VISTO DE FORA

Nove dias de bombardeamentos: vamos então aos números

person holding camera lens

minuto/s restantes


Por estes dias, vou enchendo a paciência para lá do limite do saudável com histórias da carochinha e narrativas de virgens inocentes que já não consigo mesmo suportar. Sabemos já que uma das grandes vantagens de Israel nesta ocupação da Palestina, para lá do suporte financeiro e bélico dos Estados Unidos, é deter um departamento de marketing, infinitamente superior ao dos adversários, que serve para plantar histórias um pouco por todo o globo.

Por exemplo, a CNN portuguesa entrevistou o embaixador de Israel e, pela mesma altura, um político representante da Palestina. Os discursos não poderiam ser mais diferentes. O primeiro, com um inglês impecável, dirigia-se ao pivot com um: “João, você vive em Portugal, é muito afortunado por isso, está em segurança. Agora imagine que ia ao NOS Alive, e, de repente, entrava por lá um grupo armado que começava a matar toda a gente!”

man waving flag

O João (Marinheiro) lá foi digerindo a coisa, e entretanto mete a pergunta fatal: “mas agora o que significa o direito de defesa de Israel?”. Nesta altura, já as mortes palestinianas tinham ultrapassado as baixas israelitas. O embaixador foi rodeando, rodeando, e dizia que não podia revelar os planos, mas que, depois disto, nem o Médio Oriente voltaria a ser o mesmo, nem o Hamas teria nova oportunidade de fazer algo semelhante. Quando o “João” lhe perguntou como é que iriam evitar as mortes civis, ele disse que iam fazer o melhor possível para salvar inocentes, porque, como se sabe, eles já estão lá para escudos humanos de qualquer forma.

Portanto, com um jargão fantástico e a tranquilidade de quem nos tenta vender uma Bimby, o embaixador israelita foi apresentando o plano para terraplanar Gaza. E muito de vós foram ouvindo aquilo e pensando que, enfim, é natural, afinal, o Hamas matou mulheres e crianças inocentes e jovens num festival. Se agora dois milhões de pessoas, que estão presas desde que nasceram, tiverem de pagar mais um bocadinho, tudo bem, compreende-se. É a clássica lei de talião: “vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”, mas transformada na versão ’olho por vários olhos” et cetera.

Já o representante da Palestina, munido de um inglês mais rudimentar, dizia algo de puro e simples senso comum: se Israel viesse com uma proposta para os dois Estados e aceitasse negociar, o problema desaparecia. O conflito, o Hamas, o radicalismo, as mortes. E acrescentou, olhando para João Marinheiro: “acha que nós não gostamos de paz? O conflito começou quando eu era criança, e agora, quase a chegar à reforma, ainda não tive um dia de paz.”

blue and white flag on pole

O primeiro problema é que não há negociação, não é? Nem agora, nem em momento algum deste século. Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro israelita com mais tempo no cargo (já vai na sexta vez), teve todas as oportunidades de trabalhar na opção que facilitaria a paz, mas o que fez foi incentivar colonatos e aumentar a repressão. Há entrevistas de Netanyahu nos Estados Unidos, no final da década de 70, onde dizia que o senado norte-americano não podia permitir a opção dos dois Estados porque seria injusto para o povo judeu. Nunca este homem quis outra coisa que não fosse expulsar os árabes das suas casas.

Quando se fala do Hamas como a origem de todos os males, damos um passo maior no índice de estupidez do que aquele já tínhamos dado com a “origem do conflito na Ucrânia em 2022”: a Faixa de Gaza, que era controlada pelos egípcios, começou a ser povoada pelos palestinianos expulsos das suas casas depois da primeira guerra israelo-árabe, em 1948.

Não sei se estão a perceber o que vem a seguir. Já os palestinianos viviam em campos de refugiados ou em zonas militarmente controladas há quatro décadas quando o Hamas foi fundado, no final da década de 80. Portanto, não é a coisa mais estranha do Mundo ver o surgimento de um movimento radical quando prendemos pessoas durante 40 anos. Bem sei que, pelos relatos do Antigo Testamento, não são tantos como os 400 anos dos judeus sob o jugo dos egípcios, e que só terminou de forma nada pacífica lembremo-nos, com o Êxodo de Moisés – mas sempre são 40 anos, não é?

E já agora, apesar de não ser estranho, convém lembrar sempre que Israel achou uma óptima ideia o aparecimento do Hamas e até ajudou, porque lhes dava jeito que fizessem uma perninha na luta com a Organização de Libertação da Palestina (OLP) de Yasser Arafat.

three men and one woman soldiers standing on rock during daytime

Bem sei que já falei disto, mas parece-me algo inacreditável que se repitam horas e horas a fio em horário nobre, sem explicar por um minuto que seja que esta gente não nasceu nas árvores, e que os sentimentos de ódio a Israel também não apareceram durante aquele concerto. Sem enquadrar as acções no contexto, estamos só a ter uma discussão de surdos sem qualquer interesse e puramente assente em ideologias.

Entre 2008 e 2020, nos diferentes conflitos entre Israel e palestinianos, estimam-se 5.600 mortes e 115.000 feridos para o lado árabe, e do outro lado, 250 mortes e 5.600 feridos.

Entendam-me, não quero com isto dizer que 250 vidas valem menos do que 5.600. Digo é que, quando se mata 22 vezes mais, é normal que, aqui e ali, vão aparecendo movimentos radicais assentes em ódio. Se pelo menos percebermos esta parte, já conseguimos discutir o conflito para lá dos inocentes num festival que foram atacados por bárbaros. É verdade, mas não é toda a verdade.

Só nesta guerra, a tal onde Israel teve mais mortos do que nos 20 anos anteriores, ao fim de nove dias de bombardeamentos em Gaza já morreram quase 3.000 palestinianos e há 10.000 feridos e quase um milhão de deslocados do norte de Gaza.

PALESTINE

Segundo as Nações Unidas, estima-se que mais de 1.000 pessoas ainda estejam presas (mortas provavelmente) nos escombros. A resposta, o tal direito de defesa que os Estados Unidos apregoam no seu périplo pelos países vizinhos, é assim, há 40 ou 50 anos, ir ao pátio da prisão onde permitem que os palestinianos sobrevivam, e despejar bombas em cima de pessoas que não têm para onde fugir. Como não odiar quem faz isto?

Que poderá acontecer quando a invasão terrestre começar? Espera-se que os vizinhos fiquem a assistir? A Europa pede que a força não seja excessiva (o tal matar mas com cuidado), os Estados Unidos voltam para a sua guerra preferida (a Ucrânia tem de esperar um bocadinho), e nós, que andamos a apoiar o enfraquecimento de uma super-potência, voltamos a viver o problema de um Mundo controlado por apenas um país sem qualquer contra-poder.

Depois da covid-19, da Ucrânia e dos juros da Lagarde, o que precisávamos mesmo era de mais um massacre em Gaza e eleições norte-americanas. E pensava eu que 2020 tinha sido um ano de merda.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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