Durante muitos anos, tive como ideal de vida uma solução que me permitisse trabalhar e, ao mesmo tempo, ir vendo o Mundo em permanência. Imaginava-me a viver num veículo qualquer, a trabalhar de forma remota e, noite após noite, ir avançando na direção desejada.
O melhor que consegui foi fazer isso por períodos curtos de algumas semanas. Nunca descobri a solução mágica de coordenar esta opção com as responsabilidades de manter um ambiente estável e mais convencional para a minha família. Portanto, ser pai e marido ganhou sempre a ser nómada digital sobre rodas. O que também não me aborrece, devo dizer. Voltarei à estrada, ou ao mar, quando as crias estiverem prontas para voarem sozinhas.
Pensava nisto enquanto via uma reportagem sobre o aumento nas vendas de auto-caravanas, procuradas hoje em dia como uma alternativa às crescentes dificuldades com a habitação, em Portugal. Já não achei a solução tão idílica e aventureira como nos meus sonhos originais.
Sabia que algumas famílias se tinham mudado permanentemente para casas pré-fabricadas em parques de campismo, para casas de familiares, para habitações divididas com outras famílias e, nos casos mais graves, para a rua. Mas ainda não tinha visto esta opção de pagar um crédito automóvel para viver nele.
Na reportagem em questão aparecia uma senhora que trabalhava na câmara de Cascais e que ia rodando vários parques de estacionamento, para contornar a proibição das 48 horas para este tipo de veículos. Mostrou-nos o seu dia-a-dia e explicou que parava naquela zona para ficar perto das imediações da escola do filho. O miúdo, como é lógico, não apareceu em frente às câmaras. Ninguém quer que na escola se saiba que a morada real é um parque de estacionamento.
Mas o que me impressionou mesmo foi a família em questão. Tudo normal, tudo dentro do que se imagina ser a contribuição normal para a sociedade. A mãe tem um emprego permanente, um salário e o filho vai para a escola. Nada de estranho aqui. Mas com o fruto do trabalho não conseguem pagar um aluguer ou contrair um empréstimo para compra.
Não estamos a falar de alguém que desistiu, que já nem tenta, que deixou a vida seguir por caminhos mais duvidosos ou que se excluiu da sociedade enquanto membro contributivo. É apenas alguém que vai trabalhar e não consegue pagar uma casa. Não é aqui que percebemos que falhamos enquanto sociedade?
Normalmente, quando vemos um desgraçado a dormir num cartão nas arcadas da Almirante Reis, somos rápidos a julgar. “Foi a droga”, “perdeu tudo no vício”, “não quer trabalhar”. Raramente temos o discernimento de perceber o mundo de razões que atira alguém para o meio da rua. Apontamos o dedo. Logo. É uma forma de dormirmos bem com a nossa consciência. Não há nada a fazer por aquele desgraçado.
Mas…e agora? O que fazer quando os juros das prestações bancárias duplicam ou triplicam? Como é que se aponta o dedo a milhares de famílias que ficam aflitas e sem salários que combatam estes aumentos que ninguém percebe? Foi algo que fizemos? Pagámos poucos impostos? Trabalhámos menos do que devíamos? Qual foi a nossa falha, enquanto sociedade que trabalha 40 horas por semana, para de repente estarmos a viver em caravanas, parques de campismo ou quartos com casa de banho partilhada? Qual é a diferença entre isto e os famosos bairros de “trailers” nos Estados Unidos, para onde vão aqueles a quem a falta de segurança social não permite segurar uma habitação convencional?
Como é que nós, num continente onde o apoio na doença e no desemprego sempre foi o cartão de visita, onde os impostos sempre serviram para garantir o suporte social, de repente estamos a caminhar na mesma direção dos que toda a vida viveram na selva do liberalismo e do individualismo? Como? Não é da liberdade, não se iludam, é do individualismo e da roleta do salve-se quem puder.
Vejo no Instituto Nacional de Estatística que Portugal tem cerca de seis milhões de apartamentos e que 10% da população vive sozinha. O ritmo de construção não é enorme (110.000 edifícios na última década) mas, somando o que existe, ao que se vai erguendo e à quantidade de agregados familiares, é mais ou menos simples de perceber que, em teoria, há tectos para todos. Onde estão as casas, pergunta-se?
Não deixa de ser extraordinário que, em todas as ações do Estado para combater os problemas na habitação, ainda ninguém lhes tenha exigido (a começar pela oposição) que entreguem um estudo com todos os imóveis públicos disponíveis para reabilitação ou ocupação, por parte destas famílias que simplesmente já não conseguem pagar as prestações.
Se pensarmos um pouco nisto, não é assim tão complicado chegar a uma solução. Ou a várias. Até porque o problema é perceptível para todos. Uma hipótese é os governos obrigarem a banca a ignorar a
Lagarde e a arcar com o prejuízo, deixando as prestações como estavam. Outra é, eles próprios, usarem o dinheiro dos impostos para pagar os aumentos (como ao que parece o Governo de António Costa se propõe a fazer até 2024). Não deixa de ser uma opção política.
Se acharam uma boa ideia desviar o erário público para manter pessoas saudáveis em casa, certamente não se importarão de o fazer agora para lhes assegurar a dita casa. Até porque, com as notícias que já se vão ouvindo dos vendedores de máscaras, não tarda estão a pedir novos confinamentos. Não dá para confinar sem casa, não é? Pensem lá nisso.
Há ainda aquela hipótese mais rebuscada de se tentar o aumento de salários, a comelar pelo mínimo. É que isto de ver a inflação como indexante e justificação de todos os aumentos, menos dos salários, deixa quem trabalha numa situação de prisão e desespero permanente. No fim de tudo isto, também não seria mal pensado, enquanto se ataca a vertente financeira da coisa, que o Estado começasse a abrir as portas dos seus imóveis, tomando as dores de uma Remax dos pobres.
Das várias soluções possíveis, entre as leis da economia e as puras opções políticas, o que eu vejo são os trabalhadores a serem largados à sua sorte enquanto empobrecem a cada mês. Uma pessoa que trabalhe
não deve ser pobre. Ponto final. Este é um princípio basilar de um país que se julga desenvolvido.
Em Portugal já se perdem a conta aos que, trabalhando, já nem pobres conseguem ser. Perder o direito à habitação e ver que o Estado Social, para o qual todos contribuímos, pura e simplesmente não existe, é um desespero total, um atestado de terceiro-mundismo e, pior, terreno fértil para as demagogias da
extrema-direita que se aproveita destes problemas para vender um mundo onde a solidariedade social não existe. Podem agradecer aos sucessivos governos do centrão.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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