Criada em 1999, para suceder aos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento, a empresa municipal AGERE foi fazendo, ao longo de mais de duas décadas, o seu trabalho habitual: distribuir água potável, tratar dos esgotos e gerir os lixos urbanos. E assim sempre fizeram, sem interrupções.
Mas no passado dia 18 de Agosto, porventura para desfastio das horas encerrados em gabinetes, o Conselho de Administração tomou uma solene decisão: deliberou a abertura de um procedimento para a celebração de um contrato para aquisição do… “direito de utilização de um camarote ao Sporting Clube de Braga (SCB) – Futebol, SAD. (Época 2023/2024)”. Nem mais, para ir à bola em camarote num estádio que, formalmente, é propriedade da Câmara Municipal de Braga e arrendado ao clube da cidade por 500 euros por mês. Enquanto tratavam de águas e esgotos, a administração da AGERE demorou a concluir os procedimentos, e o contrato avançou, tendo sido ontem assinado.
De acordo com o contrato assinado por ajuste directo, a AGERE comprometeu-se a pagar à SAD do Sporting de Braga um total de 60.885 euros (IVA incluído) para a utilização de um camarote no estádio minhoto até ao final da época desportiva em Junho do próximo ano. Contas feitas, como a Administração já ‘perdeu’ quatro jogos em casa do Braga para a Liga, então os 13 restantes jogos vão custar à AGERE, através de dinheiros públicos, quase 4.700 euros por cada 90 minutos de tempo regulamentar. Se consideramos a duração temporal, dará um custo mensal de 7.500 euros para a empresa municipal pelo usufruto do camarote integrado num estádio municipal arrendado por 500 euros ao Braga.
Embora os preços dos camarotes esteja “sob consulta”, no site do Sporting de Braga apresentam-se fotos de algumas destas instalações, um dos quais tem uma mesa para 10 pessoas, mais do que suficiente para, por exemplo, fazer reuniões do Conselho de Administração da AGERE.
Para seduzir os interessados, o Sporting de Braga elenca também um extenso rol de mordomias para aquilo que é caracterizado como um “espaço privilegiado para a realização de negócios através do contacto direto com os nossos parceiros”: serviços de catering com direito a hospedeiras, “hospitality account dedicado”, lugares de estacionamento, e a possibilidade de utilização do espaço em outros dias que não os dos jogos.
E não se esquecem também deliciosos ‘brindes & ofertas’ como camisolas oficiais, cachecóis, canetas e pins, duas viagens para jogos das competições europeias, “oportunidade de tirar uma fotografia com o seu jogador favorito na zona mista” e ainda “possibilidade de um familiar, até 11 anos, entrar em campo com um jogador”. Tudo isto ficará agora à disposição dos administradores da empresa municipal AGERE e mais os seus convidados por 60.885 euros, que correspondem, na verdade, a mais de 250 lugares cativos (Lugar Guerreiro) de época para o estádio bracarense.
O contrato foi assinado, da parte da SAD do Braga, pelo director financeiro Cláudio Couto e pelo administrador João Pedro Carvalho, enquanto do lado da AGERE as assinaturas são apenas dos administradores Paula Nívea Campos e António Almeida Silva. O presidente da empresa municipal, Rui Morais, chegou a ser economista do Sporting de Braga há duas décadas, não apôs a sua assinatura no contrato.
Mesmo tendo em conta ineditismo deste contrato – o PÁGINA UM não descobriu qualquer outro similar para uma entidade pública assistir a espectáculos desportivos, muito menos em camarote –, a fundamentação avançada pelo Conselho de Administração da AGERE para este ajuste directo atinge a excentricidade: foi a inexistência de “concorrência por motivos técnicos”, ou seja, a subalínea ii) do artigo 24º do Código dos Contratos Públicos, que se invocou para, com dinheiros públicos, não se lançar um concurso público para a aquisição de um camarote para assistir à bola. Visto está que a Administração da AGERE queria ver jogos do Braga e só do Braga.
Além disto, há informações omitidas no Portal Base, mesmo se a AGERE até foi lesta a publicitar o seu ajuste directo, no mesmo dia em que foi assinado, algo que não é frequente em outras entidades públicas. Por lei, a divulgação deve ser feita no prazo de 20 dias. Com efeito, a versão disponibilizada não oferece detalhes adicionais sobre os termos do contrato, nem inclui o respectivo Caderno de Encargos. Assim, desconhecem-se as condições acordadas entre a empresa municipal e o clube desportivo, designadamente o número de lugares de acesso e outras eventuais mordomias. O PÁGINA UM contactou a Administração da AGERE pedindo esclarecimentos sobre este contrato e os motivos para o pagamento, mas não obteve resposta.
Recorde-se que o Estádio de Braga vai acumulando polémicas desde que foi construído para o Euro 2004: Depois de ter já custado a módica quantia de 200 milhões de euros ao erário público, quando a estimativa inicial apontava para apenas 29,9 milhões de euros, como refere uma investigação recente do Público.
Os custos para a Câmara agora liderada pelo social-democrata Ricardo Rio são tantas que a autarquia quer vender o estádio. Apesar de elogiada a sua arquitectura por estar integrada numa antiga pedreira, e ter sido da autoria de Souto Moura, este é o estádio português mais caro de sempre, mas nem sequer terá condições para integrar os equipamentos do Mundial de 2030, uma vez que tem menos de 40 mil lugares.
