CARTAS DE AMOR
Agora em Setembro de 2023
Com uma caloraça que ninguém entende
Todas as uvas já vindimadas
As azeitonas maduras nos ramos
E seja o que Deus quiser,
Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores
CLARA PINTO CORREIA continua a trazer-nos, em directo de ESTREMOZ
UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO
Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira
“O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano
Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,
in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)
Estamos nas Urgências do Hospital de Évora, onde uma jovem noviça solitária contempla, enlevada, a imagem quase sacra de serenidade que emana do rosto inconsciente de Maria Alice. E acrescente-se, desde já, que não é só esta noviça quem tem os olhos presos naquela doce visão. Quem quer que esteja na Sala de Espera das Urgências do Hospital de Évora pode olhar para Maria Alice todo o tempo que quiser, com toda a atenção que sentir, e seja por que razões for. Os bombeiros encostaram a maca à parede, registaram a entrada e os sintomas da bonequinha[1], bateram no ombro do Bruno à despedida, e o Chefe até lhe disse “bon courage”. E depois, cumprida a sua missão, foram salvar vidas para outro lado[2]. Maria Alice está de pulseira vermelha, mas isso parece não impressionar minimamente a burocracia que rege as Urgências. A sua respiração começou a ficar de tal forma entrecortada que Bruno teve que salvá-la duas vezes por boca-a-boca. Como neste momento já toda a gente viu demasiada televisão, os restantes doentes ali aquartelados à espera de vez, partem do princípio de que estão a ser figurantes inadvertidos de um reality show de hospitais, pelo que observam as manobras todas em silêncio, tentando apenas compor mentalmente o protesto com que aproveitarão para espernear contra a destruição do Serviço Nacional de Saúde quando aparecerem as câmaras, os microfones, os megafones, as marcas de take, e a miúda gira, muito mamalhuda, que costuma apresentar aquelas coisas. Mas, por muito que o tempo passe, a verdade é que nunca aparece ninguém.
Quem finalmente parece ter registado a ocorrência, saindo da porta de um dos gabinetes mais ao fundo do corredor, é uma jovem médica que parece estar antes a sair de um sonho, de longos cabelos quase negros e muito lisos, lindíssima e cansadíssima, que indica com o queixo aos auxiliares de serviço qual é a maca que deve entrar pela sua porta, confirma se Bruno é mesmo o companheiro da paciente[3], depois do que o segura pelo cotovelo e o conduz, também ele, para dentro do gabinete. Este é um espaço minúsculo, que fica imediatamente sobrelotado[4]. Uma das duas meninas que ali estão a estagiar corre a fechar a porta à chave, enquanto a outra consulta o relógio e indica à médica de sonho que são duas e trinta e cinco da manhã.
A médica insere vários dados no seu PC.
“Bruno,” diz-lhe ela, carinhosamente. “Nada é disto é fácil, seja para quem for. No entanto, já percebi que o Bruno é um homem muito corajoso e sólido como um rochedo, portanto, por favor, ajude-nos a fazer tudo bem. Não teremos muito mais do que quinze minutos para registarmos a certidão de óbito da sua companheira.”
Certidão de óbito.
Agora é Bruno quem gagueja, treme, e se desfaz em suores frios. A estagiária mais roliça, muito bronzeada e com o cabelo cheio de tererés, com todo o ar de quem acaba de chegar de umas merecidas férias na Meia Praia, abraça-o por trás para lhe dar coragem. Sendo verdade que há alturas para tudo, Bruno nem sequer equaciona a possibilidade de engatá-la assim que a ocasião se proporcione[5].
“Mas ó doutora… A certidão de óbito… Isso não é só quando a pessoa morre?”
“A sua companheira morreu ali no corredor, Bruno.”
“Mas ó doutora… Não pode ser… Uma rosa brava que não tem medo de nada e vende saúde… Doutora, por favor… a Maria Alice morreu de quê?”
A médica linda nem hesita. As estagiárias confirmam tudo acenando com a cabeça. Nenhuma delas está, sequer, a protestar. Estão todas, apenas, completamente esgotadas. Esgotadas de não dormirem, esgotadas de não conseguirem sequer ir a casa, esgotadas de tentarem tudo o que está ao seu alcance para salvar as pessoas numa guerra de nervos em que a grande tendência é para perderem batalha atrás de batalha. Ontem foi um puto de catorze anos com uma fractura exposta do fémur que já estava demasiado infectada para retaliar. Hoje é Maria Alice, que no entanto vendia saúde. Amanhã não sabem quem será nem como, mas já sabem que voltará a ser um destes desastres, que são completamente demolidores porque era muito fácil evitá-los.
