EDITORIAL DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA

Hoje, sem tintins, o jornalismo é pipi

por Pedro Almeida Vieira // Outubro 16, 2023


Categoria: Opinião

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Desde Setembro, de uma forma mais incisiva e sistemática, o PÁGINA UM tem dedicado, mesmo com parcos meios, uma especial atenção aos contratos públicos, incluindo as autarquias e sobretudo a Administração Pública, com uma secção própria: Res Publica. De uma forma simplista, olhamos para as despesas – e a forma como (não) se cumprem as regras da transparência, da contratação pública e da boa gestão da res publica – que ficaram consignadas, algures, num Orçamento de Estado, quer tenha sido ou não classificado como pipi.

Os Orçamentos de Estado são, como se deveria saber, e de uma forma também simplista, complexas folhas de cálculo, onde se coloca, de um lado, a despesa previsível – e que se deseja ser possível fazer –, e do outro lado, a receita que um Governo sente ser possível sacar dos contribuintes. Mas aprovado com maior ou menor dificuldade o Orçamento do Estado, o bom jornalismo sabe de antemão o enxame de interesses que por ali pululam. E é aí que o bom jornalismo, como defensor do interesse público e como um dos pilares da democracia, se deve mostrar. Sem tibiezas. Com ousadia. Sem medos. Com coragem. Sem ser pipi. Com tintins. É isso que o PÁGINA UM se esforça por fazer.

Embora a má gestão dos dinheiros públicos não seja propriamente uma surpresa – o PÁGINA UM não descobriu, com a nova secção que criou, práticas sobre as quais nada se sabia ou nada se desconfiava –, pessoalmente tem-me causado estupefação a dimensão das irregularidades, dos despesismos e dos expedientes onde tresandam combinações e campeia a corrupção moral, a mãe da corrupção financeira. Quer em contratos de milhões de euros quer em contratos de poucos milhares de euros, encontram-se esquemas, quase sempre onde os ajustes directos – aqueles que se combinam por telefone, por e-mail ou à mesa de um restaurante. E isso é o que facilmente se pressente na documentação presente no Portal Base, e onde estão ausentes, em muitos casos, cadernos de encargos e outros elementos procedimentais numa clara tentativa de obscurantismo.

Acredito que haja gestores impolutos e instituições impolutas, mas começo a pensar que, daqui a nada, tenho de me investir de um qualquer Lancelot ou Percival para encontrar o Santo Graal. Isto porque, hélas, até naquela implacável máquina do Estado que, imune a sentimentalismos, nos sequestra o dízimo de contribuintes, mais as moras por demoras ou as multas por esquecimentos (mais ou menos negligentes), acabamos por encontrar os males de Frei Tomás: prega rigor, pratica vícios. Os contratos por ajuste directo, 17 feitos desde 2017, por um subdirector-geral dos Impostos (chamemos assim por simplificação), em benefício de uma mesma empresa, com claros e evidentes sinais de combinações à margem da lei, mostram assim o pântano em que vivemos. Sobretudo porque o Ministério das Finanças nem sequer se julga no dever de comentar ou agir.

O silêncio do Ministério das Finanças e do ministro Fernando Medina – patente o caso dos 17 ajustes directos irregulares para limpezas por um subdirector-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, e que já se fez sentir nas notícias do PÁGINA UM sobre as dívidas ao Estado da Trust in News e da Global Media, e ao despesismo no Forum da OCDE sobre transparência fiscal –, não se deve ao facto de ter andado a preparar um Orçamento do Estado (pipi ou não-pipi.)

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A causa deste silêncio, e de tantos outros silêncios, advém da assumpção (justa, diga-se) de que hoje a imprensa mainstream é formada sobretudo – e exceptuando casos cada vez mais raros e, por minoritários, sem força nas redacções – por jornalistas pipis, ademais comandados por directores (e directoras) sem tintis, no sentido metonímico do termo (aviso já os wokistas) de ausência de coragem e de falta de ousadia. Se a imprensa de massas não fala, não existe. E os políticos e as empresas agora sabem como, com certas massas e manhas, “silenciar” a imprensa mainstream.

Não tenho dúvida alguma que, até há décadas, e falo pela minha experiência jornalística, mais de metade dos casos denunciados pelo PÁGINA UM seriam manchete ou primeira página na generalidade da imprensa mainstream, ou teriam eco em follow up (seguimento). Em alguns casos, teriam consequências para os visados. Mas o jornalismo de hoje não é um verdadeiro jornalismo. É um sucedâneo adulterado, que confiscou a denominação. No jornalismo de hoje já não estão jornalistas nas cúpulas, nas chefias: estão sobretudo marketeers e directores comerciais travestidos de jornalistas encarteirados mas preocupados com as suas vidinhas, as suas casas de férias, as propinas dos filhos no colégio privado e as remodelações da cozinha (se fosse da biblioteca, seria menos mau; seria sinal de alguma erudição).

