para melhor.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.