Agora, e sendo certo que não estamos a falar de milhões, mas sim de 60.885 euros, a Pedreira (como popularmente chamado), pode passar a ser também conhecido como primeiro estádio português onde uma empresa pública pagou para assistir a jogos de futebol. E de camarote.
Este contrato não está incluído neste Boletim P1 da Contratação Pública e Ajustes Directos, mas pelo facto de ser mais um caso paradigmático de má utilização dos dinheiros públicos, consideramos relevante divulgá-lo. Desde Setembro, o PÁGINA UM apresenta uma análise diária aos contratos publicados no dia anterior (independentemente da data da assinatura) no Portal Base. De segunda a sexta-feira, o PÁGINA UM faz uma leitura do Portal Base para revelar os principais contratos públicos, destacando sobretudo aqueles que foram assumidos por ajuste directo.
PAV/MAP
Ontem, dia 26 de Outubro, no Portal Base foram divulgados 678 contratos públicos, com preços entre os 8,57 euros – para aquisição de serviço de comunicações fixas, pelo Ministério da Defesa Nacional – Marinha, através de ajuste directo – e os 67.696.893,79 euros – para empreitadas de linhas de Muito Alta Tensão, pela REN – Rede Eléctrica Nacional, através de procedimento de negociação.
Com preço contratual acima de 500.000 euros, foram publicados 19 contratos, dos quais 15 por concurso público, um ao abrigo de acordo-quadro, um através de procedimento de negociação e dois por ajuste directo.
Por ajuste directo, com preço contratual superior a 100.000 euros, foram publicados 10 contratos, pelas seguintes entidades adjudicantes: Infraestruturas de Portugal (com a Alstom Ferroviária Portugal, no valor de 829.166,20 euros); Município de Albufeira (com a Távola Nostra – Eventos Globais, no valor de 532.000,00 euros); Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (com a Top Atlântico Viagens e Turismo, no valor de 300.000,00 euros); Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil (com a Novartis Farma, no valor de 276.100,00 euros); Centro Hospitalar de Trás-os-Montes Alto Douro (com a Philips, no valor de 149.246,00 euros); Município de Fafe (com a CP – Comboios de Portugal, no valor de 132.749,00 euros); Município de São João da Pesqueira (com a Transdev Interior, no valor de 126.736,84 euros); Banco de Portugal (com a BT Global ICT Business Spain, no valor de 116.100,00 euros); Município de Leiria (com a Fusion Originale International Projects, no valor de 106.070,00 euros); e a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (com a Precise, no valor de 104.334,00 euros).
TOP 5 dos contratos públicos divulgados no dia 26 de Outubro
(todos os procedimentos)
1 – Empreitadas de linhas de Muito Alta Tensão
Adjudicante: REN – Rede Eléctrica Nacional
Adjudicatário: CME – Construção e Manutenção Electromecânica; EIP – Serviços
Preço contratual: 67.696.893,79 euros
Tipo de procedimento: Procedimento de negociação
2 – Aquisição de energia eléctrica em Alta, Média e Baixa Tensão
Adjudicante: EPAL – Empresa Portuguesa das Águas Livres
Adjudicatário: Iberdrola Portugal
Preço contratual: 7.037.817,94 euros
Tipo de procedimento: Concurso público
3 – Aquisição de energia eléctrica em Alta, Média e Baixa Tensão
Adjudicante: Águas do Vale do Tejo
Adjudicatário: Iberdrola Portugal
Preço contratual: 4.903.430,46 euros
Tipo de procedimento: Concurso público
4 – Fornecimento de energia em Baixa Tensão Normal (BTN)
Adjudicante: Município de Albufeira
Adjudicatário: Endesa Energia
Preço contratual: 4.528.000,00 euros
Tipo de procedimento: Concurso público
5 – Modernização da infraestrutura tecnológica de centros de dados
Adjudicante: Secretaria Regional das Finanças
Adjudicatário: MC – Computadores
Preço contratual: 3.599.835,42 euros
Tipo de procedimento: Concurso público
TOP 5 dos contratos públicos por ajuste directo divulgados no dia 26 de Outubro
1 – Aquisição de balizas para alteração dos troços Faro/Vila Real de Santo António e Tunes/Lagos
Adjudicante: Infraestruturas de Portugal
Adjudicatário: Alstom Ferroviária Portugal
Preço contratual: 829.166,20 euros
2 – Aquisição do evento Albufeira Carpe Nox 2024
Adjudicante: Município de Albufeira
Adjudicatário: Távola Nostra – Eventos Globais
Preço contratual: 532.000,00 euros
3 – Serviços de viagens (transporte aéreo, alojamento e aluguer de viaturas)
Adjudicante: Serviço de Estrangeiros e Fronteiras
Adjudicatário: Top Atlântico Viagens e Turismo
Preço contratual: 300.000,00 euros
Adjudicante: Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil
Adjudicatário: Novartis Farma
Preço contratual: 276.100,00 euros
5 – Substituição de ampolas de TAC e Raio-X
Adjudicatário: Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro
Adjudicatário: Philips
Preço contratual: 149.246,00 euros
MAP