Desde segunda-feira, dia em que escrevi o primeiro texto sobre o mais recente episódio do conflito israelo-árabe, que tenho tentado acompanhar a situação através de meios de comunicação portugueses e estrangeiros. É extraordinariamente difícil perceber o que se passa no terreno porque sobram ideologias onde se espera informação. Não há a mais pequena dúvida sobre como este conflito é descrito pelo Ocidente. Com raras excepções, estamos perante terroristas que atacaram uma democracia. Ponto final. Toda a análise que se pode ou deve fazer a partir daí passa para segundo plano.
Eu não consigo, por mais que tente, ver um conflito de um dos lados e muito menos no caso da Palestina. Não se trata de ideologia, trata-se de um simples conhecimento da história e, já agora, de ver e conhecer as condições de vida daquele povo nos territórios ocupados.
Há uns meses um leitor dizia-me, a propósito de um texto onde defendi as negociações em vez da escalada de violência na Ucrânia, que não se pode negociar enquanto o adversário está numa posição vantajosa, de força. Ou seja, há que o enfraquecer (com balas), e depois negociar. Esta é uma posição mais ou menos consensual em relação à invasão russa do Donbass. Primeiro é preciso “cortar-lhes um pouco as pernas” e depois sentar à mesa. Notem que o mesmíssimo raciocínio desaparece quando se fala de Gaza ou da Cisjordânia. Aqui já não se pode enfraquecer o invasor porque passa a barbárie.
Também já ouvi, em horário nobre, que é normal que a nossa simpatia seja maior com o povo ucraniano por estes serem mais “parecidos connosco”. Louros, brancos e de olhos azuis. Para quê aprender história quando os conflitos do mundo se podem resolver com uma boa dose de racismo? Como sou mais parecido com um árabe do que com um norueguês, achei por bem tentar perceber o que por ali se passava e andei a vaguear, no terreno, atravessando os muros entre territórios ocupados e as zonas (teoricamente) controladas pelos palestinianos. É relativamente importante ver para compreender o que se discute.
Dou-vos um exemplo. Ontem, Benjamin Netanyahu, disse que tinha ordenado um cerco à Faixa de Gaza, corte de água e luz, até que os reféns fossem libertados. Ao mesmo tempo, o exército israelita acampou às portas do território, esperando pela luz verde para entrar a atirar para tudo o que mexe.
A ironia aqui está na ordem para “cercar Gaza”. Deixem-me falar-vos sobre Gaza, uma pequena faixa de terreno com 60 quilómetros, cercada pelo mar, pelo Egipto numa pequena porção de terreno (zona de Rafah) e por um gigantesco muro, com os mesmos 60 quilómetros, que separa 2 milhões de pessoas dos territórios ocupados por Israel. Um muro com torres de guardas a cada 150 metros, armas automáticas ligadas a sensores, arame farpado, placas de betão subterrâneas para evitar túneis e todo o tipo de video-vigilância que possa detectar qualquer movimento perto da zona de fronteira. Portanto… o primeiro-ministro de Israel mandou cercar o quê? Quando é que Gaza não esteve cercada nos últimos 30 anos? O muro começou a ser construído em 1994 e ainda estamos a discutir, em 2023, como se os habitantes de Gaza fossem livres de decidir os seus movimentos?
Se percebermos que eles vivem numa prisão desde que nascem, talvez seja mais fácil analisar o ódio pelos seus carcereiros. E é essa honestidade que devemos ter quando discutimos este conflito. É que dou por mim a ver gente, que é vista por uns quantos milhares na televisão, a falar no ataque do Hamas como se tivessem partido de um jardim de flores e iniciado uma guerra nova. Israel colhe os frutos das suas ocupações e criações, a começar pelo próprio Hamas.
Outra coisa que me está a fazer alguma confusão é o relato apaixonado e dramatizado dos sequestros. Há conferências de imprensa com famílias que pedem a devolução dos seus entes queridos por estes não terem qualquer relevância para o conflito.
