Recensão: A voz das mulheres

A cláusula familiar

por Maria Carneiro // Outubro 13, 2023


Categoria: Cultura

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Título

A voz das mulheres

Autora

MIRIAM TOEWS (tradução: Ana Maria Pereirinha)

Editora (edição)

Alfaguara (Setembro de 2023)

Cotação

15/20

Recensão

“O que se segue é fruto da imaginação feminina” – frase do início do filme inspirado neste livro.

A história, arrepiante, passou-se numa comunidade religiosa rural, de menonitas, em Manitoba, na Bolívia. Trata-se de um acontecimento real que Miriam Toews ficciona após a prisão dos agressores sexuais, de um grupo indeterminado de mulheres (fala-se em várias centenas), que violaram, repetidamente, e ao longo de anos, depois de as adormecerem com recurso a uma substância química, usada como anestesiante de bovinos.

O livro desenvolve-se através de uma série de diálogos transcritos por August Epp, um professor recentemente readmitido na colónia depois da excomunhão, anos antes, dos seus pais por terem feito circular literatura proibida pelos líderes religiosos.

A narrativa anda à volta do relato dos ataques levados a cabo durante a noite, por parte do que alguns membros da comunidade afirmaram serem fantasmas ou demónios. Outros culpavam a “imaginação feminina selvagem” – até que vários dos homens por trás dos ataques são descobertos e detidos. O irónico é que essa detenção serve, não para os punir, mas sim para os proteger da fúria de algumas mulheres.

Enquanto os homens se dirigem à cidade para resgatar os acusados, oito mulheres– entre elas, Ona Friesen, grávida do filho do seu violador, e a adolescente Neitje, cuja mãe se suicidou – reúnem-se, secretamente, num palheiro para decidir como responder aos acontecimentos. Elas têm apenas dois dias para decidir o que fazer antes dos homens regressarem.

É Ona que convida o pária da cidade, para servir como escrivão. Ela quer que o encontro seja registado para a posteridade e, na comunidade, apenas os homens podem aprender a ler e escrever. E August fá-lo em inglês, uma vez que depois da excomunhão os pais emigraram para Inglaterra.

Miriam Toews explora um universo de pensamentos revelador sobre género, justiça, liberdade e poder. No entanto, o seu objetivo não é tanto o trauma dessas mulheres, mas a sua capacidade de sobrevivência e resiliência. Numa entrevista, a autora diz: 'Eu precisava de escrever sobre essas mulheres. Eu podia ter sido uma delas'. De facto, ela própria nasceu numa comunidade menonita do Canadá.

Em vez de insistir nos crimes, Toews confere um poder extraordinário às suas protagonistas, enquanto elas discutem sobre a melhor forma de permanecer fiéis a um sistema que as traiu tão brutalmente. O resultado improvável é uma lição magistral de ética e, surpreendentemente, dado o título, A voz das mulheres, ser narrado por um homem, acrescenta-lhe uma ironia inesperada. Depois de tudo o que passaram, as ideias das mulheres passam a ser o centro, e elas conseguem fazer com que um homem escreva aquilo que elas pensam e dizem.

A voz das mulheres funciona assim como um diálogo socrático. Elas tornam-se construtoras do seu próprio futuro. À medida que o romance avança, tornam-se cada vez mais conscientes desse futuro. Discutem acaloradamente sobre a escolha das palavras, procurando não apenas clareza, mas também precisão.

Ao ouvir as mulheres falarem, August pensa: "Lembro-me de como o meu pai me disse que os pilares gémeos que protegem a entrada do santuário da religião são a narrativa e a crueldade". No celeiro, que se torna o santuário destas mulheres, contar histórias é um ato coletivo de libertação e de catarse mas também de clarificação. Sócrates ficaria satisfeito. 

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