Hoje, o jornalismo de investigação e de denúncia – que é a essência pura da imprensa – está varrido das redacções, e dá-me uma dor de alma perceber como as parcerias comerciais com autarquias, Estado e empresas privadas estão a matar o jornalismo – e de uma forma pornográfica, sendo os directores e directoras de alguns órgãos de comunicação social os protagonistas, de perna aberta. Hoje, há temas e escândalos que jamais serão notícia. Hoje, o homem que mordeu o cão só será notícia se o homem que mordeu o cão não tiver uma parceria comercial com órgãos de comunicação social. Hoje, perdidos os tintis, quase só nos resta um jornalismo pipi.

Hoje, a promiscuidade entre a política – nas várias acepções do termo – e o jornalismo (e certos jornalistas) está ao nível do pântano – pântano não, que é ecossistema rico; corrigido assim: cloaca. Nos anos 90 e na passagem do século, quando colaborei, entre outros, no Expresso e na Grande Reportagem, sempre senti as pressões, que são habituais, em assuntos delicados sobre os quais escrevi, mas havia então alguma decência: as chefias não vergavam ou se o faziam não era evidente. Em 2006 senti, pela primeira vez, que já vergavam e não tinham pejo, aquando de um lamentável episódio no Diário de Notícias protagonizado por um subdirector, que não passava de um agente socialista, tanto assim que poucos meses depois era vê-lo já como assessor de um ministro socrático, e nunca mais o vi a sair da esfera de influência do Partido Socialista. Esse caso contribuiu, aliás, para o meu afastamento do jornalismo durante cerca de uma década.

Mas, olhando agora para esse episódio de 2006, acho que piorámos incomensuravelmente. E não foi apenas com a pandemia. Hoje, há notícias que simplesmente são engavetadas ou nunca recebem luz verde. Ou então são despidas de qualquer polémica, usando-se estilos inócuos e fofinhos. Os próprios jornalistas têm medo, ou são formatados para não se arriscarem no confronto com os poderes instalados, a menos que aqueles estejam em desgraça ou em aparente queda.

Os supostos reguladores (ERC, CCPJ e até, enfim, o Sindicato dos Jornalistas mais um seu apêndice chamado Conselho Deontológico) são hoje instrumentos sobretudo de condicionamento do jornalismo independente, para, através de pareceres e recomendações que não passam de bitates, dar uma capa de impunidade aos infractores, e com a inacção darem uma ideia de que não existem vergonhas na classe. Quanto mais denúncias o PÁGINA UM faz da promiscuidade que se vive na imprensa mainstream, mais ataques recebe dos supostos reguladores.

Veja-se a título de exemplo, duas deliberações da ERC contra o PÁGINA UM (e virão mais) por notícias que até resultaram em processos contra os queixosos na Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS).

Veja-se ainda o processo disciplinar instaurado pela CCPJ – e por empenhos da sua presidente, Lucília Gago, despeitada por notícias do PÁGINA UM – por mor de uma queixa do almirante Gouveia e Melo por outra notícia que denunciava evidentes (repito, evidentes, e até documentadas) irregularidades no processo de vacinação de médicos não-prioritários contra a covid-19, e que também resultou numa inspecção ainda não concluída (a aberta em Janeiro passado) pela IGAS. A fase de instrução anda a marinar há cinco meses, talvez porque o relator anda a pensar se também deve processar disciplinarmente alguns dos seus colegas da CMTV.

E veja-se também o papel do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas que, em vez de se preocupar com a promiscuidade de “jornalistas comerciais” (onde até se inclui um vogal da direcção do próprio sindicato), anda agora entretido a fazer pareceres, ora para fazer fretes à presidente da CCPJ, ora para criticar o estilo de escrita usado em rigorosas e documentadas denúncias sobre contratos públicos do Hospital de Braga.

Aliás, este último caso é exemplificativo sobre o desplante que agora impera: é tão grande o à-vontade das falcatruas e das irregularidades e ilegalidades que os seus autores sentem que até conseguem, com bons empenhos, censurar e difamar um jornal que, por independente, ainda grita que ‘o rei vai nu’. E o facto é que conseguem, mesmo não necessitando sequer de provar que o jornalista mentiu.