“Doutora… por favor, ao menos explique-me o que foi que aconteceu. A Maria Alice… ela morreu de quê?”
“A Maria Alice morreu de estar demasiado tempo à espera, Bruno. Deixaram-na morrer, se quer que eu seja franca. Não há enfermarias, não há quartos, não há camas, as pessoas estão a fazer cirurgias com anestesia local deitadas em macas logo ali na Urgência, portanto sabe o que é que eu acho?”
As duas estagiariazinhas frescas e mimosas perfilam-se por trás da cadeira da médica, trocam um sorriso entre si, depois do que ambas sorriem ao Bruno, e a seguir dizem, muito bem coordenadas,
“A doutora Mafalda acha que a administração faz os possíveis para que todos os dias morra gente que está de pulseira vermelha na sala de espera, porque assim sempre se ganha mais espaço e se dispõe de mais equipamento.”
Bruno sente-se a única pessoa normal num mundo de doidos.
Foi exactamente isto o que aconteceu à outra Alice, a princezinha britânica do País das Maravilhas, a partir do momento em que caiu no buraco do coelho. É interessante verificarmos que um gajo espadaúdo das bifanas como o Bruno partilha aqui este mesmo sentimento, porque, em geral, quem está sempre a sentir-se a única pessoa normal num mundo de doidos são as mulheres, sobretudo quando ainda não conseguiram contar a outra mulher o que foi que lhes aconteceu. Os homens tendem antes a andar para aí a empatar o trânsito, a ocupar o espaço, e a gastar o Oxigénio, porque estão sempre a sentir-se como autênticos monarcas destronados. Sendo assim, a comparação que melhor se lhes aplica é com o que aconteceu ao Hamlet.
Mas, neste momento, um homem como o Bruno até já está a começar a ver o sorriso perverso do Gato de Cheschire.
“Mas a doutora, desculpe, eu não sei –[6] mas não podia mesmo ter ido tratar dela ao corredor?”
Mafalda encolhe os ombros, e sorri um sorriso triste.
“Olhe Bruno, e para que conste: ainda na semana passada fomos as três expulsas do corredor porque tentávamos fazer isso mesmo diante de toda a gente. Não há vontade política, entende? Não há vontade política para nada que não seja deixar morrer as pessoas e depois passar-lhes uma certidão de óbito toda maravilhosamente floreada. Compreende bem o que eu estou a tentar dizer-lhe? É que eu, neste momento, e por esta causa, até já estou disposta a dar a cara.”
“Ó filha,” pensa o cérebro rápido de Bruno, pelo meio do terrível desgosto que vai no seu coração. “Eu cá, se tivesse uma carinha laroca como a tua, estava sempre disposto a dá-la que era um gosto.”
Mafalda continua a sua explanação[7].
“É que teria sido muito fácil desinfectar a ferida e dar-lhe uma transfusão de sangue para irmos ganhando tempo, mas nós…”
Roda os braços elegantes para mostrar a Bruno o equipamento velho, o pó sobre todos os papéis, a caliça a desfazer-se nas paredes, o som do caruncho na madeira – [8]e, finalmente, conclui,
“… nós já quase não conseguimos atender ninguém. Fazemos turnos de dezoito horas, mas só recebemos metade do ordenado, porque sabe como é, não há nenhuma alocação planeada das verbas, não há nenhuma distribuição generalizada de custos e ganhos, não há… olhe, muitas vezes não há sangue, e nestes últimos dias nem sequer houve morfina. A sorte da sua companheira foi estar inconsciente, senão teria morrido com dores horríveis. Não chore, Bruno. Por favor, não chore. Eu vou consigo ao gabinete da Servilusa, para ter a certeza de que eles lhe oferecem condições verdadeiramente camaradas. Ai, Bruno, um homem tão bonito, com tantos músculos, tantas tatuagens, esse piercing que lhe fica a matar… Ande lá, homem, dê cá a mão e venha comigo.”
“Vou consigo o caraças, doutora, que a doutora é muito simpática e tal, mas o que eu mais quero é que a sua Servilusa vá morrer longe.”
