Subdirector-geral assina 17 ajustes directos de 21 milhões de euros com 'rabos de palha'

Aqui há gato: Autoridade Tributária e Aduaneira ‘forja’ contratos de limpeza com franceses da Samsic

por Pedro Almeida Vieira // Outubro 12, 2023


Categoria: Res Publica, Exame

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Na semana em que o Ministério das Finanças anunciou que há um gato, o Faísca, a passear pelo seu chão, o PÁGINA UM andou a esquadrinhar os 17 ajustes directos consecutivos para limpeza das instalações da Autoridade Tributária e Aduaneira. Nos últimos sete anos, a entidade que recolhe os impostos dos portugueses já gastou 21 milhões de euros, sempre a beneficiar a mesma empresa, e quase sempre com contratos assinados quando o período de vigência já estava a terminar. No meio ainda se encontram dois contratos com indícios de terem sido forjados. Um deles vigorou, em Março de 2019, durou menos de duas semanas e custou quase 50 mil euros por dia, um preço médio sete vezes superior ao contrato assinado no mês seguinte. O Ministério das Finanças não quis, durante mais de uma semana, esclarecer os estranhos contratos da Autoridade Tributária e Aduaneira sempre em benefício da Samsic, uma empresa francesa.


Custa a acreditar, mas é verdade. Desde 2017, a Autoridade Tributária e Aduaneira tem estado sistematicamente a celebrar contratos por ajuste directo com uma empresa de capitais francesa – a Samsic Portugal – Facility Services – para a limpeza de instalações fazendo tábua rasa das mais elementares regras de boa gestão públicas. Num levantamento do PÁGINA UM contabilizam-se, nos últimos sete anos, um total de 17 contratos por ajuste directo que envolvem um montante de 20.965.651 euros. Com IVA, que é dedutível pela empresa francesa, a conta chega próximo dos 26 milhões de euros.

Apesar de ser um serviço programável – e onde os concursos públicos fazem todo o sentido, por uma questão do melhor preço e qualidade –, na generalidade dos casos, os contratos entre a Autoridade Tributária e a Samsic estão a ser assinados já no decurso do período de vigência, que normalmente são trimestrais, mas podem abranger outras durações sem se perceber os motivos.

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Em cinco destes contratos, a assinatura pela Autoridade Tributária – na generalidade a cargo de Nuno Roda Inácio, o subdirector-geral responsável pela área de recursos financeiros e patrimoniais – tem sido feita na última semana de vigência. Este dirigente ocupa este cargo, que inclui, por subdelegação, o estabelecimento de contratos, desde 2015, tendo sido nomeado pela então ministra social-democrata Maria Luís Albuquerque. Antes, e desde 2009, Roda Inácio já ocupava funções de relevo na “máquina fiscal’. Todos os contratos da Samsic foram assinados por ele, embora em alguns o seu nome seja indevidamente rasurado alegadamente por causa do Regulamento Geral da Protecção de Dados.

Por exemplo, o contrato mais recente, abrangendo o período de 1 de Abril a 30 de Setembro deste ano – ou seja, seis meses – e envolvendo um valor de mais de 1,8 milhões de euros, foi assinado por Nuno Roda Inácio na véspera de terminar. Deduz-se que seja a Samsic a continuar, no presente mês de Outubro, a efectuar as limpezas das instalações da Autoridade Tributária. E deduz-se pelo passado desde 2017, porque apesar de múltiplas insistências, o Ministério das Finanças não quis dar quaisquer explicações ou esclarecimentos sobre os estranhos contratos estabelecidos desde 2017 pela entidade que recolhe os impostos dos portugueses e que raramente perdoa falhas.

A forma como os diversos contratos de limpeza têm sido celebrados entre a Autoridade Tributária e a Samsic deixam sérias dúvidas de legalidade, havendo mesmo dois casos onde se evidenciam fortes indícios de terem sido forjados. Em grande parte dos casos, para justificar a assinatura de contratos enquanto já decorriam os serviços a prestar, o contrato invoca retroactividade.

Nélson Roda Inácio, à esquerda (cumprimentando em 2016 o então presidente da autarquia de Pombal) foi nomeado subdirector-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira em 2015, tendo assinado todos os ajustes directos com a Samsic.

