Centro hospitalar do Porto já não faz concurso público para alimentação há pelo menos três anos

Ajuste directo: Hospital de Santo António avia 11 contratos trimestrais sucessivos à mesma empresa

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Há investigações que se iniciam puxando por um fio e dali vai saindo um tal novelo de coisas malcheirosas, mesmo se de comida, ainda mais de comida para contribuir para a recuperação de doentes, que às tantas se quer parar. Este é o caso de hoje. O PÁGINA UM começou por querer salientar um contrato por ajuste directo do Centro Hospitalar Universitário de Santo António (CHUSA), que foi divulgado na sexta-feira passada no Portal Base. E depois descobriu que, afinal, não havia outro. Havia mais 10. São ajustes directos que duram há quase três anos. Em roda livre. Mas vamos por partes.

O dito contrato, para fornecimento de alimentação, foi celebrado entre o CHUSA e a empresa ITAU – Instituto Técnico de Alimentação Humana S. A., no valor de 752.839,10 euros. É montante elevado, mas aquilo que ressaltava era o argumento para a sua celebração: urgência. Ou melhor dizendo, usava-se uma habitual excepção – que se está a tornar regra para quem deseja contornar os concursos públicos do Código de Contratação Pública: “na medida do estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante, não possam ser cumpridos os prazos inerentes aos demais procedimentos, e desde que as circunstâncias invocadas não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”.

Como não há fumo sem fogo, ficou a saber-se que afinal este contrato de Julho até era o terceiro deste ano, sendo todos trimestrais, e todos acima dos 700 mil euros.

De acordo com o Portal Base, no dia 11 de Janeiro fora assinado o primeiro contrato trimestral por ajuste directo entre o CHUSA e a ITAU por 705.907,12 euros, e seguiu-se outro nos últimos dias de Maio, ao preço de 732.924,95 euros.

O PÁGINA UM contactou o CHUSA que, através da assessoria de imprensa, garantiu que “os ajustes diretos mencionados encontram-se conforme a Lei, seguindo as orientações do Tribunal de Contas sobre esta matéria, atenta a natureza imprescindível e contínua da necessidade da prestação de serviços de alimentação”, reiterando que “o recurso a este mecanismo é legal e adequado e decorrerá enquanto se aguarda a conclusão da tramitação” de um concurso público internacional – que não se conseguiu encontrar no Portal Base. A mesma fonte diz que “este concurso aguarda autorização de compromisso plurianual da Direção Geral do Orçamento, motivo pelo qual ainda não ter iniciado a sua execução”. Em suma, aparentemente, é o Ministério das Finanças que estará a servir de justificação para sucessivos ajustes directos.

No entanto, o PÁGINA UM quis saber qual o motivo para a escolha da empresa ITAU, em concreto, para o primeiro ajuste directo de 2023, para o segundo ajuste directo de 2023 e para o terceiro ajuste directo de 2023. A explicação veio, curta: “a escolha da entidade [ITAU] prende-se com o facto de ser a atual prestadora de serviços, dada a complexidade da prestação de serviço.”

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E aqui surgem os escolhos de uma investigação jornalística. Antes de 2023, não se conseguia encontrar no Portal Base qualquer sinal de um contrato anterior para fornecimento alimentar entre o CHUSA e a ITAU. O motivo é simples: o CHUSA só tem existência formal desde o início deste ano, pela fusão do Centro Hospitalar Universitário do Porto (CHUP) e do Hospital de Magalhães Lemos. Fusão feita, mudança de número fiscal (NIF).

Ou seja, pela dimensão, ter-se-ia de encontrar contratos de alimentação anteriores a 2023 através do NIF do CHUP e não do CHUSA (que não existia em 2022). E é aqui que se confirma as informações da assessoria de imprensa do CHUSA: a empresa ITAU já era, efectivamente, fornecedora do Hospital de Santo António antes de 2023.

Mas…

Mas eis que afinal se descobre que a relação entre a ITAU e o Hospital de Santo António – a principal unidade de saúde do CHUSA – é de facto, antiga… mas sempre baseada em contratos por ajuste directo. Sempre. No último triénio, trimestre após trimestre.

Segundo mais uma vez o Portal Base – uma plataforma de contratos públicos que prescinde de confirmação da sua veracidade, porque são documentos factuais –, em 2021 e em 2022 a ITAU e o então Hospital de Santo António, via CHUP, estabeleceu oito contratos por ajuste directo para fornecimento alimentar, todos acima de 600 mil euros. O montante total dos contratos celebrados no ano passado atingiu os 2,6 milhões de euros, enquanto em 2021 ultrapassaram os 2,4 milhões de euros. O incremento de preço é muito significativo: entre 2021 e 2023 aumentaram cerca de 17%.

