Tinta de Bisturi - Opinião de Diogo Cabrita

Saúde: uma autópsia – parte III

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A grande realidade: a saúde converteu-se num sistema ao estilo da McDonald’s. Todos os actos e procedimentos e diagnósticos são codificados numa classificação estatística internacional, o ICD-10. Todos os serviços são auditados, ou querem ser, por normas internacionais ISO, por vezes por certificadores internacionais.

Todos os profissionais são formatados e formados em escolas, com cursos – menos os que entram por cunha (que na McDonald’s não acontece de modo tão partidário). 

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Temos um sistema repetitivo, verificado, com inúmeros protocolos e consentimentos, regras muito específicas, e sobretudo cada dia mais mecanicista. Os programas pretendem mais vendas, menores custos, mais eficiência, menos consumo, mas simultaneamente mais segurança para o prestador, e em tese mais segurança para o consumidor. 

De facto, a pressa é inimiga da qualidade, embora quanto mais se faz e se repete menos nos enganamos, menos erros existem. A saúde McDonald’s é uma ideia que eu próprio alimentei durante décadas. No fundo, mais gente pode ser tratada. Conseguir por preços menores, objectivos mais vistosos, é um sonho de qualquer empresário.

Os problemas surgem, porém, nas altas mais precoces, nos internamentos que estão sob a pressão de novas chegadas, de ritmos de produtividade aumentados, com menos camas, com menor relação profissional/ doente. As rotinas tornam-se cegas e, portanto, fazem-se inúmeros exames em excesso, criam-se mecanismos protocolados que são cegos à individualidade, desenham-se normas protectoras da decisão, mesmo que incluam inocuidades, desperdícios, crimes ao ambiente.

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A saúde está carregada de parvoíces – como a esterilização do ânus ou da boca (obviamente impossíveis porque a sua existência é imunda e assim deve ser) –, os pensos estéreis em feridas conspurcadas, a utilização de material esterilizado para fazer um toque rectal. Há toneladas de desperdício nas compras de material com datas de utilização curtas. O lixo gerado por um acto médico é impressionante. Em rigor, nunca se provou que houvesse mais infecções ou problemas quando a Medicina se exercia nos consultórios não escrutinados pela Entidade Reguladora da Saúde (ERS) ou pelas Administrações Regionais de Saúde (ARS) ou pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS).

A Fábrica da Saúde não é um serviço nacional. A fábrica é um negócio onde milhares de pessoas entram carregadas de medos gerados por informação estúpida e viciosa (só se fala do mau e do que corre mal), e por essa razão se entregam a outra crença: querem informações (consentimentos informados) de que não percebem patavina.

Outra crença vem das farmacêuticas e da tecnologia, que contra todo o ruído do medo, arvoram que a saúde está muito evoluída. De facto não está, e pode correr mal tudo aquilo que se faz. Uma punção, um exame simples, uma cirurgia, podem correr mal – não que maioritariamente seja assim, mas inevitavelmente, por vezes, não é como se quer.

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Uns ganham milhões nas vendas – querem que até os que têm saúde procurem a fábrica. Outros ganham produzindo números e incentivam actos que se podiam evitar. Outros procuram conforto para as frustrações na fábrica. Uns desejam o impossível, arriscam o imponderável, pedem a ultrapassagem dos limites médicos. Os trabalhadores pedem exames em excesso para se protegerem das decisões.

Os políticos tornaram a Saúde um campo ideológico. Tudo de graça para todos é uma corrida para a bancarrota da prestação. A Saúde é como uma fábrica gerida por um deslumbrado. As carnes entram para fazer salsichas em grande número e já não importa a forma. Importa o registo, a escrita e a contabilidade, mesmo que o cuidar se perca, mesmo que a mão carinhosa invisível desapareça.

Como se aumentam custos materiais na Saúde, reduz-se em pessoal. Não se promove o incentivo à prestação de qualidade. Não se premeia os que melhor trabalham e cuidam. Não se opta pelo melhor, mas pelo mais barato. Este paradigma McDonald’s é uma construção ideológica de uma esquerda que acredita que somos todos iguais, que podemos criar fórmulas igualitárias, repetíveis e, sobretudo, que podemos padronizar tratamentos – a tal evidência.

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A medicina baseada na evidência é uma alegoria com custos demenciais que vai conduzir à destruição do Serviços Nacional de Saúde (SNS) por uma via sofisticada. Eu já encontrei essa outra estrutura na Arábia Saudita, quando um administrador observa e manuseia os seguros que o cliente paga e decide aquilo que o médico pode ou não fazer. A prestação é gerida pelo pagador – o seguro.

Os médicos estão a ser desenhados neste padrão. As escolas não se importam com o ensino dos custos, com a necessidade de gestão clínica, porque agora o importante é sugar do pagador o mais possível, gerindo do menu aquilo que se aplica melhor.

Diogo Cabrita é médico


Recomenda-se a leitura da parte I e da parte II desta Saúde: uma autópsia


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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