VISTO DE FORA

O canto do cisne de Montenegro

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Parece estranho olhar para o Orçamento de Estado num momento em que o Planeta arde com guerras, taxas de juro, inflação e um empobrecimento geral da população. Tendo em conta a irrelevância de Portugal no contexto internacional, e o caos em que estamos mergulhados, pensar na política nacional e nas decisões à nossa micro-escala, é quase um momento de puro masoquismo.

Mas como já expliquei algures por estes textos, eu sou aquele tipo de pessoa que reduz a velocidade, causa algum congestionamento na estrada e fica ali a olhar para o acidente do outro lado da faixa, enquanto segue a 20 quilómetros por hora. Não consigo evitar olhar para desgraças e, como tal, mesmo com dramas e calamidades a encherem as 24 horas do dia, fui perder tempo à volta do debate do Orçamento do Estado apresentado pelo Partido Socialista (PS) para 2024.

Olho sempre para Orçamentos com alguma desconfiança porque, no essencial, parece-me que os sucessivos Governos se limitam a distribuir apoios e subsídios e nunca a fazer as reformas estruturais ou a tomar as opções políticas que o país precisa. Com a Educação como ponto de partida, obviamente. E quando falo em Educação, refiro-me a tudo o que vai da creche até à universidade. Grátis e universal. É esse o desígnio de um país que se quer desenvolver e não apenas fazer de incubadora de talentos para os países de primeiro mundo.

As linhas gerais deste orçamento são um sonho para a direita e veio daí a minha principal curiosidade. O que diriam o Partido Social Democrata (PSD) e a Iniciativa Liberal? O Chega nestas contas não importa tanto porque, por regra, grita e critica para chamar a atenção mas não tem ideias para apresentar. E enquanto for assim, são um problema a menos. Quando além do milhão de votos começarem também a ter propostas inteligentes, é que a coisa fica sem solução.

Redução do IRS nos cinco primeiros escalões parece ser uma boa iniciativa, apanhando a maior parte dos trabalhadores e deixando aqueles que ganham mais de 2000 euros de fora. O que em Portugal se considera rico, num país desenvolvido seria um pobre, mas enfim, há que começar por algum lado. Ao mesmo tempo, aumentam-se alguns impostos indirectos em artigos como o tabaco e outros não essenciais para não causar muita polémica e ainda aliviar o SNS. Medina repetiu várias vezes o jargão das “contas certas” que, por tradição, pertencia ao PSD de Passos Coelho.

Luís Montenegro anda há meses a dizer que o Governo de Costa é o campeão dos impostos, e Costa resolve baixar os impostos sobre os rendimentos. Julgo que cheguei a ouvir o PSD a queixar-se das pensões baixas e dos aumentos miseráveis dos salários na função pública. Montenegro grita por medidas em que nunca acreditou e tenta ultrapassar o PS pela esquerda. O que faz António Costa? Aumenta as pensões acima do nível da inflação e passa o salário mínimo para 820 euros, ultrapassando o PSD pela direita.

Até o IVA da restauração diminuiu, uma antiga exigência da direita no apoio às empresas. A TAP, como se sabe, está a caminho de ser vendida e o governo, já se percebeu, também não vai travar o aumento das rendas. Em resumo, o PS apresentou o orçamento com que o PSD sempre sonhou e, de uma só vez, secou a direita e deixou Luís Montenegro sem qualquer oposição para fazer. O que disse ele? Que o PSD votaria contra o Orçamento porque, e cito, “o partido não poderia votar de outra forma um documento que continua a viver da “ilusão” das alegadas contas certas, de uma suposta baixa de impostos que não acontece e de serviços públicos mínimos, ao mesmo tempo que hipoteca o futuro do país e adia reformas verdadeiramente estruturais”.

Estão a compreender? O PSD de Montenegro queria contas menos certas, mais impostos e mais serviços públicos. Um dia que nunca pensei ver, afinal, chegou. Melhor teria feito se, tal como a IL e o Chega, se tivesse agarrado com unhas e dentes a disparates como o aumento do IUC (Imposto Único de Circulação) para automóveis mais velhos. Não tendo nada para dizer, disfarça-se a ausência de projecto próprio procurando algo para criticar, mesmo que seja o IUC, esse desígnio nacional de extrema importância.

O que o PS conseguiu com este Orçamento, não foi propriamente melhorar muito a vida dos portugueses. No essencial, continuaremos pobres, sem criar riqueza, sem ter uma educação verdadeiramente universal e com um SNS em contínuo estado de degradação. O que António Costa e a sua equipa de ministros fizeram foi mostrar ao país que a oposição de direita não tem uma única ideia, um único projecto, uma única visão para o desenvolvimento de Portugal.

Até aqui, pensava-se que o papel de cavalgar as gaffes do governo e disfarçar a falta de ideias com gritos era uma exclusividade do Chega. Agora percebe-se que é um denominador comum à IL (já se desconfiava) e até ao PSD, que deveria ter mais alguma responsabilidade na vida pública portuguesa.

Reparem até no alinhamento patético e algo deprimente que, esta tríade, consegue ter em assuntos verdadeiramente sérios para lá do parlamento português. Todos condenaram, com maior ou menos violência, as palavras de António Guterres sobre as constantes violações de Israel em Gaza.

Se no caso de André Ventura não se espera outra coisa porque se rege pelo racismo básico contra árabes, já de Paulo Rangel e Cotrim Figueiredo, aguarda-se mais alguma inteligência e conhecimentos básicos de história, mesmo que aborrecidos para a ideologia.

Não há oposição de direita em Portugal e a que, neste momento, faz esse papel, é apenas uma piada de mau gosto. Montenegro nunca chegará a primeiro-ministro enquanto Costa, o sonho de qualquer verdadeiro partido de centro, por cá andar. E neste cenário, apenas neste cenário, essa não é uma má notícia. O Governo não é bom, e desde 2020 tem acumulado um rol de disparates a considerar mas esta oposição que lhes tocou, nem de encomenda poderia ser melhor.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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