João Porfírio, de apelido Oliveira, é um matemático. Ainda mais das Matemáticas Aplicadas. E tanto se aplicou que está, há muitos anos, neste mundo dos números que são os hospitais. Está no lugar certo.
Bem sei que houve um certo engenheiro que, em tempos, nos quis fazer acreditar que as pessoas não são números, mas um hospital enche-se sempre de números, sobretudo na hora de pagar facturas com dinheiros públicos a empresas privadas. Ou nas camas em falta. Ou nos médicos e outros profissionais de saúde em falta. Os nas horas de espera nas urgências. Ou nos dias a aguardar por consulta, diagnóstico ou operação.
Ora, o nosso matemático João Porfírio sabe da poda no que diz respeito a contratos:, que mete sempre muitos números, porque há saída de fundos públicos para empresas privadas: como presidente da administração do Hospital de Braga já “despachou”, desde o início de 2022, qualquer coisa como 175.842.431,68 euros dos nossos impostos para fazer cumprir 4.162 compras.
Mas o nosso matemático João Porfírio também deverá saber, ou deveria saber, que há uns números, com aptidão burocrática – essa coisa chata mas funcional de que nos falou Max Weber –, que visam transmitir ao povo, que paga a factura, e até lhe paga os salários, quando e como ele gasta o nosso dinheiro.
Por exemplo, o nosso matemático João Porfírio deve saber que, na contratação pública, o 20 é um número fundamental: é o prazo máximo em dias úteis para se introduzir o relatório de formação de um contrato após a sua celebração ou início da sua execução no Portal Base.
Para um matemático, o 20 não é um número nada próximo de 900 nem de 1140 nem de 840 nem de 744 nem de 958 nem de 845 nem de 831 nem de 1133 nem de 851 nem de 956 nem de 926 nem de 857 nem de 733 nem de 882 nem de 810 nem de 1000 nem de 839 nem de 930 nem de 868 nem de 1127 nem de 999 nem de 763 nem de 858 nem de 875.
Esses números gordos, de três dígitos, representam o tempo, em dias, que a administração do matemático João Porfírio – leia-se, o Hospital de Braga – demorou a colocar no Portal Base diversos contratos superiores a 100 mil euros (mais um número), um total de 32 (mais um número) para ser preciso, estabelecidos entre 2020 e os primeiros meses de 2021 (até Maio) para a compra sobretudo de máscaras, luvas de nitrilo e outros equipamentos de protecção individual, bem como de zaragatoas e testes.
Só estes 32 contratos totalizaram 7.013.105 euros (mais um número). Compras, na sua generalidade, relacionadas com materiais e equipamentos para a nobre luta contra a covid-19: um regabofe de ajustes directos sem contrato reduzido a escrito e sem controlo prévio. Aliás, nos elementos colocados no Portal Base dois e três anos depois não há forma sequer de se saber quantidades compradas nem outros detalhes relevantes. Foi um gasto “para o bem”, logo pode-se gerir o dinheiro mal.
[presume-se que um matemático como o João Porfírio só aprecie ver a forma de letras em equações, fórmulas, funções, expressões algébricas e generalizações; de resto terá ele, porventura, ou má ventura nossa, comichão quando as vê em folhas com cláusulas, deveres e obrigações do adjudicante e da adjudicatória em prol do interesse público e da transparência na gestão de dinheiros dos contribuintes]
O matemático João Porfírio também não aprecia, aliás, que um jornalista se incomode, e o incomode, por ser revelado que a sua administração no Hospital de Braga publicou no Portal Base, entre os dias 1 e 13 deste mês, um total de 393 contratos todos por ajuste directo, e com um valor global de 10.933.025,57 euros. Tudo, portanto, por ajuste directo, que é a melhor forma de fazer negócios privados mas o pior quando se trata de dinheiros públicos.
O matemático João Porfírio aprecia contratos por ajuste directo, e basta olhar para os números do Hospital de Braga, e por isso se abespinha por um jornalista sugerir que um contrato por ajuste directo é uma janela que se abre à corrupção. É – ponto. Por esse motivo há regras para que não se passe pela janela, e isso consegue-se reduzindo ao mínimo o recurso ao ajuste directo. Ponto.
Vai daí – e como ainda por cima porque um jornalista tem o descaramento de revelar como se combina um ajuste directo (“pega-se no telefone ou envia-se um e-mail, e está feito”; não sei outra forma de serem preparados; talvez haja um outro método, porventura matemático –, o matemático João Porfírio também não gostou de ver tantos números numa tabela estatística compilada pelo PÁGINA UM usando dados oficiais do Portal Base com os gastos do Hospital de Braga em contratos de mão-beijada, que é mesmo disso que se trata quando se usa este procedimento como regra na gestão de dinheiros públicos – à Lagardère, como coloquei num título.
E atrevimento à Lagardère, como o do personagem do romance oitocentista de Paul Féval, não faltará, confesso, ao matemático João Porfírio. Depois das revelações do PÁGINA UM, ao invés de fazer contas à vida, e corrigir os seus procedimentos de gestor da res publica, e de um hospital onde os recursos são sempre escassos, desviou um funcionário público (porque deduzo que não tenha gastado o seu precioso tempo a escrevinhar, até porque, lá está, “ele é mais números”), para que fossem exaradas duas queixas contra mim na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) e no Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (CD-SJ).
[talvez ainda tenha seguido uma queixa para a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, porque agora passou a ser norma atacar-me pelas três frentes]
Questionou-me, aliás, se o funcionário, talvez um jurista – porque até dá doutas sugestões à ERC sobre a tipologia de “castigos” e de “abjurações” que me deveriam aplicar – não deveria antes estar a introduzir contratos no Portal Base ou a elaborar documentos preparatórios de concursos públicos, reduzindo assim a quantidade de ajustes directos do Hospital de Braga.
