VISTO DE FORA

Liberais que não me compreendem

person holding camera lens

por Tiago Franco // Setembro 28, 2023


Categoria: Opinião

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Não tinha pensado voltar a este tema tão depressa, mas o Luís Gomes, meu colega aqui no Página Um, fez aquele truque habitual dos liberais quando procuram arranjar argumentos para uma discussão perdida à partida. Leu metade do que eu aqui escrevi na semana passada e deduziu a outra metade, acrescentando intenções que não eram as minhas. Pior do que isso, não percebeu que em parte até defendiamos a mesma protecção da propriedade privada. Mas também não sou eu que lhe vou dizer…

Quando o programa “Mais Habitação” foi anunciado, num daqueles PowerPoints que o Costa nos mostra, aqui e ali, para parecer que faz coisas, eu critiquei de imediato o arrendamento forçado. Disse até que, com a enormidade de propriedades que o Estado tem (nem as conseguiu ainda contar), não fazia sentido obrigar os privados a terem o papel social que competia ao Estado.

aerial view of city buildings during daytime

A única excepção, na minha opinião, e também o escrevi, eram as propriedades devolutas. Se ao fim de uma década, ou algo do género, os donos continuam a deixar as paredes no chão, então a propriedade deve passar para o Estado para que a possa recuperar  e evitar o desastre arquitectónico. Bastaria ao Luís dar uma volta pelas freguesias adjacentes da minha para ver casas abandonadas por emigrantes para perceber o que quero dizer.   

Reduz o meu raciocínio, o estimado colega, ao bondoso emigrante que contraiu empréstimo e que aluga a casa, reflectindo as subidas na renda do inquilino e ao malvado residente local, que também contraiu empréstimo mas que já é um especulador que procura lucro fácil. 

Percebo a necessidade de criar um paralelo entre bonecos para encaixar a narrativa que se segue, mas, amigo Luís, não foi isso que eu escrevi. É só ler com mais atenção.

Eu dei dois exemplos: um emigrante com crédito à habitação e um senhorio que recebeu uma herança. Não falei em residentes que vão contrair empréstimos e depois alugam nem em pessoas que investiram poupanças no imobiliário. Misturar isto tudo e dar a entender que era esse o meu argumento é logo partir com uma perna meio coxa para esta corrida.

aerial photography houses

Mas eu vou dar uma ajuda ao Luís. Só porque ainda estou com pena do que aconteceu na Madeira, e não quero liberais confusos. O Luís agora está a escrever que não é liberal porque a versão portuguesa é suave demais e, apesar de tudo, ainda não defende o “Estado Zero” em que ele se parece rever. Há que dar tempo ao Rui Rocha para ele acertar duas frases. O resto vem por acréscimo…

Se um residente contrair um empréstimo e comprar uma casa que acaba por alugar, a situação é idêntica à do emigrante, não é? A questão aqui não é onde vive o senhorio, mas sim os custos que tem com a casa. Se tem um empréstimo e sofre com as taxas de juro, é normal que não queira estar a pagar para que vivam na sua casa. Ou seja, é natural que as alucinações da Lagarde acabem na renda dos inquilinos. Viva o senhorio em Copenhaga, Maputo ou na Madragoa. Não há para mim qualquer conotação de especulação ou ganância num senhorio que tem que cobrir um empréstimo com o aluguer da casa.

Podíamos discutir se deveria ser permitido ou não viver do aluguer de casas, como escrevi também, na “liberal Suécia”, essa situação não é permitida em cooperativas de apartamentos. Já sei, a Suécia só é liberal às terças e quintas. Nestas coisas mais socialistas fingimos que não vemos. Contudo, não sendo essa uma questão em Portugal, não tenho qualquer problema ideológico em se contrair empréstimos para compra de casas e consequente aluguer de forma a cobrir as despesas. E já agora, para que fique ainda mais claro, também não percebo a absurda quantidade de impostos sobre a habitação. Se bem que o meu problema com os governos portugueses não é tanto o que cobram mas sim como o gastam.

10 and 20 Euro Bill

Como costuma dizer um colega meu quando não o percebem à primeira, espero ter-me feito entender agora quanto às situações de crédito bancário.

Já a conversa do investidor que compra coisas com as poupanças, enfim, estamos a falar de quem, Luís? Quem é que compra casas com poupanças em Portugal em 2023? Ou vá, nos últimos cinco anos? Qual dos contribuintes que pertence aos 75% que vive com menos de 900 euros líquidos por mês é que poupa para comprar casas de investimento? Já tem sorte ele se o banco lhe fizer um crédito para não ter de depender da vontade de um senhorio.

Qual das famílias nos 90% que vivem com menos de 2.000 euros, por agregado, é que anda a meter algum de lado para um T0 na Lapa? Essas poupanças chegam de algum lado, não é? Uma herança aqui, uma oferta ali… aí já percebo. Mas nesse caso, lamento, estamos no ponto de partida. Não, não entendo que um senhorio nestas condições venha pedir aumentos de renda iguais à inflação e muito menos com argumentos como os usados pelo Luís de que, “agora as poupanças do investidor valem menos”.

Ora, meu caro… mas não é esse o efeito perverso do famigerado mercado?

people sitting on bench near brown concrete building during daytime

Claro que as poupanças valem menos. Mas os salários também valem menos porque os aumentos são inferiores à inflação, logo, há uma perda real, tal como nas poupanças. Os senhorios sofrem um bocadinho, os inquilinos também, e pena, mesmo muita pena, é que os bancos não sofram também. Era aí que o impacto se deveria fazer sentir e não nos orçamentos das famílias que, em Portugal, são cada vez mais pobres.

Quando se repete a conversa de “os mais prósperos protegem a propriedade privada” não é simplesmente verdade. A carga fiscal na Suécia é elevadíssima, em particular para o lucro. E não é sequer possível viver alugando apartamentos. Espero que a Suécia ainda conte como país próspero. 

Muito antes da crise que agora vivemos, da inflação, da guerra e do aumento do custo de vida com a desculpa da Ucrânia,  já algumas cidades portuguesas praticavam preços proibitivos na habitação, desde quartos de estudantes até a casas familiares. Foram tempos de pura especulação e ganância. Proteger isso, que foi exactamente o que se fez, a tal liberdade, deixou-nos em parte neste beco sem saída.

Foi assim com a habitação, com a grande distribuição e com a banca. Compensaram-se as perdas com dinheiro público e, em altura de jackpot, como este que agora se vive com a inflação, a factura fica do lado do costume, dos contribuintes. Nunca o impacto económico fica do lado dos privados. Se o negócio cai, o Estado paga layoffs ou injecta dinheiro; se a inflação cria lucros fabulosos e inesperados, o Estado não pode falar em tectos porque lá vem a conversa da liberdade e da Venezuela.

white painted buildings

Liberdade não é permitir que o lucro se sobreponha a condições de vida com dignidade. E certamente não é ter uma maioria, neste caso de 5, 5 milhões de trabalhadores, a viverem para pagar contas encherem os bolsos de uma minoria. Seja esta minoria um banco, um supermercado, uma PPP de uma estrada, a Lagarde, a quota dos 2% da NATO ou o senhorio que poupou a herança que a avó lhe deixou.

Liberdade, meu caro, é sair de casa para ir trabalhar, e poder ir jantar um bife com a família, sem fazer contas ao que sobra para a renda.  É preciso levantar a cabeça, deixar de focar na árvore e perceber que estamos, sim, numa floresta.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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