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Contas feitas, os 11 contratos sucessivos por ajuste directo entre a ITAU e o Hospital de Santo António (integrando a partir de 2023 o Hospital Magalhães de Lemos no novo CHUSA) já superaram os 7,1 milhões de euros. Sem concorrência, de mão-beijada e aos preços que mais convier à administração e à empresa.

Mas as relações de contratos de mão-beijada entre a ITAU e o CHUSA nem são casos raros. Numa rápida pesquisa pelo Portal Base, o PÁGINA UM detectou vários contratos milionários por ajuste directo entre aquela empresa de fornecimento alimentar e grandes centros hospitalares do Serviço Nacional de Saúde.

Por exemplo, em Março passado, o Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte (CHULN) – que integra o Hospital de Santa Maria – entregou por ajuste directo à ITAU um contrato de 4,16 milhões de euros por apenas oito meses (de Fevereiro a Setembro), invocando o mesmo argumento do hospital nortenho: urgência. 

Também em Julho de 2020, por similar motivo, a empresa do sector da restauração conseguiu outro chorudo ajuste directo, desta vez com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, para refeições confeccionadas no valor de 3,5 milhões de euros durante cinco meses.

Por quase 2 milhões de euros, em Janeiro do ano passado, a mesma empresa sacou um contrato por ajuste directo por 30 dias de fornecimento alimentar do Hospital Garcia da Orta, em Almada. Este contrato foi escondido pela administração hospitalar alegando, ilegalmente, o Regulamento Geral de Protecção de Dados. Em Junho de 2022, houve porém uma adenda contratual, e o custo subiu para os 2,1 milhões de euros. O aumento do preço (6,5%) foi justificado, de acordo com o contrato, “pela Pandemia da doença COVID-19 e pela crise global na energia [que] sofreu um agravamento exponencial devido aos efeitos resultantes da guerra na Ucrânia, resultando em aumentos abruptos das matérias-primas, dos materiais e da mão-de-obra”.

Mas em Fevereiro desse mesmo ano, o Hospital Garcia da Orta ainda assinou novo contrato por ajuste directo com a ITAU, por 365 dias, mas com um valor de 1.745.150 euros, paradoxalmente um montante inferior àquele que se destinou para 30 dias. Mais estranho ainda é que, ao contrário desse contrato de Janeiro, a administração hospitalar não invocou o RGPD e colocou o contrato integral no Portal Base, embora sem caderno de encargos.

E como não há duas sem três, o Hospital Garcia da Orta ainda assinou mais um contrato no início de 2023 para suprir necessidades urgentes de alimentação por dois meses com a mesma ITAU, e antes do prazo de execução do anterior contrato. O preço da alimentação para Janeiro e Fevereiro de 2023 foi de 410.166,59 euros, ou seja, um custo mensal de cerca de 205 mil euros. Se considerarmos o preço do contrato anterior, de 12 meses, o custo mensal foi de cerca de 145 mil euros. Um desvio de preço de mais 41% entre o contrato bimensal e o contrato anual.

Mas o contrato deste ano tem um problema ainda mais grave: dizendo respeito aos meses de Janeiro e Fevereiro, o contrato foi apenas assinado entre a administração do Hospital Garcia da Orta e a ITAU no dia 1 de Março de 2023, ou seja, quando o serviço de alimentação já estava executado. O Tribunal de Contas costuma considerar este expediente susceptível de classificar o contrato ferido de nulidade – o que pode ser a carga de trabalhos para os gestores que o assinaram, neste caso as administradoras Teresa Machado Luciano e Patrícia Ataíde.    

Por cerca de 1,45 milhões de euros – foi celebrado (nas duas acepções do termo) em Julho deste ano mais um contrato por ajuste directo com a ITAU. O adjudicante foi o Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, que precisava de mais 184 dias de comida e bebida para doentes e colaboradores sem ser por concurso público.

Mais outro para terminar: em finais de Março deste ano, foi a vez do Hospital Amadora-Sintra oferecer mais um contrato de mão-beijada à ITAU. Por causa da omnipresente urgência, a empresa de restauração sacou mais um contrato por ajuste directo, desta vez para dar de comer durante meio ano em troca de cerca de 1,32 milhões de euros. O PÁGINA UM promete aprofundar este tema, até porque a ITAU é apenas uma de várias empresas do sector alimentar que fazem pela vida: além de se candidatarem, de quando em vez, aos extenuantes e incertos concursos públicos, desenvolvem outros argumentos, menos burocráticos mas mais eficientes, em prol de um mais oleado ajuste directo….

