CARTAS DE AMOR
Agora em Outubro de 2023
Ainda com uma caloraça que ninguém entende
Todas as uvas já vindimadas
As azeitonas maduras nos ramos
E seja o que Deus quiser,
Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores
CLARA PINTO CORREIA traz-nos, em directo de ESTREMOZ
O DERRADEIRO EPISÓDIO DE UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO
Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira
“O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano
Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,
in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)
“Porque enfim, fossem francos: que tinha ela? Não queria dizer mal da pobre senhora, mas a verdade é que não era uma amante chique; andava em tipóias de praça; usava meias de tear; casara com um reles indivíduo de secretaria; vivia numa casinhola, não possuía relações decentes; jogava naturalmente o quino, e andava por casa de sapatos de ourelo; não tinha espírito, não tinha toalete… que diabo! Era um trambolho!”
Eça de Queirós
O PRIMO BASÍLIO
1878
Entretanto, muito longe das emoções funéreas que sacudiram o País Profundo, Alexandre Noronha esteve dois meses em Paris que fizeram dele um homem novo. Passou-os, por via de financiamentos mal explicados[1], em animada confraternização com Marine LePen. Estudaram juntos as estratégias publicitárias que podem realmente funcionar para que a extrema-direita consiga chegar ao poder com uma maioria digna desse nome[2]. De vez em quando, como que por acaso, André Ventura passa pelo Centro de Trabalho do RASSEMBLEMENT NATIONAL[3] para se obterem imagens que mostrarão como estes dois grandes partidos, representantes dos insatisfeitos que querem mudar qualquer coisa mas não querem nem saber como é que se muda o quê, têm comportamentos e valores semelhantes, sem que nenhum deles precise de fazer qualquer esforço nesse sentido[4]. Passam os três vários dias e noites juntos, cimentando as raízes de uma verdadeira amizade[5]. Como o tempo requerido por este tipo de operações é indefinido por natureza, ninguém sabe quando regressarão a Lisboa, nem no Partido nem lá em casa. Quando, finalmente, os dois homens se instalam confortavelmente na Executiva para a viagem de regresso a Lisboa, Alexandre considera as vantagens desta indefinição e tem uma inspiração súbita.
“Ó Ventura”
“Hm?”
“Já estavas a dormir?”
“Eu sou como Deus, palerma. Não durmo.”
“Mas sentes-te tão estafado como eu?”
“É possível.”
“E saturado de tanta alta política?”
“Isso podes crer.”
“Então faço-te uma proposta indecente?”
“Força.”
“Estás a ver aquela minha amante incrível que vive em Estremoz, a Bloody Mary?”
“Só me falta mesmo é vê-la em pessoa, homem. Passaste este tempo todo a falar dela. Até contaste algumas histórias picantezitas à Marine, não te lembras? Uma imprudência, eu bem te avisei, porque em princípio devemos defender o matrimónio.”
“Olha que história, ela também só tem de defender o matrimónio em princípio. É muito diferente de defender seja o que for em actos, e mesmo em omissões”
“Está bem, lá a missa a metade tu sabes. Agora, com a Marine… grande mulher, heh? Uma verdadeira figura de estilo… com a Marine, dizia eu, por acaso tivemos sorte. Mas não te esqueças que foi por acaso.”
“Olha olha, não foste tu que defendeste publicamente o casamento gay?”
“Não me lixes, eu apenas disse que ser homossexual não desvaloriza ninguém em nada, incluindo a capacidade de combate político, e que havia gays talvez até entre os nossos dirigentes e certamente entre os nossos apoiantes. E mais acrescentei que queria que tudo continuasse a ser assim, e que, se tivesse um filho homossexual, respeitaria sempre isso.”
“Ah pois. E era isso mesmo é que eu queria ver.”
“Pois, mas tudo isso era, mesmo, uma questão de princípios. A Comunicação Social é que fez um circo excessivo com tudo o que eu disse, que aliás é o que eles fazem sempre. E que façam, porque somos sempre nós quem ganha com isso.”
“Não é só a Marine. A tua retórica também há de ser lembrada nos manuais de figuras de estilo.”
“Há maneiras bastante piores de se ser lembrado.”
“Pois é, a tua lata também não será esquecida.”
“Olha meu filho, e a tua proposta indecente, já agora? Se não queres que seja esquecida, explicas-me de que consta?”
“Ah, então ouve-me esta com atenção. Não temos ninguém à nossa espera, certo?”
