Alimentação nos hospitais de Santa Maria e Pulido Valente já custou 22 milhões de euros desde 2019

Contratos indigestos: fornecimento de refeições no Centro Hospitalar de Lisboa Norte é um antro de irregularidades

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O Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte (CHULN) – que agrega o Hospital de Santa Maria e o Hospital Pulido Valente – tem estado a celebrar sucessivos contratos por ajuste directo, intercalados com contratos por concurso público, para fornecimento de refeições que estão maculados de irregularidades. E mais: desde 2019, o serviço alimentar sofreu um estonteante agravamento do seu custo, passando de 10.546 euros por dia, naquele ano, para quase 17.000 euros no último contrato, assinado no final do mês de Setembro e publicado na sexta-feira passada no Portal Base. Ou seja, um aumento de 61%.

A empresa beneficiada é sistematicamente a mesma: a ITAU – Instituto Técnico da Alimentação Humana, a mesma que acumula ajustes directos há quase três anos, em roda livre, com o Hospital de Santo António do Porto, agora integrado no Centro Hospitalar Universitário de Santo António, já alvo de uma investigação do PÁGINA UM.

Saliente-se, desde já, que o PÁGINA UM dirigiu diversas questões sobre estes contratos à actual presidente do Conselho de Administração do CHULN, Ana Paula Martins – que só tomou posse no passado mês de Fevereiro, não tendo assim responsabilidades directas em grande parte dos contratos –, que nem sequer mereceram reacção até agora.

De acordo com a análise do PÁGINA UM aos contratos entre a ITAU e o CHULN, excluindo seis pequenos serviços de catering (de poucas centenas ou milhares de euros), as relações comerciais iniciaram-se em Abril de 2019. Num concurso público, a ITAU conseguiu um contrato de 2.710.200,32 euros para fornecimento alimentar a doentes e colaboradores do CHULN por um período de 257 dias. Ou seja, até ao final do ano, com um preço médio de 10.546 euros por dia.

Apesar de o CHULN saber que, enfim, também precisaria de refeições nos anos seguintes, não foi concluído qualquer concurso público ao longo de 2019, e a opção da administração hospitalar foi celebrar então um ajuste directo para os primeiros meses de 2020. E aqui começa a primeira irregularidade: o ajuste directo com a ITAU é assinado apenas em 27 de Janeiro de 2020, abrangendo os meses de Janeiro e Fevereiro. Ou seja, foi celebrado já com o serviço em curso. Esse ajuste directo, no valor de 701.756 euros, resultou logo num agravamento substancial do preço médio diário. Se, como referido, em 2019 o CHULN pagou em refeições 10.546 euros por dia, para o ajuste directo dos primeiros dois meses de 2020 o custo das refeições pulou para os 11.894 euros por dia.

Daniel Ferro foi presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte entre 2019 e início de 2023.

Depois, estranhamente, não há sinais de ajustes directos, ou outro tipo de contratos, em Março e Abril, que coincidiram com os dois primeiros meses da pandemia. Somente a partir de Maio de 2020 os serviços de alimentação ficam de novo salvaguardados por um contrato. Mas com uma enorme irregularidade: apesar de produzir efeitos entre 1 de Maio e 30 de Junho desse ano, o contrato só foi assinado pela administração hospitalar, então presidida por Daniel Ferro, nos primeiros dias de Julho, algo não permitido pelo Código dos Contratos Públicos.

Além disso, este contrato para Maio e Junho de 2020 representou um substancial agravamento no preço médio diário, mesmo se os internamentos hospitalares totais diminuíram consideravelmente no decurso da pandemia. Com efeito, contas feitas, a ITAU recebeu, nesses dois meses, uma média diária de 13.099 euros, ou seja, mais 10% face ao contrato de Janeiro-Fevereiro.

Apesar da diminuição dos internamentos nos dois primeiros anos da pandemia, confirmada pelos dados oficiais da Administração Central do Sistema de Saúde, e a despeito de um prometido concurso público em curso sistematicamente aventado, o CHULN decidiu sistematicamente repetir os ajustes directos com a ITAU até Abril de 2021. Incluindo o contrato de Maio-Junho de 2020 contam-se seis ajustes directos, sempre bimestrais e sempre com o mesmo valor inflacionado face ao primeiro ajuste de 2019. E, tal como o contrato assinado para o período de Maio-Junho de 2020, os outros cinco sofrem de irregularidades, com a data da assinatura dentro do prazo de vigência.