Bem sei que a vida nunca esteve fácil para o jornalismo independente, e que melhor parece estar para os jornalistas pipi sem tintins. E quando criei o PÁGINA UM sabia que um jornalismo independente, fracturante, sem parcerias comerciais e ideológicas nem agendas obscuras, e ainda mais denunciando as promiscuidades da imprensa mainstream, estaria sujeito, mesmo entre os seus pares (ou sobretudo usando estes), a actos de boicote, de censura e de difamação – por exemplo, anda por aí um professor universitário de Coimbra na área da Comunicação Social, com excelentes ligações aos mentideros, a esgadanhar-se para encontrar “provas” da ligação do PÁGINA UM à extrema-direita. E prevejo que se não as encontrar, cansando-se, as tratará de inventar… ou de fazer mais uns pareceres “mui isentos” sobre as minhas “tropelias deontológicas” ali para os lados do Chiado.

Hoje, bem sei que algumas das minhas notícias, mesmo com o genuíno espírito daquilo que deveria ser a imprensa, podem cair em saco roto. Podem politicamente ser ignoradas, porque apenas lidas por pouco mais de 20 mil pessoas, como esta, sobre os 17 ajustes directos para limpezas do subdirector-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira. Podem jornalisticamente ser ignoradas pela imprensa mainstream.

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Mas prefiro continuar neste nicho do que, por exemplo, fazer o jornalismo ao estilo do making of do Orçamento do Estado publicado no Público na sexta-feira passada por uma directora-adjunta e por uma redactora-principal (não foram jornalistas de uma qualquer secção de social ou de vida mundana), onde se teceram pérolas deste lustre (negritos meus):  

Mas há sempre coisas de última hora. A equipa das Finanças dorme muito pouco nos dias que antecedem a entrega do Orçamento na Assembleia. Na véspera da entrega, o ministro dormiu seis horas – os assessores obrigam-no, não o querem com olheiras no dia da apresentação solene ao país, o momento alto do ano nas Finanças, um gran finale a que grande parte dos funcionários da casa assistem. Mas se dormiu seis horas na noite antes da conferência de imprensa, na antevéspera Medina dormiu tão pouco que ainda acabou por fazer uma sesta no ministério.

Os dias que antecedem a entrega “têm 25 horas”, segundo um dos “homens (e uma mulher) do Orçamento”. Há uma equipa permanente que, tal como o ministro, dorme muito pouco. Foi com essa equipa que o ministro se reuniu no princípio de Setembro para fazerem um brainstorming fora do ministério a um sábado de manhã, 8 de Setembro, no Bairro Alto.

Foi uma reunião fora do horário de trabalho, mas o objectivo era pôr os homens do Orçamento a pensar “fora da caixa”.

(…)

Antes do gran finale que é a apresentação ao país, o ministro vai ao Parlamento entregar a proposta.

Mas este momento não é exactamente o fim. O Orçamento foi entregue no Parlamento, onde pode sofrer alterações. Fernando Medina rompeu com uma tradição de anos e anos em que o Orçamento chegava a altas horas da noite ao Parlamento e inaugurou os “orçamentos diurnos”. Desde o ano passado que passou a ser entregue aos deputados à hora do almoço, o que permite fazer a conferência de imprensa em que o explica ao início da tarde. É uma questão de “organização do trabalho”, defende. Foi o que “combinei com o primeiro-ministro e com a ministra da presidência”. “Queria fazer mesmo isto.”

Quem escreve isto, nunca, jamais, escreverá, ou quererá que se escreva, em simultâneo, sobre estranhos contratos na Autoridade Tributária e Aduaneira em negócios de milhões com uma empresa de limpeza. Ou não quer que se escreva sobre as dívidas ao Estado de empresas de media, como as da Trust in News e da Global Media. Ou não quer que se escreva sobre… enfim, sobre muita coisa. E mesmo que batam muito no peito sobre o jornalismo e a independência do seu jornalismo, nada mais fazem do que jornalismo pipi sem tintins. E isto é a morte do jornalismo.

Por isso, caros leitores (onde se incluem, obviamente, as leitoras, mesmo se caras), apenas peço uma coisa: no dia em que me virem a escrever assim, sobre o poder, avisem-me, porque o PÁGINA UM terá de ser encerrado por ter perdido os tintins e só já conseguir fazer um jornalismo pipi.

E agora, se não se importam, o resto da tarde será dedicado exclusivamente a tratar de questões processuais do PÁGINA UM relacionadas com pedidos de informação ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos e de alguns casos em curso no Tribunal Administrativo de Lisboa, incluindo um em que a CCPJ é réu. A notícia sobre a “fantochada” (será mesmo esse o termo que usarei no título, avanço já) do arquivamento do processo disciplinar ao Doutor Filipe Froes terá de ficar para amanhã… Já agora, embora fosse desnecessário: baseia-se em documentos.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

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