“Certo. Em princípio, pelo menos.”
“Então vamos tirar partido disso.”
“Que género de partido, se ninguém consegue sequer perceber o que é que quer o CHEGA?
“Homem, desliga. A minha proposta é mesmo essa, desligarmos. Assim que chegarmos alugamos um belo Volvo preto, dos automáticos, logo ali na Hertz, que eu ofereço, ouviste? Tenho um cartão de descontos. Arrumamos todas as nossas coisas na caixa de forma a não serem vistas de todo. A seguir, despimos os blasers, enrolamos as mangas das camisas, e afrouxamos o nó da gravata, porque seguimos logo para Estremoz. Hm? Que te parece? Hás de ver bem a lasca que eu ando a comer, e de caminho apresento-te as tais estilistas de Badajoz com quem andei a tomar banho todo nu nas piscinas das pedreiras.”
“Mas essa lasca que tu andas a comer não é casada?”
“Pois, coitada, é casada com uma corrente de ar. Um reles indivíduo de secretaria que foi para a Europa por um ano inteiro fazer uma Comissão de Serviço de tradução simultânea. Só lá está uma sopeira velha, tão indignada com o comportamento do marido que se pôs incondicionalmente do lado da mulher.”
“Então e as espanholas? Nem um namorado, nem coisa nenhuma?”
“Nada que eu tenha visto, pelo menos deste lado da fronteira. E eu não disse nada sobre irmos a Badajoz.”
“Mas são duas.”
“Homem de sorte. Podes ficar só com uma, ou então curtirem todos juntos! Que barbaridade!, estas espanholas quando soltam as feras e caem na dança! E depois havemos de parar todos juntos no caminho, no sopé do Castelo, porque o dono desse tasco é um grande simpatizante nosso chamado Bruno[6], que faz as melhores bifanas deste mundo. Mas o melhor no Bruno, melhor até que as bifanas, ainda são os passarinhos na chapa… assim, naquela esplanada enorme, com aquela vista das muralhas ao fim do dia… vêm para a mesa com batata frita, salada, pickles, vinho verde gelado daquele bem seco… não há lá nenhum requinte, mas aqueles passarinhos… com umas fatias de queijos do cardo duras como cornos… e umas azeitonas…[7]”
“Pára. Pára, pelo amor de Deus. Vais comer isso tudo, e depois ainda vais comer a tua Maria Alice, que tu não páras de dizer que é uma verdadeira serpente na cama, e a seguir vais o quê, vais achar que não houve nada que justificasse o teu AVC?”
“Então, amigo. Dramático e rústico, como na Assembleia? Eu não sou a Assembleia, boa? Eu, por mim, devoro a rapariga assim que ela me aparecer no corredor, com aquelas suas roupas transparentes e o cabelo solto ao vento[8]. Estremoz é muito ventoso, já te disse[9]?”
“Então e eu? Vou para a retrete ler o POLE POSITION[10] e babar-me todo com aquelas garotas em fio dental que estão sentadas em cima dos novos Fórmula Um?”
“Não, que eu sou solidário. Exponho o teu caso ao Bruno, e, ao fim de dez minutos, ele já vem apresentar-te las hermanitas de sangre. Queres mais?”
“Não,” responde André Ventura. “Mas quero é isso tudo já[11], pela tua rica saúde.”
Algumas horas mais tarde, a casa de Maria Alice aparece ao fundo das duas fileiras frondosas do laranjal que se estende ao longo da rua, linda, majestosa, frutuosa como a melhor das promessas. O carro da beldade escaldante de que Ventura tanto ouviu falar não se encontra mal estacionado em cima do passeio fronteiro ao edifício, o que parece indicar que foi devidamente guardado na garagem – o que, por seu turno, sugere desde logo que a grande amante está mesmo em casa. Animados e expectantes, os dois amigos já vão quase a chegar à entrada quando Josefa lhes aparece pela frente. E, desta vez, não traz minimamente um sorriso deliciado no rosto. Muito pelo contrário, barra-lhes a passagem de enxada na mão, furiosa, indignada e justiceira, saída num rompante colérico da porta da cozinha, que bate atrás de si com estrondo.
“Sai-me daqui, ordinário!”, grita ela, fora de si, para Alexandre Noronha. “E de futuro pára de tratar as mulheres todas como se fossem umas putas, que ao menos às putas vocês têm de pagar!”