O cérebro de Bruno parece registar, por fim, que há realmente naquelas Urgências muita miúda gira à espera de ser engatada[9]. Ao mesmo tempo, dá também alguns sinais inquietantes de depreender que, pelo menos em teoria, a Doutora Mafalda recebe uma comissãozita da Servilusa por cada defunto que lhe passa para as mãos. E, talvez pior ainda, nota ele logo a seguir –[10] como é possível que uma agência funerária opere dentro do espaço físico de um hospital? Mas enfim, a pessoa não precisa de ter lido O CAPITAL com imensa atenção para saber que estes são os benefícios da Economia de Mercado[11] para com as Grandes Multinacionais. E, à semelhança de todos os outros portugueses, o nosso herói das bifanas já viu o exemplo da corrupção e do desvio de fundos manifestar-se vindo de cima vezes demais para ainda conseguir indignar-se. É portanto quase com apatia que, em vez de ir à Servilusa, aproveita o tempo que lhe resta para continuar a escutar a Doutora. Que se lixe, para todos os efeitos a miúda é realmente bonita, além de que é boa como o milho, dentro daquela aparência muito enganosa de tábua de engomar que tanto o entusiasmava em Maria Alice.
Três dias mais tarde, os sinos da Igreja de São Francisco dobram a Finados durante toda a manhã. O céu muito cinzento parece prometer chuva[12]. A cidade enlutada comparece em peso à missa de corpo presente da mulher de António José, enquanto o viúvo emborca copos atrás de copos das traçadinhas que o Crispim que lhe vai preparando, e jura que tudo aquilo é um castigo de Deus pela sua longa negligência matrimonial durante os vinte anos do período canadiano do casalinho que foi para o Québec cheio de sonhos e ilusões – “e passa aí mais outra traçadinha, ó Pacaças.”
António José e Crispim Raposo[13] fizeram juntos uma comissão de serviço em Angola durante o período da limpeza das minas antipessoais, o que lhes proporcionou da mais fortuita das formas[14] o prestígio quase inacreditável, que nem sequer era à época oficialmente não documentável[15] de terem ambos apertado a mão à Lady Di poucos dias antes da morte trágica da Princesa do Povo[16]. Cimentaram assim, na vida da tropa, uma daquelas amizades para toda a vida que os homens só conseguem fazer se estiverem mesmo com um camuflado vestido, pelos verdadeiros motivos que levaram à invenção dos camuflados. Nessa altura, aquele borracho de fazer parar o trânsito, que agora faz antes ginjinhas e compotas na encosta Sul da Serra d’Ossa[17], ganhou a glória dúbia deste seu petit nom[18] por ter conseguido fazer uma manada enorme de pacaças sair-lhes do caminho com um simples “xó-xó-xó-grandes-galinhas”, por sinal em tom bastante amaricado[19]. Agora, ao acorrer a Estremoz com quatro grades de garrafas de litro de ginjinha, Crispim Raposo pensa apenas que vem confortar o amigo pela perda, que ele próprio sente de forma quase insuportável, da mulher mais linda, e com mais talento para rebolar no feno, de todo o Alto Alentejo[20].
Bruno senta-se em silêncio ao lado de António José, para poder ampará-lo caso ele perca o equilíbrio. Crispim senta-se do outro lado do viúvo, não vá ele precisar de pedir mais traçadinhas ao Pacaças
Há certos momentos que são demasiado tristes para as suas próprias descrições.
No entanto, a visita de Crispim Raposo acaba por provocar à multidão enlutada de Estremoz uma tragicomédia ao melhor estilo gilvicentino revisitado, que não foi iniciativa sua, nem do Bruno, nem do viúvo, mas que se manifesta com tamanha contundência que faz rir o próprio prior, até então tão combalido como todos os ademais presentes[21].
