Depois de uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa e de um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, o Conselho Superior da Magistratura (CSM) continuou a querer fazer a “sua justiça”, não permitindo o acesso livre ao inquérito à distribuição da Operação Marquês. Como Portugal é um Estado de Direito Democrático, e não um “Estado do CSM”, o PÁGINA UM instaurou ontem um processo de execução da sentença que visa que seja estabelecido um prazo bem definido para a cúpula da magistratura judicial disponibilizar sem qualquer obstáculo o acesso aos documentos. O PÁGINA UM pediu também uma indemnização: desde o primeiro pedido de acesso ao CSM, em Dezembro de 2021, passaram já 678 dias.
Foi a primeira intervenção do FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM, e deveria ter ficado resolvida no ano passado, com uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, que intimou o Conselho Superior de Magistratura a disponibilizar o inquérito à distribuição da Operação Marquês, que investigou o ex-primeiro-ministro José Sócrates, então entregue em 2014 ao juiz Carlos Alexandre.
Devido à sistemática recusa do CSM de mostrar o inquérito, que viria a ser arquivado, à comunicação social, o PÁGINA UM decidiu inicialmente apresentar um requerimento para, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), para ter acesso e a realizar “cópia (analógica ou digital), aos documentos administrativos elaborados e/ou apresentados pelo Sr. Inspetor Judicial Coordenador Juiz Desembargador Dr. Paulo Fernandes da Silva no Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 4 de Maio” de 2021, “bem como a sua proposta formulada no relatório relativo à denominada Operação Marquês.” O CSM recusou, e continuou a recusar mesmo depois de um parecer da Comissão de Acessos aos Documentos Administrativos (CADA). O Tribunal Administrativo foi a derradeira solução do PÁGINA UM.
Em primeira instância, após consultar o relatório do inquérito, o juiz Pedro de Almeida Moreira, do Tribunal Administrativo de Lisboa, fez uma sentença a intimar o CSM para entregar os documentos, Na sentença, o juiz sustentou que “compulsada a informação remetida pelo Requerido [CSM] em envelope selado, considera este Tribunal, à semelhança do que entendeu o[a] CADA, no douto parecer elaborado, que em causa estão unicamente dados atinentes ‘aos intervenientes no procedimento de distribuição processual, atuando no exercício das funções públicas que lhes estão por lei cometidas, não abrangendo qualquer informação relativa à dimensão da vida privada’ (…), não se identificando, como tal, motivos para cercear a regra geral do livre acesso a documentos administrativos”.
E acrescentou ainda o juiz que, “e ainda que assim não se entendesse – id est, que os documentos que o Requerente [director do PÁGINA UM] aqui procura obter consubstanciassem documentos nominativos em sentido próprio, porquanto continentes de dados pessoais, nos termos e para os efeitos do RGPD [Regulamento Geral de Protecção de Dados] –, considera este Tribunal, em face da concreta informação ali vertida, que sempre deveria prevalecer o direito de acesso do Requerente aos referidos documentos face à protecção de tais dados, no âmbito de um juízo ponderativo de proporcionalidade.” Ou seja, o direito à informação e o direito de um jornalista informar era mais relevante.
O CSM não se deu por derrotado e recorreu desta sentença para o Tribunal Central Administrativo Sul, que também não lhe deu razão. No passado dia 29 de Junho, num acórdão demolidor, aprovado por unanimidade, e com o apoio do Ministério Público, três desembargadores deliberaram que a sentença do juiz Almeida Moreira tinha de ser mantida em toda a linha, concluindo que não houvera qualquer “erro de julgamento da não pronúncia sobre a não indicação da finalidade do acesso solicitado, nem sobre a natureza pré-disciplinar da informação”, além de não ter havido qualquer “erro de julgamento de falta de fundamentação do juízo de proporcionalidade efectuado”.
O acórdão mostrou-se particularmente importante por também clarificar a questão da suposta protecção de dados nominativos, que tem estado a ser levado ao extremo, através da recusa de acesso ou à eliminação até do nome de funcionários públicos em documentos administrativos, como se tem observado no Portal Base em contratos públicos.
Nessa linha, os desembargadores salientaram que essa presunção devia ter sido efectuada, nos termos da lei [o referido nº 9 do artigo 6º da LADA], pelo CSM, “enquanto entidade administrativa que recebeu o pedido (…) e conhece o teor dos documentos em referência, sabendo ou podendo verificar que não respeitam a origem étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a filiação sindical, dados genéticos, biométricos ou relativos à saúde, ou dados relativos à intimidade da vida privada, à vida sexual ou à orientação sexual de uma pessoa, titular/es dos dados pessoais neles constantes”. E, nessa linha, defenderam os desembargadores, o CSM tinha a obrigação de permitir desde logo o acesso.
Porém, “não o fez”, como escrevem os desembargadores, “recusando o acesso requerido com fundamento de que os documentos eram nominativos e, sustentando no recurso, que têm de ser cumpridos os princípios plasmados no RGPD (Regulamento Geral da Protecção de Dados], como sejam a demonstração e concretização da finalidade do acesso aos dados pessoais contidos em tais documentos e do interesse pessoal e directo no mesmo.”
Depois deste acórdão, o CSM aparentou ir abrir mão dos documentos, mas foi apenas na aparência. Depois de acederem a marcar data da consulta, por ordens verbais, recusaram que o director do PÁGINA UM pudesse fotografar as páginas dos dossiers do processo. Saliente-se que, de acordo com a LADA, cabe ao requerente escolher a forma de acesso, designadamente a consulta gratuita (electrónica ou presencial), a reprodução por fotocópia ou por qualquer meio técnico, designadamente, visual, sonoro ou electrónico; ou através de uma certidão.
Por outro lado, apesar dos documentos disponibilizados se encontrarem sem rasuras, as fotocópias solicitadas acabaram por virem completamente mutiladas – entre os quais, os nomes dos intervenientes no processo disciplinar, a descrição dos eventos, o número do processo, a data da distribuição e o nome do escrivão que interveio do processo.
Depois de ainda ver rejeitados dois requerimentos por parte do CSM, em que se protestava contra esse obstáculo de acesso à informação e ao incumprimento da sentença e acórdão, o PÁGINA UM decidiu então esta semana instaurar um processo de execução.
Nesse pedido, o PÁGINA UM requere ao juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa que “seja o CSM condenado a executar a sentença nos exactos termos em que a mesmo foi proferida” e que seja condenado a indemnização moratória não inferior a 5.000 euros, devendo também ser “fixado um prazo limite para o cumprimento da sentença”. No caso de não ser cumprido esse prazo, o PÁGINA UM pediu que ficasse prevista uma sanção pecuniária compulsória “não inferior a 200 euros diários” a aplicar ao presidente do CSM.
Recorde-se que o primeiro pedido de acesso aos documentos pelo PÁGINA UM ao CSM ocorreu em 2 de Dezembro de 2021. Ou seja, há 678 dias. A qualidade da Justiça lusitana e da democracia medem-se também por este tipo de métrica.
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