“Ó minha querida Josefa, Santo Deus, porque é que estás a tratar-me assim?”” pergunta Alexandre Noronha, estarrecido tanto por aqueles modos inusitados da velha senhora como por toda a cena decorrer mesmo à frente do seu líder espiritual. “E a Maria Alice? Onde está a Maria Alice? Assim que aterrámos em Lisboa viemos a correr ter com a Maria Alice.”
“Então olha,” responde a velha serviçal, com o rosto rubro de cólera, roída de saudade e de remorso, e ainda amargurada com o desaparecimento súbito dos vinte mil paus que ia embolsar graças à sua manobra brilhante de chantagem. “Vai a correr ter com o Diabo que Te Carregue, que a nossa querida menina já foi para o Céu, onde vomecê, ó Noronha, vomecê nunca há de entrar, sua besta. Foi vomecê quem lhe deu cabo do coração. Tanto amor, tanto amor, e depois chegas cá e baldas-te que nem uma porra de um paneleiro de um cabresto[12].”
“Então afinal tu não andaste a comer a gaja?”, sussurra André Ventura, interdito.
“A velhota é doida,” sussurra Alexandre Noronha de volta. “Deixa-me falar com ela. Josefa, ó Josefa, sabes, eu digo-te a verdade, é que eu estava muito nervoso com o discurso que ia bombar a seguir num encontro do CHEGA aqui perto…”
“Olha lá, também não era assim tão perto como isso,” corrige André Ventura em mais um sussurro, sentindo-se agora deveras confuso.
“Não houve nenhum encontro do CHEGA aqui perto naquela altura, ó seu tratante”, atalha Josefa, confirmando sem sequer dar por isso o murmúrio de Ventura. “E, mesmo que houvesse, a Menina nunca iria lá contigo. Aquela mulher não estava à venda, seu maricas. Não estava nem podia estar, porque não tinha preço. E tu, sim tu, foste tu que a mataste, quando fugiste daqui sem chegares sequer a entrar em casa. Nem um duche tomaste, ó procalhão[13]. Chinga tu madre, perro desgraciado[14]!”
“Mas então, espera aí. Tu bazaste sem comer a gaja, foi?”, volta a sussurrar André Ventura.
“A velha não bate bem, já te disse. Sei lá que história é esta. Espera aí que eu vou falar-lhe ao sentimento. Josefa, ó Josefa… Josefa, pelo amor de Deus, entende-me! Eu queria levar a Maria Alice ao nosso Encontro sem ela saber para onde íamos, queria que ela sentisse imenso orgulho em mim. Mas depois, quando já estávamos na praia, eu quanto mais pensava nisso tudo mais me enervava…”
“Mas se dessa vez bazaste sem chegar a comê-la como é que depois andaste a comê-la?”, insiste Ventura, ávido de esclarecimentos[15].
“Ainda por cima,” continua Noronha, firme no seu posto, “mesmo em cima da hora, a minha mulher decide que vai mandar a nossa filha arranjar-se como uma pessoa normal, e que vão as duas ter comigo à festa! Diz lá, tu não fugias, se tudo isto se passasse contigo?”
“Mas a Gi sempre esteve no alinhamento para falar nesse Encontro, não foi aquele sobre tirar os ovários, que…?”, recomeça a murmurar André Ventura, ainda honestamente incapaz perceber ao certo o que é que se passa[16]. E, virando-se para a pequena multidão que se vai juntando para gozar bem o espectáculo, ainda acrescenta,
“Como talvez saibam, eu, por mim, sempre disse que, eticamente, compreendo e sou contra o aborto, mas que não vou propor a sua criminalização, porque isso não funciona, e não resolve nada. Compreendo que a maioria no partido ache que o aborto deva ser crime, assim como o Alexandre e a Gi acham, por exemplo. Mas, pessoalmente, essa postura choca-me enquanto jurista e político.”
Nem consegue palestrar todas as declarações que tem a fazer até ao fim, porque assim que Josefa escuta as palavras “tu e a Gi”, seguidamente consubstanciadas por um “o Alexandre e a Gi” destinado à geral, explode numa fúria ainda maior, que a faz agitar ainda mais a enxada mesmo em frente do rubor que alastra nas faces de Alexandre Noronha.
“Tu e Gi! TU E A GI! Com que então! E entretanto dizias à Menina que eras divorciado, ou se calhar não dizias, grande invertido?”
