É tradição, é cultura, é um subsídio ao humor nacional. A longa saga do Novo Aeroporto de Lisboa (NAL) é o nosso próprio “Dallas” encenado no Terreiro do Paço! Há lá rábula melhor do que aquela de que nem o pai morre nem a gente almoça, e já lá vão 50 anos, mas desta é que a Portela satura, ou nós saturamo-nos dela, mas agora fora de brincadeiras que sem NAL não há nação, e que o digam os maldispostos dos nortenhos que vieram cá baixo de trombas e tudo, só porque se lhes cancelou voos longos a partir do Porto, como se fosse mau saturar mais um bocadinho, senão veja-se o milhão de peregrinos que se transportou sem sobressaltos durante as Jornadas Mundiais da Juventude, e se nem isso vos convence então não sei mais que diga!
Que a opinião pública engula esta comédia à colherada atesta bem o poder e a voracidade dos interesses que se perfilam para a manipular. Que de vez em quando se torre uns milhões em estudos infecundos e se agite a especulação imobiliária, é nacional e endireita as costas, mas outra coisa é concretizar a farsa ao fim de meio século e já muito depois das alterações climáticas terem passado da teoria à prática.
Prevê-se que a obra se prolongue por 10 anos portugueses (aproximadamente 15 anos ISO), o que significa que o NAL ficará pronto muito depois de se ter transformado num objecto anacrónico, num monumento aos tempos em que com muita coragem e muita virtude se fechava os olhos ao óbvio, ainda antes do aquecimento global ter transformado o Sul de Portugal num Norte de África mais caro mas com um toque inequivocamente europeu nos MacDonalds. Perguntar-se-á então “Como é que foi possível” e ficaremos a saber que afinal toda gente era contra, e já o era desde 1968.
Contudo, estamos em 2023 e a farsa ainda não saiu de moda. É preciso animar o mercado imobiliário, esse fiel mealheiro dos ricos, estourar milhões num elefante branco camuflado que vai exacerbar a macrocefalia lisboeta fazendo um aeroporto não em Lisboa mas num município vizinho que sirva Lisboa, e daí que nenhum partido ecologista (LIVRE, PAN, e Verdes) se tenha oposto frontalmente ao NAL, pois sede e dirigentes estão em… Lisboa (um município que perdeu moradores, segundo os Censos 2021); e por último é preciso abrir garganta e gargalo ao turismo, tão competente a exportar mão-de-obra como convicto a explorá-la, ou não fosse o turístico Allgarve a região continental mais pobre do país. Pois que interessa o derrapar de todas as metas para reduzir as emissões de CO2, as previsões cada vez mais sombrias, ou os humores das correntes termohalinas? Que interessa o aquecimento global a quem tem ar-condicionado? E se as colheitas não derem para pão, hão-de sempre dar para brioche.
Mas afinal o que propomos nós? Porventura não precisamos do turismo? E não está a Portela de facto saturada?
Reconhecemos que há razões práticas, de saúde e de segurança para tirar o aeroporto da cidade, mas nem por isso deixa de ser má ideia caminhar em direcção ao desastre. A mesma Ciência que nos permite partilhar fotos das nossas cabeças tapando a Torre Eiffel também nos faculta sérios avisos sobre o futuro imediato — a prudência atempada sempre será melhor conselheira do que o pânico.
Propomos que se distribua melhor o tráfego aéreo, que se encarregue especialistas e responsáveis de encontrar soluções com os meios que já existem, ou que sejam substituídos por especialistas e responsáveis competentes. Poupemo-nos ao enorme esforço financeiro que o NAL exige, e consequente favorecimento de uma indústria fortemente subsidiada, que além de não pagar IVA sobre o combustível ainda goza de mais 14 subsídios no espaço europeu, e invistamos desesperadamente na ferrovia, no ordenamento do território, nomeadamente na contenção da malha urbana, na gestão eficiente da água (reserva, distribuição e consumo), e que se prepare o país para o inexorável avanço do mar, que quanto a esse já nada há a fazer. Talvez assim se dê um forte sinal para dentro e para fora, transportando-se o testemunho recebido da França, que recentemente proibiu voos internos com alternativa ferroviária.
O IPCC, o órgão das Nações Unidas que estuda as alterações climáticas, publicou o seu primeiro relatório em 1990, e previsão-após-previsão antecipou a realidade que hoje sentimos na pele; quanto ao futuro próximo, foi compondo pincelada-a-pincelada um quadro simplesmente aterrador. Disso ciente na teoria mas alheio na prática, o nosso Estado mostra-se dúbio nos momentos decisivos, constituindo-se assim num corpo nocivo que serve a interesses que não os nossos, e que continua a meter balas no tambor do revólver.
Este apelo que muitos acolherão como infantil, pueril, irrealista, ou até demagógico, parecerá a cada ano cada vez menos um atrevimento e cada vez mais uma mera constatação da evidência e do óbvio, mas o prazer duvidoso de ter razão não compensa a vida menor que nos espera a todos, primeiro aos pobres e depois aos outros.
Levante-se agora ou arrependa-se depois. Quem diz não ao NAL?
Alberto Bettencourt, Oceanógrafo
Filipe Martins, Informático
Francisco Martins, Operador de Call-center
Joaquim Monteiro, Engenheiro Mecânico
Luísa Alvares, Farmacêutica (Saúde pública)
Marco Craveiro, Imunologista
Marta Setúbal, Arquitecta
Paulo Carreira, Comercial
Pedro Gomes, Engenheiro Florestal
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