Este espectáculo é proporcionado pela Prima Rikita, ali presente a título de nova namorada atitrée do Crispim Raposo[22]. Rikita é uma autêntica princesa de conto de fadas, de feições extremamente finas, com a pele muito branca, e com os olhos muito azuis por baixo das suas belas pestanas encaracoladas. É magra e flexível como um junco, de cabelo muito comprido e costas muito direitas, com todo o ar de quem jamais conseguiria dormir com uma ervilha escondida debaixo de vinte colchões[23]. Esta menina já fez cinquenta anos, mas ninguém lhe daria mais de vinte e cinco. É advogada, e a esse título funcionária das Dívidas ao Estado em Lisboa, mas raramente lá vai porque habitualmente está de baixa do psiquiatra[24]. Deve-se esta situação ao facto de possuir um temperamento sem planícies nem calmarias, só com grandes montanhas, fossas abissais oceânicas, embates de meteoritos, e a explosão ocasional de um ou outro vulcão que já há muito que se considerava extinto, geralmente provocada por ciúmes desabridos, a bem dizer patológicos. Há quem diga que a culpa desta instabilidade é dela, porque nunca toma os medicamentos como os médicos lhe indicam, além de que se enfrasca, literalmente, nos seus preferidos – [25] e aqui entraria uma longa lista de party drugs, crystal meths, anfetaminas para cavalos de corrida, e ainda todos os tipos de opióides acessíveis nas nossas Farmácias[26], ingeridos de um só trago com a ajuda da maravilhosa traçadinha de ginjinha e medronho que faz os velhotes estalarem com a língua[27]. Também há quem diga que a culpa é do psiquiatra, positivamente enfatuado[28] com aquela beleza irreal, que a faz andar drogada o mais que pode para que ela nunca consiga deixar de lá voltar. Mas, não sendo nós a coluna dos mexericos, nada disto nos interessa.
Interessa-nos é que ninguém naquele funeral conhecera previamente a prima deslumbrante, nem ninguém tinha ainda ouvido o Crispim Raposo repetir a sua frase preferida do momento, “e cheguei eu aos sessenta anos para ter que aturar isto.” Assim sendo, torna-se-nos evidente que nenhum dos presentes conseguiria prever fenómenos como os que ocorreram nesse dia ainda dentro da própria igreja, e que ficaram para sempre guardados no imaginário local[29].
No final da missa, Crispim Raposo vem segurar por alguns minutos a mão de Maria Alice, contemplando em sincera consternação o seu rosto, tranquilo, que irradia singular beleza[30]. Quando a namorada o surpreende nestes preparos, perde por completo a paciência para tanto passado[31], e arma-lhe uma espantosa cena de ciúmes perante Estremoz em peso, mais todas as visitas lacrimosas vindas de perto e de longe. Atira-se-lhe à cara com as suas temíveis unhas de gel. Esgatanha-o todo. Tira os seus sapatos de salto-agulha para conseguir furar-lhe os olhos. Como devora as séries que passam nos inúmeros canais da FOX TV, o vocabulário sai-lhe por acréscimo: you cocksucker, you bastard, you motherfucker, eat shit and die you Infamous Green Great Hulk[32], e outros anglicismos que tais amplamente popularizados pela TVCabo. E assim acaba o funeral de Maria Alice, com o povo de Estremoz entretanto entregue a considerações apaixonadas sobre o ataque da Branca de Neve ao Green Great Hulk. Atrás da multidão fica apenas, aguardando ainda a carreta, o fétero com os despojos mortais da defunta[33]. Esta, coitada, ainda agora morreu; mas, perante a fúria de Rikita que segue o seu curso no átrio, já começou a ficar um pouco esquecida. O que aliás é normal, porque começar rapidamente a cair no esquecimento é o destino costumeiro de todos os defuntos[34].
Seguem-se semanas de grande silêncio.
Incapaz de aceitar que agora, de repente, ninguém lhe ligue nenhuma nem o leve a passear à trela pelas zonas mais concorridas da cidade, Júnior rói todas as roupas elegantes, sapatos de verdadeira classe, e lingeries delicadas da dona que apanha a jeito. Josefa passa horas esquecidas na cozinha, a digerir em silêncio, com digno sofrimento, a certeza que já nunca meterá ao bolso aquelas tão antecipadas vinte mil mocas que quase conseguiu arrancar à Menina com a sua chantagem. António José, diagnosticado com uma depressão profunda logo ali no Centro de Saúde, recusa-se a sair de casa, pede ajuda ao Pacaças, e fica para antes o dia inteiro a encharcar-se em traçadinhas, porque é absolutamente contra tomar comprimidos[35].
Entretanto, Bruno anda quase sempre desaparecido.
Concluída e assinada a certidão de óbito no gabinetezinho esconso do Hospital de Évora, a Doutora Mafalda passara-lhe para a mão um cartão de visita.