“Íamos divorciar-nos, Josefa, por favor, acredita em mim…”
“Mas tu e a Gi não foram falar juntos àquele Encontro das Famílias, para se apresentarem oficialmente contra o divór…”
“Aaah!”, grita de súbito André Ventura ao mesmo tempo que bate com a mão na testa, extremamente aliviado por ter, finalmente, compreendido o estranho enredo que se desenrolava à sua frente. E, já sem se preocupar sequer com a minudência de baixar a voz, mede Alexandre Noronha de alto a baixo como se estivesse a vê-lo pela primeira vez, dá-lhe uma palmada nas costas, e felicita-o com entusiasmo.
“Grande tanguista, pá. Bravo. Bravo! Olha que nem eu sei se era capaz.”
“Não sou tanguista!”, protesta Alexandre, que se sente cada vez mais compenetrado do papel que atribuiu a si próprio, assim como se sente cada vez mais desconfortável com a proximidade da enxada de Josefa. “Fui fraco, Josefa, fui muito fraco, sim, confesso –[17] mas a minha fraqueza não faz de mim um tanguista. Paniquei e fugi[18]. Pronto. Fugi de Estremoz para Faro, e depois de Faro para Paris. E, por sorte, aqui o meu grande amigo André Ventura estava no mesmo avião que eu[19], de maneira que assim que chegámos ele apresentou-me à Menina Le Pen[20], e olha, a verdade é que ao fim de quinze dias ela até já me falava em casamento, e por isso eu enquanto lá estava não podia…”
“Cala-te, cigano, e a tua mulher que te ature! A Menina a sonhar com o vosso dia na praia, e tu achavas o quê, achavas mesmo que ias arrastá-la para festivais populistas? Cigano! Grande cigano! Sai daqui, cigano!”
“Festivais populistas” não é de tradução fácil para toda a gente. Mas, ao chamar cigano a um dirigente do CHEGA, Josefa atinge tais píncaros de inspiração que a assistência, cada vez mais numerosa, grita, ri, bate palmas, e, ainda insatisfeita, incita a velha senhora a subir mais a fasquia com expressões de encorajamento tais como o várias vezes repetido,
“Ah grande Josefa! Tu fazes oitos[21]!”,
Ao mesmo tempo, e com a participação da PSP que entretanto alguém chamou à cena dos acontecimentos, inicia-se um debate inconclusivo sobre se aquele bacano que está ali ao lado do panasca é ou não é o André Ventura propriamente dito. Não é por maldade, e muito menos por ignorância – é mesmo que esse senhor é a cara chapada de largas centenas de outros senhores, todos eles vestidos da mesma forma para aumentar a confusão.
Perante todas estas circunstâncias totalmente inesperadas, mas potencialmente hostis, o André Ventura propriamente dito percebe logo, e antes de mais nada, que se arrisca a ser chamado à esquadra para prestar declarações. Toma, portanto, as suas medidas preventivas habituais. Tira do bolso de trás das calças dois comprimidos de Diazepam de 10mg, que põe a derreter debaixo da língua[22]. A rapidez do gesto fala por si. É evidente que, depois de ter aprendido o truque com o Ricardo Salgado em pessoa[23], o líder do CHEGA já passou muitos anos a virar frangos no domínio de exorcizar pânicos em particular e controlar emoções adversas em geral. Alexandre Noronha, que registou a manobra pelo canto do olho, percebe logo a que é que aqueles comprimidos se destinam, agarra velozmente noutros dois, e engole-os com tanta pressa que quase se engasga[24]. Entretanto Josefa continua a bradar em altas vozes, atraindo cada vez mais vizinhança.
“Desaparece, assassino. Agarra no teu amigo, voltem por donde vieram, e nunca mais se atrevam a cruzar sequer o portão da minha horta. Esta casa está amaldiçoada, toda a gente anda de luto, ninguém come nem dorme, o cãozinho da Menina uiva todo o dia e toda a noite, e na Lua Cheia as teclas do computador dela mexem-se sozinhas, porque o seu pobre espírito ainda está a tentar escrever-te mais uma carta, maldito excomungado que hás de arder no Inferno para toda a Eternidade. JÚNIOR! Ó JÚNIOR, vem cá, anda. Anda, que temos aqui dois melgas daqueles mesmo bons para tu pores na rua.”