O contrato entre a ITAU e o CHUSA que espoletou esta investigação encontra-se listado em mais um Boletim P1 da Contratação Pública e Ajustes Directos, a análise diária do PÁGINA UM aos contratos publicados no dia anterior (independentemente da data da assinatura) no Portal Base. De segunda a sexta-feira, o PÁGINA UM faz uma leitura do Portal Base para revelar os principais contratos públicos, destacando sobretudo aqueles que foram assumidos por ajuste directo.

PAV


Nos últimos três dias, de sexta-feira passada até ontem, no Portal Base foram divulgados 689 contratos públicos, com preços entre os 27,93 euros – para serviço de refeições, pelo Agrupamento de Escolas Soares Basto, através de ajuste directo – e os 7.620.302,51 euros – para fornecimento de electricidade, pelo Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, ao abrigo de acordo-quadro.

Com preço contratual acima de 500.000 euros, foram publicados 12 contratos, dos quais oito por concurso público, um por ajuste directo e três ao abrigo de acordo-quadro.

Por ajuste directo, com preço contratual superior a 100.000 euros, foram publicados nove contratos, pelas seguintes entidades adjudicantes: Centro Hospitalar Universitário de Santo António (com o Instituto Técnico de Alimentação Humana, no valor de 752.839,10 euros); Autoridade Nacional de Comunicações (com a Indra Sistemas Portugal, no valor de 476.850,00 euros); dois do Hospital de Braga (um com a Rrts Unipessoal, no valor de 191.835,00 euros, e outro com a Olympus Iberia, no valor de 165.737,73 euros); Hospital Garcia de Orta (com a Johnson & Johnson, no valor de 184.800,00 euros); Município de Arouca (com a PreZero Portugal, no valor de 178.646,89 euros); dois do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental (um com a IMI – Imagens Médicas Integradas, no valor de 176.825,00 euros, e outro com a Willis – Corretores de Seguros, no valor de 124.248,24 euros); e Instituto Português de Oncologia de Lisboa Francisco Gentil (com a Sá Limpa – Facility Services, no valor de 159.111,26 euros).


TOP 5 dos contratos públicos divulgados no período de 22 a 24 de Setembro

(todos os procedimentos)

1 Fornecimento de eletricidade em regime de mercado livre

Adjudicante: Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental

Adjudicatário:  Petrogal

Preço contratual: 7.620.302,51 euros

Tipo de procedimento: Ao abrigo de acordo-quadro (artº 259º)


2Serviços de limpeza                    

Adjudicante: Centro Hospitalar de Setúbal

Adjudicatário: Ferlimpa 2      

Preço contratual: 3.499.290,99 euros

Tipo de procedimento: Concurso limitado por prévia qualificação


3Empreitada de Parque Urbano  

Adjudicante: Lisboa Ocidental SRU – Sociedade de Reabilitação Urbana

Adjudicatário: Decoverdi – Plantas e Jardins

Preço contratual: 3.471.547,34 euros

Tipo de procedimento: Concurso público


4Fornecimento de refeições e serviço de bar para 2023-2024

Adjudicante: Instituto do Emprego e Formação Profissional          

Adjudicatário: Euroessen – Restauração e Serviços

Preço contratual: 2.648.765,89 euros

Tipo de procedimento: Concurso público


5Aquisição de serviços de controle operacional para anos 2023 a 2025

Adjudicante: Instituto de Informática

Adjudicatário: Inetum Tech Portugal

Preço contratual: 997.682,25 euros

Tipo de procedimento: Concurso público


TOP 5 dos contratos públicos por ajuste directo divulgados no período de 22 a 24 de Setembro

1 Fornecimento de alimentação a doentes e pessoal, para 3º trimestre de 2023

Adjudicante: Centro Hospitalar Universitário de Santo António

Adjudicatário: ITAU – Instituto Técnico de Alimentação Humana

Preço contratual: 752.839,10 euros


2Serviços de desenvolvimento de software        

Adjudicante: Autoridade Nacional de Comunicações         

Adjudicatário: Indra Sistemas Portugal        

Preço contratual: 476.850,00 euros


3Aquisição de serviços de manutenção para acelerador linear (Elekta)

Adjudicante: Hospital de Braga

Adjudicatário: Rrts Unipessoal         

Preço contratual: 191.835,00 euros


4Aquisição de Kit

Adjudicante: Hospital Garcia de Orta

Adjudicatário: Johnson & Johnson

Preço contratual: 184.800,00 euros


5Serviços de recolha e transporte de resíduos urbanos e limpeza urbana

Adjudicante: Município de Arouca    

Adjudicatário: PreZero Portugal       

Preço contratual: 178.646,89 euros

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