“Olhe, Bruno,” dissera ela em voz calma, pausada, francamente hipnótica. “Eu por acaso não costumo ser assim tão leviana, sabe, mas já não aguento mais, não aguento mesmo. Estão aí todos os meus contactos. Assim que puder, e se vier a propósito, passe-os à Comunicação Social. Eles que vão ter comigo à Glória, e eu conto-lhes das boas sobre o estado impraticável do nosso Serviço Nacional de Saúde nos tempos que correm. As minhas estagiárias também podem contar mais histórias. E, no fim, se o Bruno estiver cansado, pode ficar a dormir em minha casa.”
A Aldeia da Glória.
Bruno sabe muito bem do que se trata.
Foi na Glória que vários actores das novelas e sobreviventes de reality shows compraram as suas casas e restauraram os seus montes. Alguns só lá vão de férias, mas outros optaram por viver mesmo lá, reencontrando a paz e o equilíbrio emocional com a generosidade da Natureza e a intervenção de coaches, yoggis, mestres de Reiki, treinadores de Artes Marciais, malucos, crianças, e pessoas de Coimbra. Ou seja, o gajo das bifanas, que lá por ter feito duas Comissões de Serviço na República Centro-Africana não deixou nunca de ser o jovem moço romântico[36] que se escapulia com a jovem Maria Alice para juntos fazerem o amor[37] no HOTEL ALENTEJANO de outros tempos, acaba de descobrir que a Doutora Mafalda vive no Olimpo.
E acaba de convidá-lo para ficar uns dias em sua casa.
“Fique o tempo que quiser,” acrescenta ela. “O que aquela casa tem de especial, além de um casal de rafeiros alentejanos, são umas janelas enormes e um espaço que nunca mais acaba. Vá, vamos a isto para que a Maria Alice não tenha morrido em vão. Vamos arrastar esta porcaria toda à nossa frente e criar um hospital novo.”
Claro que nada disto acontece. Enfim, consta que será construído um novo hospital na periferia de Évora, libertando o excesso de doentes e outros aflitos que acorrem àquela construção vetusta situada em pleno centro da cidade. No entanto, também consta que esse hospital se destinaria antes a permitir o encerramento do já existente, que entretanto será transformado num hotel, transacção que até já se encontra fechada. Respondem os mais timoratos que uma coisa não impede a outra, porque o hospital a construir será muito maior e claro, muito menos vetusto. A verdade é que ninguém sabe nada ao certo.
O que sabemos de ciência segura é que, de facto, e tanto quanto o gajo das bifanas vem ao caso, Maria Alice não morre em vão. Com a sua morte ali mesmo nas Urgências, e perante a revolta da Doutora Mafalda, Bruno recebe a benesse de meter temporariamente as suas gémeas[38], ainda de férias, a trabalhar na das bifanas[39], para ir ele passar algumas temporadas extremamente interessantes na Glória[40], onde é agora chamado a consertar ou remodelar as Harleys dos actores[41]. Ao mesmo tempo, digamos que a tensão sexual nascente logo ali no Hospital não se limitou à Doutora Mafalda, e, num fim de semana particularmente inspirado, às suas duas jovens estagiárias: inevitavelmente, Bruno começa também a ser chamado, com alguma frequência e sob todo o tipo de pretextos, a socorrer a libido de toda a gente de libido meio náufraga que por ali anda. E é precisamente nesse desvairado e ardente sexo sem amor que, depois da morte de Maria Alice, o nosso herói local afoga todo o seu enorme desgosto[42].
Passadas algumas semanas farta-se de frivolidades e regressa às bifanas.
Aqui as opiniões dividem-se.
Ou este regresso ocorre porque Bruno se fartou realmente, ou ocorre antes porque, mesmo não estando em Estremoz, conseguiu detectar o rumor segundo o qual a sua brasileira se encontrava em vias de ficar novamente grávida de quatro meses e meio, se é que não estava já nesse estado interessante.
Dirão os levianos: e então, ele não ficava muito melhor servido com a bela[43] Mafalda?