Bem treinado e sempre obediente, e sobretudo muito satisfeito por ter alguma coisa vistosa para fazer[25], Júnior entra subitamente em cena com dois ou três saltos pneumáticos, pára, deixa pender a língua entre os dentes destituídos de simpatia, e começa a rosnar num tom puxado do fundo de uma caverna assustadora. Por fim eriça o ridgeback, agita a cauda rente ao chão exactamente como um leão faria, deixa pingar as primeiras gotas de saliva, e crava os olhos nos dois visitantes. A seguir começa a aproximar-se lentamente, com pequenos passos felinos.
Um segundo mais tarde os dois amigos já estão no carro, a fazer marcha-atrás para sair dali depressa.
“Santo Deus,” suspira André Ventura, tentando recompôr a roupa, que ficou toda em desalinho. “Mas que mulherão, pá. O cão é capaz de ser jogo a mais, mas a velha aproveita-se já. Aquela é que ficava bem na segurança dos nossos comícios. Ou podíamos usá-la para um debate. Com voz do povo e tudo. Não achas?”
“Hm,” responde Alexandre, de olhos cravados na estrada.
Nessa altura Ventura contempla-o, compreensivo.
“Então… pelos vistos, agora… eh pá, de modo que estás sem mulher[26], não é?”
Noronha até puxa o travão de mão[27], e acto contínuo deixa o carro ir-se abaixo, para poder gesticular mais e dar melhor vazão à sua fúria justiceira.
“Pois estou,” brada ele aos quatro ventos. “Estou completamente sem mulher, só me lembrei agora que as estilistas espanholas são menores de idade, e apetece-me fazer tudo menos ir para casa. Mas que ferro, menino, que ferro. Deixei as bases cobertas por mais uma semana para conseguir espairecer. E agora? Se vinha directamente de Paris, ao menos trazia a Alphonsine.[28]”
Fica momentaneamente em silêncio, dá dois ou três murros no volante, e ainda repete mais uma vez, com a entoação de quem põe o ponto final numa história,
“Que ferro, menino.”
E foram tomar xerez à Taverna Inglesa[29].
Leia também o Episódio 1, o Episódio 2, o Episódio 3, o Episódio 4, o Episódio 5, o Episódio 6, o Episódio 7, o Episódio 8, o Episódio 9, o Episódio 10 e o Episódio 11 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia.
[1] É quase uma redundância, mas vale pelo seu alerta pedagógico. Vivemos num tempo em que quase todos os financiamentos tendem a ser mal explicados.
[2] Para seguidamente abolir o direito de voto, como pareceria evidente a quem porventura pensasse nisso.
[3] Ai não sabiam? Pois fiquem a saber. Como parte da “des-demonização da Frente Nacional“, com o objectivo de suavizar a sua imagem, a herdeira da dinastia Le Pen mudou o nome do partido de Front National para Rassemblement National. Até que ponto Alexandre Noronha foi influente nestas precauções é matéria ainda hoje imperscrutável.
[4] Não esqueçamos que foi André Ventura quem defendeu, lapidarmente, ser a orientação do CHEGA “uma lógica antissistema, que é uma classificação mais adequada do que extrema-direita, extrema-esquerda, esquerda, direita”.
[5] Que é como quem diz.
[6] Limpe-se finalmente a honra do Bruno, que o homem não é simpatizante do CHEGA coisíssima nenhuma. Segredava histórias desconcertantes ao ouvido da Maria Alice apenas para a picar enquanto dançavam juntos, e ela deixava-se picar com todo o gosto. O telemóvel dele até faz soar a GRÂNDOLA sempre que toca. E toca bastante. Como já vimos anteriormente, o Bruno é uma pessoa muito solicitada.
[7] Claro que Alexandre Noronha não sabe nada disto por experiência pessoal. Sabe o que Maria Alice lhe descreveu com grande felicidade nas suas cartas de amor, e tanto basta.
[8] Mera conversa de homem. Não tem absolutamente nada a ver com a forma como Noronha fugiu da Praia dos Montejuntos, disse que tinha que ir para Lisboa, e desapareceu numa grande nuvem de poeira. Imaginem que, em vez de se remeter ao silêncio, ele dizia para a amante que ainda não o era: “E agora, querida, espera por mim até às cinco da manhã porque eu vou para a praia fazer o grande discurso da festa-comício do CHEGA, onde a minha mulher e a minha filha se juntarão a mim, portanto não posso levar-te.” Enfim, esta versão podia até ser verdadeira, mas claro que era muitíssimo mais difícil de engolir. Para os dois.