Por agora, neste lamentável episódio – porque as denúncias feitas pelo PÁGINA UM deveria, num país decente levar um gestor público do quilate do matemático João Porfírio a ser investigado ou a ser demitido; a envergonhar-se, e não a queixar-se –, há também um outro facto simultaneamente lamentável mas com uma nota anedótica do ponto de vista das probabilidades matemáticas.
A parte lastimável mas esperada é que a ERC e o CD-SJ foram a correr abrir-me processos sob a queixa do matemático João Porfírio, não porque apontem algum erro ou inexactidão, mas pelo estilo de escrita. Hoje, aprecia-se um jornalismo comedido, brando, compreensivo, colaborativo, um jornalismo não-jornalismo.
A parte anedótica – que até ao matemático João Porfírio causaria espanto – advém das circunstâncias do processamento da notificação da queixa: talvez na corrida para ver quem me acusava primeiro, mesmo com procedimentos distintos e recursos diferentes, os e-mails da ERC e do CD-SJ chegaram-me exactamente no mesmo dia, na mesma hora e no mesmo minuto.
A probabilidade estatística disto suceder, de forma aleatória – assumindo que não foi combinado – será, presumo, próxima do acerto no Euromilhões. Por outro lado, a probabilidade destas duas entidades não me censurarem é – visto o historial e o pântano institucional instalado, onde um jornalista que denuncia acaba por ser linchado por entidades falsamente criadas para proteger a liberdade de imprensa – é próxima de zero.
Em todo o caso, uma promessa: deixarei de escrever sobre a gestão do matemático João Porfírio, de apelido Oliveira, e de outros, quando este e os outros cumprirem com escrúpulo as regras legais e de transparência da contratação pública e não usarem a excepção do ajuste directo como se fosse a regra.
É um objectivo aparentemente utópico, até porque, ainda ontem a administração do matemático João Porfírio fez publicar no Portal Base mais, pelo menos, mais quatro mui suspeitos contratos, todos por ajuste directo. Três desses contratos são por prestação de serviços de segurança das instalações hospitalares, entregues de mão-beijada (não há outro termo) à Securitas.
O primeiro contrato foi assinado no dia 31 de Março, portanto, em vez de ser divulgado ao fim de 20 dias úteis, o matemático João Porfírio acha que quem diz 20 também pode dizer 150. Mas curiosamente a cláusula da vigência tem a particularidade de dizer que “o contrato entra em vigor na data da sua assinatura e será válido até 31 de março de 2023, sem prejuízo das obrigações acessórias que devam perdurar para além da cessação do contrato”. Ou seja, pela leitura deste contrato, aparentemente, o contrato termina no próprio dia da assinatura, embora depois a informação de registo aponte para os 90 dias. Como o matemático João Porfírio acha que, contrariando a lei não tem sequer de mostrar o caderno de encargos de um ajuste directo, temos assim um exemplar caso de um ajuste directo que se faz assim por 147.646,86 euros, argumentando “urgência”.
Aliás, da mesma ambiguidade (e atraso no prazo de publicação) sofre o segundo contrato com a Securitas assinado a 15 de Junho, mais um por ajuste directo e com o mesmo valor do anterior. Sabe-se que terminou no dia 30 de Junho mas não se sabe ao certo quando começou. Presume-se que terá sido no dia 1 de Abril, mas num contrato público não deve haver presunções. Nem sucessivos ajustes directos em prestações de serviços que podem e devem ser programados.
E que dizer então de novo contrato de prestação de serviços com a Securitas assinado pela administração do matemático João Porfírio, agora em 24 de Agosto, pelo habitual ajuste directo e preço costumeiro (147.646,86 euros)? Dizer apenas que, na verdade, nem sequer foi assinado; há contrato, é certo, mas estamos agora perante um ajuste directo sem honras sequer de redução a escrito, abusando-se de mais uma excepção legal, que escancara portas à corrupção. Não há já nada em papel. Tudo legal, mas tudo imoral. Mas, em abono da verdade, ao matemático João Porfírio que interesse têm essas futilidades (contratos escritos claros) com letras, compromissos, resultado da livre concorrência e formação adequada de preço?
Nada. Zero, que é também um número.
E, por fim, ironicamente, o quarto contrato diz respeito a mais um ajuste directo à ITAU, a empresa de fornecimento de refeições que assinou 11 contratos por ajuste directo com o Hospital de Santo António, conforme ontem o PÁGINA UM revelou. Mas no caso do contrato no valor de 645.191,67 euros (não são trocos) com o seu hospital, o matemático João Porfírio conseguiu uma impossibilidade “física”: assinou ele próprio (com a sua colega da administração Sónia Duarte) no dia 4 de Abril de 2023 um contrato que, na cláusula terceira, diz tão-só o seguinte: “O contrato entra em vigor na data da sua assinatura [portanto, 4 de Abril de 2023] e será válido até 31 de março de 2023, sem prejuízo das obrigações acessórias que devam perdurar para além da cessação do contrato“.
Já temos, portanto, contratos com duração de tempo negativo…
É este o senhor matemático que fez queixa contra mim na ERC e no CD-SJ. É este senhor matemático que continua a ser presidente do Conselho de Administração do Hospital de Braga. É este senhor matemático que vive no melhor dos mundos, neste Portugal decrépito e sem valores, porque pode tudo fazer com a maior das desfaçatezas e até, em simultâneo, fazer-se de vítima.