A resposta que a experiência nos ensina é muito simples: e então, e as filhas? O homem tatuou o nome de cada uma delas em cada um dos braços. Se porventura aparecem miúdas nas Bifanas que já estão a cair de bêbedas antes da meia noite, porque é Carnaval ou por qualquer outra desculpa assim[44], e lhe pedem ainda mais uns copos seja do que for, ele manda-as sair dali, indignado. Contra o facto “mas serviram-nos vodka no não-sei-quê”, ele usa sempre o argumento “tenho duas filhas lindas lá em casa e não quero vê-las no estado em que vocês estão.” O nosso Bruno é tão homem de família como qualquer outro, e, desse ponto de vista, está bastante satisfeito com a sua instalação. Note-se que ainda nunca ninguém saiu em defesa da dama, mas convém acrescentar que a sua brasileira, por muito que carregue excessivamente no bâton vermelho-memória-Azteca dos lábios e na tinta preta-asa-de-corvo do cabelo, qualifica acima da média da amostragem local generalizada. Larguem o osso. Acabou-se a conversa.
Servem todos estes episódios para demonstrar como, no País Profundo, e preferencialmente longe das garras da Servilusa, um verdadeiro velório, seguido de um verdadeiro funeral, ainda são verdadeiras funções sociais, tão dignas de glamour e pitoresco como qualquer outra. É um daqueles momentos em que as pessoas vão ao cabeleireiro e estreiam roupa nova. Representa, por assim dizer, um tempo e um espaço tão apropriados como qualquer outro para se fazerem publicamente uns belos de uns oitos com pernas de noves[45], como aqueles que toda a gente testemunhou aquando do acidente que envolveu o imponente Raposo e a sua belíssima namorada ciumenta que poderia ter sentido uma ervilha debaixo de vinte colchões[46]. Depois, e como em todas as outras funções sociais, estando a festividade concluída, e estando os participantes de consciência tranquila porque sabem que perdurarão sempre algumas histórias a seu respeito que os anos se encarregarão de empolar, é forçoso que a vida continue até ao ritual seguinte.
Recorde-se que é necessário, desde já, preparar tudo para assegurar uma festa rija no São Mateus.
A vizinha dali da porta do lado até já foi a Elvas desenhar as sobrancelhas com aquele laser que há agora.
Dizem as más-línguas que quem foi feito numa carroça de feno há de ficar com palha na roupa para a vida inteira[47], pelo que esta operação das sobrancelhas não surtiu qualquer efeito, pelo menos para melhor. Mas nada disso nos interessa. Só prova que as pessoas são más, como toda a gente já sabia.
Às vezes alguém passa pela rua das laranjeiras, recorda a horta e a beldade seminua no chuveiro, e, por um instante, interroga-se,
“Que será agora da menina Alicinha, que era tão boa moça?”
A PRINCESA E A ERVILHA
Conto tradicional de origem perdida nas brumas do tempo
Era uma vez uma Princesa que foi passear sozinha e se perdeu completamente na floresta. Andou, andou, andou, mas nunca encontrou vivalma – só o sopro do vento no arvoredo, subidas a pique e descidas íngremes, rios secos cheios de lama, o uivo dos lobos à distância, o grunhido dos ursos bastante mais perto, e, por toda a parte, o grasnar trocista dos patos e dos gansos, debaixo de um céu de chumbo que por vezes se desfazia em farrapos de chuva. E foi depois de tudo isto, já completamente esfarrapada, descalça, e cheia de medo, que avistou ao longe um castelo bem alumiado. Foi lá bater à porta, e explicou à Rainha que veio ao postigo que era uma Princesa de um reino contíguo, que viera passear sozinha pela floresta e acabara por perder-se. A Rainha contemplou-a de alto a baixo, esfrangalhada e descabelada, e meritória do grau de Princesa apenas pelas suas mãos muito bem tratadas, pelas suas maneiras muito finas, e pela sua forma muito requintada de falar. Na dúvida, decidiu usar um truque para verificar se aquela criança assustada era ou não quem dizia ser: enquanto os seus lacaios serviam à pobre menina esfomeada toda a sorte de iguarias deliciosas, foi preparar-lhe um quarto de dormir onde colocou vinte colchões por cima da cama. E, por baixo desses vinte colchões, sem que ninguém suspeitasse de nada, colocou uma ervilha.
Nessa noite a jovem Princesa bem tentou dormir, mas foi-lhe impossível.
Na manhã seguinte pediu à Rainha que lhe perdoasse aquelas olheiras tão fundas e aquele seu ar estremunhado: foi que, explicou ela, alguma coisa enorme, por baixo dos colchões, rolava de um lado para o outro, impedindo a chegada de Morfeu.