A primeira coisa que gostaria de dizer é que não imagino o sofrimento de ver um familiar raptado e escondido algures por guerrilheiros. Não consigo perceber sequer, felizmente, o que estão aquelas famílias a sentir. Mas não é verdade que não tenham relevância. Isto não é particularmente simpático de se dizer agora mas, quando alguém aceita mudar-se para uma zona que estava habitada por um povo, entretanto aprisionado a poucos quilómetros dali, devia saber que está a correr riscos e que a sua liberdade significa, literalmente, a prisão de outro ser humano.
Um habitante do Kibutz de Be’eri dizia à CNN internacional que aquela comunidade era pacífica, próspera e que nada fazia prever o que aconteceu. O calmo e pacífico Kibutz de Be’eri está a pouco mais de 7 quilómetros dos muros de Gaza, a maior prisão do mundo onde 2 milhões de pessoas estão encurraladas, para que nas suas antigas moradas floresçam Kibutzs cheios de harmonia. Lamento mas não consigo pactuar com esta hipocrisia. Uma vida é uma vida e pouco me importa a sua origem, raça ou credo.
Os pedidos para que os reféns sejam devolvidos e as imagens das famílias em desespero, sempre com visibilidade em horário nobre nas televisões, também me faz pensar na forma como choramos por uns e desprezamos outros. Desde que Israel ocupou a Cisjordânia, Jerusalém e a Faixa De Gaza, em 1967, já prendeu cerca de um milhão de palestinianos (dados das Nações Unidas). Em detalhe, um em cada cinco palestinianos já foi preso com base em cerca de 1500 ordens militares que foram criadas para controlar o que podem e o que não podem eles fazer.
Ou seja, Israel decide as regras de comportamento com que brinda os invadidos e, sempre que estes não as cumprem, desaparecem. Por uns tempos ou para sempre. Não me lembro de ver, ao longo destas décadas, famílias em Londres, Nova Iorque ou Berlim, em directo à hora de jantar, a ter tempo de antena e comoção, para pedir o regresso dos seus entes queridos. Certamente que, entre um milhão de presos, algum deve ter uns familiares no estrangeiro que sintam a sua falta e consigam falar inglês para as câmaras.
Bem sei que este discurso será confundido com “apoio ao Hamas” quando, o que pretendo, é que mortes e crimes sejam encarados como tal. Venham de onde vieram. Para mim, a fuga da prisão do Hamas (e demais grupos, convém lembrar também que não estão sós na luta armada pela Palestina) não tem qualquer problema, não sou hipócrita. É uma prisão. Já o assassinato de pessoas que estão num concerto, é simplesmente um crime hediondo. O problema é que esse crime é tratado como tal se for feito por árabes e como “direito a resposta” se vier do lado de Israel.
Há aliás um conceito altamente interessante neste conflito, bem patente nas palavras do secretário de estado americano, Antony Blinken, quando disse “we have Israel’s back“. Traduzido para português corrente, significa que Israel pode arrasar com Gaza e país nenhum árabe pode ajudar aquela gente ou os Estados Unidos entrarão no conflito. E quando se fala em arrasar com famílias inteiras na Faixa de Gaza, já não há o problema ocidental das famílias de inocentes ou dos menores de idade.
Ouvi alguns analistas portugueses que defendem que Israel deve aplicar o “olho por olho”, matar em quantidade suficiente para “trazer a paz de volta” (o famoso conceito das bombas do bem) mas não ultrapassar os limites para não ser bárbaro como o inimigo. Ora, esta é uma conta difícil de fazer. Quantos civis pode Israel matar em Gaza para meter o Hamas na ordem e, ao mesmo tempo, aparecer aos olhos do mundo como não-invasor e país civilizado? Eu respondo: tanto faz. Podem matar o que quiserem. Os Estados Unidos estão convosco, logo, a NATO está, a União Europeia também, e até algumas ditaduras árabes do bem (que nos dão uns barris), até são capazes de ficar do mesmo lado.
Já os russos, com um regime pouco recomendável, disseram ontem que no fim deste conflito tinham que finalmente criar os dois estados. Zelensky, por sua vez, vendo que a agenda noticiosa mudou de Kiev para Gaza, acusou Putin de apoiar o Hamas e o terrorismo em geral. E até por ter instigado a covid num morcego chinês qualquer.
Com os poderes todos alinhados e os lados escolhidos, agora resta aos habitantes de Gaza fazer o que fazem melhor. Morrer. E em silêncio.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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