Recensão: A Louçana Andaluza

Retrato da mesa e da cama na Roma renascentista

por Paulo Moreiras // Outubro 16, 2023


Categoria: Cultura

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Título

A Louçana Andaluza

Autor

FRANCISCO DELICADO (tradução: Nuno Júdice)

Editora (Edição)

Tinta da China (Agosto de 2023)

Cotação

16/20

Recensão

É a partir da publicação da novela La vida de Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y adversidades, de autor anónimo, provavelmente no ano de 1554, que se estabelece o nascimento do género literário apelidado de Picaresco, um género que fez furor em Espanha durante o Siglo de Oro e que estendeu a sua influência por vários países europeus, entre os quais Portugal, até aos dias de hoje. Porém, alguns autores consideram A Louçana Andaluza, livro “escrito em Roma por volta de 1524 e publicado de forma anónima em Veneza, provavelmente em 1530”, como sendo o percursor da novela picaresca, devido às inúmeras características que enformam o género. Não obstante tais considerações, a verdade é que esta novela curta conquistou lugar cimeiro na literatura ocidental.

Apesar de publicada sem identificação do autor, sabe-se que o seu autor foi um clérigo de nome Francisco Delicado (1480-1535), natural de Córdova, provavelmente de origem judaica, e que, após o decreto de expulsão determinado pelos Reis Católicos, em 1492, abandonou a pátria para se exilar em Itália como cristão-novo. 

Sabe-se também que foi um padre licencioso e assaz frequentador de bordéis onde, a dada altura, terá contraído o mal gálico ou sífilis, tendo padecido de semelhante maleita durante vinte e três anos. Quando se curou, Delicado escreveu um tratado acerca do morbo gálico e da sua cura através de um remédio originário das Índias Ocidentais. E foi devido a esse contratempo que enveredou pela escrita desta novela, como “modo de esquecer as dores provocadas”, mas também para ganhar algum dinheiro com ele, uma vez que o autor se achava num aperto financeiro.

O livro, após a sua publicação, provocou escândalo “e a liberdade com que trata situações tão escabrosas para a moral da época, usando uma linguagem que ainda hoje não faz parte das boas convenções sociais, não permitiram que o livro fosse conhecido até ao século XIX, quando, na Biblioteca Imperial de Viena, foi descoberto por Fernando Wolf, em 1842, o único exemplar da obra que chegou até nós”, explica Nuno Júdice, tradutor da obra, no Prefácio

Com este livro, o autor pretendeu fazer o retrato de uma certa Aldonça, mulher nascida em Córdova, na Andaluzia, que, após ficar órfã decidiu buscar melhor fortuna e ir viver para Roma que, naquele tempo, se dizia ser o “triunfo de grandes senhores, paraíso de putas, purgatório de jovens, inferno de todos, cansaço de animais, enganos de pobres, barraca de velhacos”, e onde se havia estabelecido uma forte comunidade espanhola, principalmente constituída por judeus fugidos de Espanha.

Francisco Delicado, ao desenhar este retrato “tão natural que não há pessoa que tenha conhecido a senhora Louçana, em Roma ou fora de Roma, que não veja claramente como foi tirado de seus actos e meneios e palavras”, também nos revela a Roma renascentista nas primeira décadas do século XVI, tempos de esplendor e luxúria e a a sociedade e as instituições eclesiásticas daquele tempo, com um olhar atento e perscrutador acerca da vida nos bordéis da época, num tom irónico mas também sarcástico, mordaz.

Uma narrativa burlesca, erótica, mas também satírica, de recorte picaresco, em jeito de paródia aos livros com cavaleiros heróis e aventurosos, composto por 66 capítulos, aqui designados pelo autor como “mamotreto”, em jeito de diálogo, uma das formas literárias mais em voga na época, carregada de eufemismos e metáforas eróticas, tanto sobre os genitais do homem como da mulher, assim como do acto sexual em si.

Outra das grandes curiosidades do livro são as referências à culinária da época, tanto à da Andaluzia como à de Roma, a pratos típicos mas também aos muitos ingredientes que nesses locais se encontravam, evidenciando um conhecimento apurado sobre os ingredientes, os rituais e os pratos que chegavam à mesa das várias classes sociais, incluindo aquilo que se comia nas tabernas ou nos bordéis. 

Por aqui se acham referências a pão ázimo, biscoito de manteiga com açúcar, pão de especiarias, carne estufada, peito de carneiro, guisado de beringelas, buchos de cabrito, cabidelas, cabrito salpicado com limão de Ceuta, refogados de peixe seco com rúcula ou leitão assado, “flocos, bolinhos, rosquinhas de gengibre, rodelas de cânhamo e alho, jogados, sopas, folhados, farinha de milho mexida em azeite, ervas e nabos sem toucinho e com cominho, couve marciana com alcaparra”.

Além destas referências, Delicado alude também ao livro De voluptatibus de Platina e ao De re coquinaria de Apício, destacando que a comida confeccionada com fogo de carvão e panela de barro eram tidas como das melhores. Mas as referências não se esgotam somente na culinária, existindo também bastantes alusões aos cosméticos usados pelas mulheres e a todo o sortido de expedientes que elas usavam para se enfeitar e adornar, aos tecidos e à moda em voga por aquelas paragens, bem como a certas mezinhas para o tratamento de determinadas maleitas. 

Um livro de leitura fácil e breve mas que deverá ser degustado com lentidão para assim ser mais gratificante a sua leitura.

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