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Em Abril de 2021, finalmente com a conclusão de um famigerado concurso público, que contou com a participação de seis empresas, pensar-se-ia que se normalizaria, dentro das boas práticas de gestão, o fornecimento alimentar nos hospitais de Santa Maria e Pulido Valente. Mas não; foi sol de pouca dura, a ITAU logrou bater a concorrência, mas o contrato, no valor de quase 8,3 milhões de euros (com um preço diário de 13.581 euros), só vigorava até finais de 2022. E a então administração hospitalar não quis ter artes para preparar novo concurso público com antecedência para o ano de 2023. Resultado: vieram novos ajustes directos e novas irregularidades, sempre em benefício da ITAU.

Em vésperas da saída de Daniel Ferro da administração do CHULN, no passado dia 23 de Janeiro, foi assinado um ajuste directo de apenas um mês com a ITAU com um valor de 50.121 euros. O agravamento do preço médio diário era avassalador: face ao contrato por concurso público em vigor até finais de 2022, era um aumento de 23,5% na factura a arcar pelo centro hospitalar. E a equipa de Daniel Ferro fez o que sempre fizera: assinou mais um contrato irregular, uma vez que na data da sua assinatura já decorria a prestação de serviços.

Este contrato, em particular, chega a ter cláusulas ridículas e absurdas, mas paradigmáticas de um estilo de gestão de contratos públicos por alguns administradores hospitalares: embora tenha estado em vigor apenas entre os dias 1 de Janeiro de 2023 e 31 de Janeiro de 2023, a cláusula 46ª estipula que “o prestador de serviços deverá apresentar propostas de ementas especiais” para, por exemplo, o almoço de Dia Mundial do Doente (11 de Fevereiro), o jantar de Sexta Feira Santa, o almoço de Domingo de Páscoa, o almoço do Dia da Criança (1 de Junho), o almoço do Dia Mundial da Alimentação (16 de Outubro), o jantar da Consoada, as refeições do Dia de Natal e o jantar da Passagem de Ano. Chapa três, portanto. Ou, mais a propósito: ‘para quem é, bacalhau basta’.

Com a chegada de Ana Paula Martins, a única coisa que mudou foi a duração dos ajustes directos com a ITAU, pois houve lugar à irregularidade habitual: para sustentar legalmente novo ajuste directo à ITAU, a nova administração do CHULN celebrou, para o período de Fevereiro a Setembro, um ajuste directo no valor de 4.1690.972 euros que foi assinado apenas em 3 de Março. Custo diário: 16.984 euros.

Mas Ana Paula Martins fez algo ainda mais temerário em contratos públicos desta envergadura, neste caso superior a 4,1 milhões de euros: nem sequer foi reduzido a escrito, ou seja, durante seis meses não houve qualquer compromisso escrito entre o CHULN e a ITAU. A admnistração hospitalar invocou uma norma do Código dos Contratos Públicos que dificilmente encontra sustentação legal.

Por fim, e sem se vislumbrar um fim para os sistemáticos ajustes directos com a ITAU, o mais recente contrato já foi assinado dentro dos prazos, em 29 de Setembro, portanto antes da entrada em vigor,a primeira vez que tal sucede em 10 contratos desta natureza. O actual contrato vigorará entre Outubro, e Dezembro deste ano com um custo total de 1.560.364 euros, uma média diária de 16.960 euros. Este contrato já foi redigido a escrito, o que acaba por retirar justificação à não redução a escrito do anterior ajuste directo.

Actual administração do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte. Ao centro, Ana Paula Martins que, em Março deste ano, concordou em celebrar (mais) um ajuste directo, dessa vez superior a 4,1 milhões de euros, sem sequer um contrato escrito.

Portanto, contas feitas, em quatro anos, a mesma empresa garantiu dois contratos públicos e outros 10 por ajuste directo, onde pontificam irregularidades sem fim, suspeitas de períodos de prestação de serviços sem suporte contratual, um contrato de 4,1 milhões sem qualquer papel, e até cláusulas absurdas, além de uma inflação de preços estonteante. No meio disto, o erário público, isto é, os contribuintes, pagaram à ITAU, desde Abril de 2019, um total de 22.575.128 euros.

O mais recente contrato entre a ITAU e o CHULN é um dos destaques do Boletim P1 da Contratação Pública e Ajustes Directos que agrega o período de 6 a 8 de Outubro. Desde Setembro, o PÁGINA UM apresenta uma análise diária aos contratos publicados no dia anterior (independentemente da data da assinatura) no Portal Base. De segunda a sexta-feira, o PÁGINA UM faz uma leitura do Portal Base para revelar os principais contratos públicos, destacando sobretudo aqueles que foram assumidos por ajuste directo.