Mas essa modalidade, que só pode ocorrer em situações excepcionais e devidamente justificada – e não por norma, como sucede nestes contratos de limpeza –, só pode ser aplicada se não impedir, restringir ou falsear a concorrência prevista no Código dos Contratos Públicos. Ora, sistemáticos ajustes directos com eficácia retroactiva de contratos constituem restrições de concorrência, até porque não se vislumbra qualquer motivo razoável para que, desde 2017, não se consiga pôr em pé um concurso público e que opte por sistemáticos ajustes directos assinados ‘tarde a más horas’.

Paulo Morais, presidente da Associação Frente Cívica diz não se compreender que ajustes directos para serviços desta natureza sejam sistematicamente assim celebrados em detrimento de concursos públicos, ademais sabendo-se que se destinam a aquisição de serviços banais. “Um ajuste directo deve ser uma excepcionalidade, quando sucede algo previsto, e muito menos se justifica alegar por regra retroactividade do início da sua vigência sem sequer a justificar”, salienta.

Mas há dois casos particulares no lote de 17 ajustes directos que se revestem de ainda maior gravidade. Ainda no primeiro trimestre de 2018 – depois de três contratos em 2017, o último dos quais terminara em 31 de Dezembro –, a Autoridade Tributária e a Samsic decidiram assinar um novo contrato por ajuste directo por um prazo de 287 dias.

Ministério das Finanças teve tempo para apresentar o gato Faísca à imprensa, mas não teve para explicar os estranhos ajustes directos da Autoridade Tributária e Aduaneira.

A vigência desse contrato de 2018 iniciava-se no dia 19 de Março e terminava a 31 de Dezembro, mas existem evidências de os preços terem sido inflacionados para compensar a inexistência de suporte contratual entre 1 de Janeiro e 18 de Março. Com efeito, enquanto o preço médio diário das limpezas em 2017 foi de 6.626 euros, o contrato de 2018 (com 287 dias de duração) ficou por 8.837 euros por dia. Ou seja, um aumento de 33%. Se o contrato de 2018 tivesse sido estabelecido para os 365 dias do ano, o custo diário era de 6.949 euros, aproximando-se assim daquele que fora o do ano anterior.

No ano seguinte, em 2019, repetiu-se o expediente para compensar mais ‘acertos’ em limpezas sem contrato, mas com sinais de fraude ainda muitíssimo mais evidentes. Nos primeiros dois meses e meio não se encontra qualquer contrato de limpeza que tenha estado em vigor, mas em 19 de Março desse ano, a Autoridade Tributária decidiu fazer mais um muito suspeitoso ajuste directo beneficiando a Samsic.

Com uma duração de apenas 13 dias, porque só foi assinado no dia 19 e expirava a 31 de Março, envolveu um pagamento de 648.402 euros, significando assim que, formalmente, em cada um dos poucos dias deste contrato de limpeza a Autoridade Tributária pagou 49.877 euros à Samsic. No mês seguinte, em Abril, entraria em vigor um novo contrato por ajuste directo, que durou 275 dias, até ao final do ano. Como teve um preço contratual de 1.984.242,74 euros, significa que por dia custou 7.215 euros, bem demonstrativo de que o contrato de Março de 2019 foi forjado para ter um preço médio mais de sete vezes superior.

Ajuste directo de Março de 2019 só vigorou por 13 dias a um preço diário exorbitante e terá sido o segundo contrato suspeito de ter sido ‘forjado’. Generalidade dos contratos foram assinados quando o prazo de vigência estava a decorrer; em alguns casos quase a terminar.

Para confirmar as fortíssimas suspeitas de contrato forjado em Março de 2019 acrescente-se que os contratos de limpeza a partir de 2020 apresentam um preço médio diário a rondar os 10.000 euros por dia.

Saliente-se também que, desde 2017, os seis maiores contratos por ajuste directo assinados pela Autoridade Tributária e Aduaneira, qualquer um deles acima de um milhão de euros, foram sempre no sector da limpeza e todos a beneficiar a Samsic.

Paulo Morais considera que casos como estes mostram ser fundamental a existência de auditorias sérias “para que não se pense que tudo é possível”. “O Tribunal de Contas não pode manter uma atitude passiva, fazendo apenas análises por amostragem e de forma simples”, defende o presidente da Associação Frente Cívica, para quem se mostra cada vez mais evidente que “o país está a saque”.  

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