Então a Rainha ficou muito feliz, abraçou-a com ternura, e tratou-a como sua filha. Sabia perfeitamente que só uma autêntica Princesa tem a pele suficientemente delicada para sentir uma ervilha por baixo de vinte colchões.
Leia também o Episódio 1, o Episódio 2, o Episódio 3, o Episódio 4, o Episódio 5, o Episódio 6, o Episódio 7, o Episódio 8, o Episódio 9 e o Episódio 10 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia.
[1] Bruno deu por eles a usarem este nome quando se referiam a ela, na altura em que tiravam a maca da ambulância. Não foi aos cornos de ninguém para não atrasar ainda mais o internamento. Escalonamento de prioridades também aprendido nas suas duas comissões de serviço na República Centro-Africana.
[2] Não esquecer que ainda há que entregar o gatinho ao vizinho anónimo que se chegou à frente para o criar.
[3] Ao contrário dos populares do episódio anterior, que continuavam a dizer “doente” como sempre se disse, quem está a falar agora é uma médica. Por isso mesmo, com toda a devida compostura, utiliza-se antes o termo “paciente”.
[4] Senão, vejamos: a maca com Maria Alice, Bruno, a Médica Linda e as Duas Estagiárias Roliças. São cinco pessoas e uma maca num espaço previsto só para dois utentes.
[5] Aliás, é evidente que nem precisaria de engatá-la. A miúda já está a abraçá-lo, caraças. Ai é “para lhe dar coragem”? Ó filha. Vai mas é para a bicha, como toda a gente.
[6] Ai ai. Olha que belo travessão.
[7] Ora nem mais, e em homenagem à nossa defunta Maria Alice: ex-pla-na-ção.
[8] Ena pá. Outro travessão perfeitamente justificado.
[9] Este registo confere com a experiência pessoal.
[10] Isto está bom, está. A culpa de tanto travessão é toda do Bruno. Até parece um fungo que, em vida, infectou todos os homens que mais se aproximaram de Maria Alice.
[11] Ou, como dizem os americanos, que nestas coisas são muito mais dados do que nós a ir directo ao assunto, “o Capitalismo.”
[12] Mas isto é o Alentejo, pelo que nunca choverá que chegue, nem na altura certa, nem sequer na forma certa – no outro dia apanhámos aqui com uma saraivada brutal de granizo que deitou imensas azeitonas ao chão. O aquecimento global complica ainda mais um equilíbrio que já era extremamente precário, devido, entre outros factores, às grandes Campanhas do Trigo do Doutor Salazar. End of speech. E desculpem o travessão.
[13] O tal Crispim Raposo do cerejal na encosta Sul da Serra d’Ossa! Um gajo rico, e francamente de cair para o lado, ainda por cima! Estão a ver como o homem voltou a atacar?
[14] Tão fortuita, de facto, que a maior parte dos seus conterrâneos não acredita neles.
[15] Vejam bem, ainda nem existia o hábito popularizado do smartphone, as autoridades eram rígidas, e portanto, ainda por cima não há nem uma foto. Vocês acreditavam neles, se estivessem tranquilamente sentados numa das inúmeras esplanadas de Estremoz? Eu não sei, não.
[16] A Di comia o Raposo com os olhos. A logística da situação provou, no entanto, ser absolutamente impossível. Os dirigentes da Operação Limpeza das Minas eram generais escandinavos representantes da União Europeia.
[17] Tudo bem, confesso, sei lá se faz compotas. Agora ginjinhas… acho que nunca vi o Crispim Raposo sem uma garrafa de ginjinha na mão, e sem acabar sempre por dizer qualquer coisa relativa às suas cerejas. Mas esta imagem pode não ser mais que um mero erro estatístico, dado que, infelizmente, não vi o Crispim Raposo assim tantas vezes como isso. Ah, mas o que já vi é que já ninguém me tira.
[18] A pacaça é um búfalo angolano de pelagem parda, enorme, pesado, enfim – bruto como cornos e feio como a noite dos trovões. O travessão embelezou bastante a frase.
[19] Amaricado de propósito, evidentemente. Ou, pelo menos, foi o que o Crispim Raposo disse aos camaradas do jipe.
[20] Mas não virá só fazer isso, como o tom misterioso da frase nos indica.