[9] Até a grande ventania de Estremoz é matéria que Noronha só conhece por ouvir-dizer, dado que no dia de má memória em que foi e veio não corria uma única aragem sob o céu escaldante do mês de Agosto, tal como é próprio do dito mês.
[10] Tanto quanto se sabe, esta revista não existe a não ser na imaginação de André Ventura. E não é nada má ideia, esta das miúdas em fato de banho todas pausadas por cima do dernier cri da Fórmula Um.
[11] Concordância não propositada. Claro que este personagem ignora os slogans mais imorredoiros do Mai 68. Aliás, Mai 68? Que merda é essa, Mai 68? Eu já nasci depois da morte do Salazar, se é isso que querem saber.
[12] Qualquer coisa “de um cabresto”: partícula enfática regional de simbolismo e métrica extremamente úteis no que toca a trocar galhardetes.
[13] Ao contrário de Bruno e Maria Alice nas suas animadas brincadeiras de antanho, Josefa faz uso do termo procalhão sem intentar surtir qualquer efeito cómico. Intentar foi bem escolhido, ou foi impressão minha?
[14] Já vimos que o amor nos oferece dotes de oratória que de outra forma não teríamos. Além disso, numa cidade quase encostada a Badajoz, é normal que toda a gente fale espanhol, sobretudo no que se refere a insultos e palavrões.
[15] Note-se que esclarecimentos deste teor podem sempre vir a ser de grande utilidade na vida de um gajo. E nunca se sabe quando, portanto convém, de facto, pedir imediatamente o esclarecimento em questão.
[16] Não é por mal. É mesmo por limitação.
[17] Travessão aqui atribuído, após uma longa ausência, ao seu legítimo utente.
[18] Já alguém conheceu algum homem que, mais cedo ou mais tarde, não tenha recorrido à expressão “paniquei” – como se isso justificasse alguma coisa? Este foi um bom travessão.
[19] André Ventura começa, instintivamente, a dizer que sim com a cabeça.
[20] André Ventura estuda esta narrativa surpreendente sempre a dizer que sim com a cabeça, maravilhado.
[21] “TU FAZES OITOS”: forma sintética da expressão “fazer oitos com pernas de noves”, destinada a ter maior acutilância, no sentido de encorajar as loucuras de quem está a fazer os oitos em causa. A mim disseram-me isto pela primeira vez quando, aos dezoito anos acabadinhos de fazer, logicamente ainda sem carta, guiei um camião de uma ponta à outra de Aljustrel e desta forma expus diversos inocentes a sérios perigos. Os meus amigos da minha idade, que me tinham incitado a guiar o dito camião, deliraram com o espectáculo. Repisando o que já se discutiu antes, quando não há nada mais interessante para fazer…
[22] Estes fármacos controladores do pânico são geralmente inseridos pelos poderosos no bolso interior do blaser, mas recorde-se que os dois amigos optaram por comparecer em Estremoz sem blaser, e com as mangas das camisas enroladas.
[23] O recurso do Banqueiro ao truque do Diazepan, ou do Alprazolan, conforme a medicação disponível lá em casa, já era vox populi entre os seus pares da Banca antes do fim do Milénio. Naquele tempo, pelo menos, andavam todos com dosagens maiores ou menores de XANAX, ou de VALIUM, ou mesmo de VITAN, dentro do bolso da camisa. Os genéricos ainda não existiam, pelo que o expediente se disfarçava com maior dificuldade. A repetição constante da prática, no entanto, costumava tornar a manobra virtualmente invisível. Esta invisibilidade pela repetição, pelo menos, ainda hoje se mantém.
Apreciem bem as coisas que eu sei.
[24] Ao contrário de André Ventura, este seu subalterno é um principiante.
[25] Mudar de lado da casa de manhã para a tarde, procurando a sombra no Verão e o sol no Inverno, assim como jazer no corredor e por junto bater com a cauda no chão se alguém se aproxima, não são actividades vistosas. E muito menos para um Leão da Rodésia.
[26] Parafraseando o final de O PRIMO BASÍLIO, de Eça de Queiroz.
[27] Não estava nenhum Volvo preto automático disponível na Hertz do aeroporto.
[28] Parafraseando a última frase de Basílio ao saber que Luisinha morreu, em O PRIMO BASÍLIO, de Eça de Queizoz.
[29] Frase final deste folhetim e, originalmente, do romance O PRIMO BASÍLIO, de Eça de Queiroz.