ERC diz que 'essência do cartoon é a sátira e o humor'

Carreira de tiro: queixas de PSP e GNR contra ilustradora da RTP falham alvo

por Pedro Almeida Vieira // Outubro 23, 2023


Categoria: Exame

Temas: Imprensa

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É através de ‘mais discurso’, e não da repressão do discurso, que poderá ser rebatido o pensamento expresso no cartoon. Esta é a conclusão de uma deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) como reacção a queixas formais da direcção da PSP e da GNR, e de quase uma centena de pessoas, que não apreciaram um cartoon que colocava a tónica do racismo das forças policiais. A ilustradora Cristina Sampaio, que concebeu o vídeo no rescaldo da morte, em Junho passado, de um jovem magrebino francês pelas autoridades policiais, diz-se “satisfeita” por a ERC ter reconhecido que “a essência do cartoon é a sátira e o humor, que devem ser exercidos em total liberdade” numa sociedade democrática.


Que se discuta, mas que não se reprima – este é o sentido de uma deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), hoje divulgada na íntegra, sobre o polémico cartoon que aborda o racismo nas intervenções policiais, transmitido pela RTP no passado dia 7 de Julho, no intervalo da emissão televisiva do NOS Alive. A deliberação surge como efeito de queixas formais da Guarda Nacional Republicana (GNR) e da Polícia de Segurança Pública (PSP), que também apresentou já uma queixa no Ministério Público, mas que acaba por ficar ‘esvaziada’ com a análise do regulador dos media.

O cartoon, em formato vídeo, da autoria da experiente e ilustradora Cristina Sampaio – que integra o colectivo Spam Cartoon – retratava um polícia numa carreira de tiro a disparar contra vários alvos, constatando-se por fim uma gradação comprometedora gradação no nível de “acerto”: o primeiro alvo. representando um homem branco, tinha apenas um tiro, mas ao lado do corpo, enquanto o quarto “alvo”, representando um homem negro, estava ‘fulminado” com certeiros sete tiros na cabeça e 11 tiros no tronco.

Embora o cartoon fizesse alusão ao jovem francês Nahel, de 17 anos, de origem magrebina, morto a tiro pela polícia de Nanterre, no passado dia 27 de Junho, e independentemente da hora tardia da transmissão do cartoon, os dirigentes da Polícia de Segurança Pública (PSP) e da Guarda Nacional Republicana (GNR) não apreciaram, o mesmo sucedendo com diversos partidos políticos como o PSD e o CDS, e ainda o Chega, que chegou a propor audições parlamentares da RTP e ERC.

O próprio Governo mostrou então desconforto, com o ministro da Administração Interna a dizer que contactara o presidente do Conselho de Administração da RTP “para manifestar desagrado com o facto de um ‘cartoon’ daquela natureza ter sido exibido num festival que tem tantos milhares de jovens”.

A própria direcção da PSP anunciou mesmo, três dias depois da emissão do cartoon de Cristina Sampaio, ter avançado com uma queixa-crime ao Ministério Público por considerar que “propala[va] factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio e a confiança devida” àquela força policial. Em comunicado, a PSP disse então que fora já “elaborado auto de notícia (…) com referência aos factos apurados até ao momento e à informação que consideramos ter relevância criminal”.

Tal como também prometera, a direcção da PSP formalizou uma queixa na ERC, o mesmo tendo-se verificado com a GNR. Aliás, além destas, o regulador foi ‘metralhado’ com quase uma centena de queixas particulares. A primeira entidade sustentava que “o vídeo, ao apresentar os polícias como xenófobos e racistas, não contribui para a desejável paz social, podendo, pelo contrário, contribuir para uma perceção de ilegitimidade do uso da força pública, com potencial para afetar a desejável paz e harmonia social, que os polícias da PSP diariamente se esforçam por manter e defender.”

A GNR, por sua vez, seguiu o mesmo diapasão, referindo, de igual modo, que o vídeo fora “transmitido quando a audiência é essencialmente jovem, com grande capacidade de divulgação através de redes sociais” e que tinha potencial de “forte projeção pública”, sendo “facilmente acessível na internet ou através da respetiva aplicação móvel”. E acrescentava ainda que, mesmo “reconhecendo a liberdade de imprensa e meios de comunicação social”, se deveria “repudiar este vídeo que afronta coletivamente e individualmente todos aqueles que exercem funções policiais em Portugal”.

Esta força militar acrescentava que o cartoon transmitiu ao público a ideia de “existência de uma organização e metodologia para tratamento de grupos sociais de forma diversa, o que atenta gravemente contra toda e qualquer prática atual na GNR, que vem incrementando, nos últimos anos, a formação em matéria de Direitos Fundamentais, facilmente comprovável pelos programas dos diversos cursos e parcerias estabelecidas com instituições de ensino e de defesa dos Direitos Humanos nacionais e, inclusivamente, internacionais.”

Apesar de toda esta argumentação, os membros do Conselho Regulador da ERC concluíram que, embora o “cartoon objeto das participações tenha uma crítica forte e assertiva, não comporta um teor de humilhação ou vexatório, nem visa gerar o ódio ou desestabilizar a paz social”

Na sua análise, o regulador considerou, na linha do que já era seu entendimento, que o Spam Cartoon é um micro-programa, tendo mesmo “um genérico de abertura (…) e um genérico de fecho”, que se enquadra no “macrogénero ‘entretenimento’ e no género ‘humor’”, e que nessa linha “integram um género que é, por natureza, transgressor de limites, que recorre à caricatura, ao exagero, ao humor para transmitir uma opinião sobre determinado assunto”.

Nessa linha, a ERC defende que “o humor, a sátira, os cartoons – entre outros meios de manifestação da liberdade criativa – são formas de expressão do pensamento que não devem estar amarradas às sensibilidades subjetivas e gostos pessoais do público, de modo a permitir a crítica a grupos e figuras da sociedade, comportamentos, estereótipos, pensamentos, etc.”, pelo que, “nesta medida, gozam de um espaço mais alargado no que respeita aos limites à liberdade de expressão e de programação.” Daí salientam que “a violência policial e o racismo são temas que merecem reflexão e que podem, legitimamente, ser o mote para cartoons”.

Morte de jovem magrebino em França foi mote para o cartoon de Cristina Sampaio, mas PSP e GNR ‘dispararam’ logo com queixas judiciais e na ERC.

E conclui assim que a RTP1, ao transmitir o cartoon de Cristina Sampaio, “não violou a ética de antena, nem ultrapassou os limites à liberdade de programação”, destacando ainda que “é através de ‘mais discurso’, e não da repressão do discurso, que poderá ser rebatido o pensamento expresso no cartoon.”

Contactado pelo PÁGINA UM, a Cristina Sampaio diz estar “satisfeita por a ERC ter reconhecido que o cartoon tem um papel fundamental na comunicação social de uma sociedade democrática e que a essência do cartoon é a sátira e o humor, que devem ser exercidos em total liberdade.” A ilustradora, cujos trabalhos marcam também presença frequente no jornal Público, releva também o “apoio incondicional” que tiveram da RTP, cuja administração é presidida por Nicolau Santos.

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