[21] Ademais, malta. Em homenagem à Maria Alice.
[22] De quem é prima, ao certo, não sabemos. Francamente, é assunto de conversa que não interessa a ninguém.
[23] Referência ao conto tradicional A PRINCESA E A ERVILHA. Caixa de texto adicionada em serviço dos ignorantes nestas matérias, que, como todos sabemos, vão sendo cada vez mais.
[24] Ou, pelo menos, a situação verdadeira é mais ou menos esta. E a danada da miúda é mesmo, mesmo, mesmo muito bonita. Utente dedicada de dezenas de cremes, perfumes, e outros segredos femininos guardados com incrível zelo. Capaz de reconhecer o aroma da mulher que passa por ela numa fracção de segundo e sempre sem erro. Eu até me arrepiei toda quando a conheci, lhe dei um beijinho, e a primeira coisa que ela me disse foi “L’IMPÉRATRICE”. Um verdadeiro talento desperdiçado.
[25] Não. Nunca. Está decidido, muito bem pensado, seriamente jurado. A Autora nunca mais na puta da vida voltará a usar um único travessão que seja.
[26] Concerteza, concerteza, podemos defender a rapariga recordando que também é verdade que a pessoa tem que experimentar um pouco de tudo para não morrer estúpida.
[27] Crispim Raposo adora esta notazinha de rodapé. “E os velhotes até estalam com a língua”; “havias de ver como os velhotes dão estalos com a língua” – “se lá fores vais ver que, nas tascas…”. Etc.
[28] ENFATUADO! Belo e redondo vocábulo. Favor não confundir com ENFADADO, que é o oposto preciso do primeiro termo.
[29] Pronto, vá: não só de Estremoz e Elvas e aldeias pelo meio incluindo a Orada, mas também de todo o “triângulo verde” Portalegre – Marvão – Castelo de Vide.
[30] Nem mais. “Irradia singular beleza.” Isto é um folhetim, malta.
[31] As outras mulheres não estavam mortas, mas sim, é verdade: como não tem grande coisa para fazer, Crispim Raposo fez para si próprio um grande passado dentro do género “mulheres”.
[32] Foi importante Rikita frisar que o Hulk a que se referia era o verde, uma vez que também existe um Hulk cinzento.
[33] “Os despojos mortais da defunta,” ainda por cima “no fétero”. Não é horrível?
[34] “Adelino Amaro da Costa? Sei lá quem foi o Adelino Amaro da Costa! E aliás, como é que eu havia de saber”
[35] Mais tarde fará um programa de desintoxicação, onde começarão a florir os seus novos amores com uma das enfermeiras de serviço. Mas esse é, também, ainda um outro folhetim.
[36] “Moço romântico” era o que ele dizia, evidentemente.
[37] Idem.
[38] Não, a brasileira não fez batota. As miúdas, que mal se distinguem uma da outra, são a cara chapada do pai. Cheguem essa intrigalhada para lá.
[39] “A das bifanas”: a esplanada das bifanas. “Meter lá as suas gémeas”: passar às meninas, que querem fazer o curso de gestão no Politécnico de Beja, a responsabilidade pelos bons frutos do estabelecimento.
[40] Pelo menos parecem interessantes. Sobretudo de início.
[41] Cela va sans dire, não é? Claro que um naco de carne como o Bruno gosta de consertar motos, sobretudo se forem Harleys. Tal como gosta de dar seguimento a algumas fantasias sexuais. Mas só algumas, por favor.
[42] Isto é também o que ele diz, evidentemente.
[43] Vá, “e rica”. Pelo menos, supõe-se que mais rica do que a brasileira que já estava grávida de quatro meses e meio e era de gémeas.
[44] Nomeadamente o já mencionado não-haver-nada-para-fazer. Para uma miúda, sobretudo, é bastante mais simples estar bêbeda do que estar grávida. E o que não falta aí é quem lhes venda fiado.
[45] OITOS COM PERNAS DE NOVES! Alguém poderia exigir uma expressão regional melhor do que esta?
[46] A sério que não conhecem o conto tradicional da Princesa e da Ervilha? Inacreditável. Ao que nós chegámos. Consulte-se, sendo assim, o resumo apresentado na CAIXA DE TEXTO.
[47] Expressão regional de outras paragens, mas que assenta aqui que nem uma luva.