PAV


Nos últimos três dias, de sexta-feira passada até ontem, no Portal Base foram divulgados 570 contratos públicos, com preços entre os 1,28 euros – para aquisição de material, pelo Hospital de Santa Maria Maior, através de concurso público – e os 15.837.049,14 euros – para instalação de um sistema de armazenamento de energia, pela EEM – Empresa de Electricidade da Madeira, através de concurso limitado por qualificação prévia.

Com preço contratual acima de 500.000 euros, foram publicados 8 contratos, dos quais sete por concurso público e um por ajuste directo.

Por ajuste directo, com preço contratual superior a 100.000 euros, foram publicados 11 contratos, pelas seguintes entidades adjudicantes: Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte (com a ITAU – Instituto Técnico de Alimentação Humana, no valor de 1.560.364,41 euros); Hospital do Espírito Santo de Évora (com a Acuna Y Fombona Portugal, no valor de 480.000,00 euros); Município de Faro (com a Visualforma – Tecnologias de Informação, no valor de 359.705,10 euros); Município de Oliveira de Azeméis (com a Associação Florestal de Entre Douro e Vouga, no valor de 281.000,00 euros); dois do Centro Hospitalar Universitário do Algarve (um com a Clese, S.A., no valor de 219.837,08 euros, e outro com a IBERDATA – Equipamentos, no valor de 140.670,00 euros); Município de Águeda (com a Construções Carlos Pinho, no valor de 209.505,00 euros); Município de Valongo (com a Eurest Portugal, no valor de 167.325,00 euros); Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (com a Axianseu II Digital Consulting, no valor de 146.400,00 euros); Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental (com a PharmaKern Portugal – Produtos Farmacêuticos, no valor de 143.160,00 euros); e a Infraestruturas de Portugal (com a Atobe – Mobility Technology, no valor de 119.920,26 euros).


TOP 5 dos contratos públicos divulgados no período de 6 a 8 de Outubro

(todos os procedimentos)

1 Instalação e integração de sistema de armazenamento de energia

Adjudicante: EEM – Empresa de Electricidade da Madeira

Adjudicatário: Hitachi Energy Portugal

Preço contratual: 15.837.049,14 euros

Tipo de procedimento: Concurso limitado por prévia qualificação


2Aquisição de computadores portáteis

Adjudicante: SPMS – Serviços Partilhados do Ministério da Saúde           

Adjudicatário: Bravantic Evolving Technology

Preço contratual: 6.695.199,57 euros

Tipo de procedimento: Concurso público    


3Fornecimento de leite de vaca no âmbito do FEAC

Adjudicante: Instituto da Segurança Social

Adjudicatário: Lactogal – Produtos Alimentares

Preço contratual: 3.938.527,60 euros

Tipo de procedimento: Concurso público


4Prestação de serviços de fornecimento de alimentação

Adjudicante: Hospitalar Universitário de Lisboa Norte        

Adjudicatário: ITAU – Instituto Técnico de Alimentação Humana   

Preço contratual: 1.560.364,41 euros

Tipo de procedimento: Ajuste directo           


5Produção de recursos e conteúdos educativos digitais

Adjudicante: Direção-Geral da Educação

Adjudicatário: Maiêutica – Cooperativa de Ensino Superior, e Lusoinfo II Multimédia

Preço contratual: 786.480,00 euros

Tipo de procedimento: Concurso público


TOP 5 dos contratos públicos por ajuste directo divulgados no período de 6 a 8 de Outubro

1 Prestação de serviços de fornecimento de alimentação          

Adjudicante: Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte

Adjudicatário: ITAU – Instituto Técnico de Alimentação Humana

Preço contratual: 1.560.364,41 euros


2Aquisição de sistema implantável de estabilização      

Adjudicante: Hospital do Espírito Santo de Évora

Adjudicatário: Acuna Y Fombona Portugal

Preço contratual: 480.000,00 euros


3Aquisição de equipamento informático

Adjudicante: Município de Faro        

Adjudicatário: Visualforma – Tecnologias de Informação    

Preço contratual: 359.705,10 euros


4Aquisição de serviços de gestão florestal por equipa de sapadores

Adjudicante: Município de Oliveira de Azeméis      

Adjudicatário: Associação Florestal de Entre Douro e Vouga        

Preço contratual: 281.000,00 euros


5Prestação de serviços de higiene e limpeza     

Adjudicante: Centro Hospitalar Universitário do Algarve

Adjudicatário: Clece, S.A.

Preço contratual: 219.837,08 euros

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