EDITORIAL DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA

A morte do jornalismo: a notícia mais lida do Observador foi um patrocínio da EDP

por Pedro Almeida Vieira // Outubro 28, 2023


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


Este editorial não precisa de ser grande. Pela madrugada, abri o Observador e passei os olhos pelo destaque das notícias “Mais Populares” nos últimos dois dias. No topo surgiu, antes mesmo da notícia sobre uma grávida com o bebé morto mandada para casa pelo crónico Hospital Beatriz Ângelo, e de uma louvaminha ao novo bispo de Setúbal (transformado pelos media em nova coqueluche eclesiástica), um artigo com o típico piscar de olhos para o clique (com o ponto de interrogação final): “2024 é o ano para comprar um carro eléctrico?

Antes mesmo de ser seduzido para a leitura desta notícia-pergunta, respondi ironicamente: claro que sim, sobretudo se tiver um carro anterior a 2007 e dinheiro para comprar um carro eléctrico – o que me parecem duas condições economicamente incompatíveis entre si.

Notícia mais popular do Observador nos dias 26 e 27 de Outubro foi escrita por um ‘ghost writer’ do Observador Lab, criado para parcerias comerciais.

Mas lá vou, para dentro da notícia. Ou melhor ‘notícia’: ainda consigo ler o lead – onde, num estilo pessoal e intimista, surge a informação de que “se a ideia de comprar um carro elétrico não lhe sai da cabeça, fique a saber que não é o único: em Portugal, as vendas de viaturas 100% elétricas cresceram 149%, entre 2020 e 2022”.

Aprestava-me para continuar a leitura, fazendo scroll sobre fotografia de um carro eléctrico a carregar (usei um computador), quando o meu olhar se desviou para a esquerda e leio o nome do ‘jornalista’: Observador Lab, com a indicação de “conteúdo patrocinado por EDP”. Com o logótipo da dita empresa.

Não sei se a direcção editorial do Observador tem a noção da gravidade desta situação – e se são como David Pontes, no Público, ou João Vieira Pereira, no Expresso – só para citar aqueles que mais “comércio de notícias têm feito –, que clamam por independência enquanto “amaciam” patrocinadores.

E também duvido que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e o seu Conselho Deontológico (que no meio do pântano nacional, decidiu agora ‘marrar’ contra um jornal regional por noticiar fait divers e life style) tenham a noção da caixa de Pandora que aqui se abre.

Printscreen retirado hoje às 04:00 horas

Na verdade, por este caso – e que terá tendência a repetir-se –, há três coisas que me causam urticária como jornalista.

Primeira: é extraordinário que a própria direcção editorial do Observador – e não me digam que é um bug – permita que, num ranking de notícias, não se separe aquilo que são textos jornalísticos (feitos por jornalistas com, carteira profissional e código deontológico) e aquilo que são textos comerciais (feitos por ghost writers, que às tantas são jornalistas a fazer uns biscates). Talvez a direcção editorial do Observador já não os consiga distinguir.

Certamente, se não foi intencional esta mistura, de fazer passar conteúdos comerciais por notícias – até porque no Google News o texto da EDP surge como notícia –, a EDP ficará bastante satisfeita pela prestação de serviços. Repetirá a dose, no futuro, porque misturando-se isto tudo pode ter maior projecção. Talvez passe a pagar em função dos cliques.

Aviso que não quero ser sequer ‘mauzinho’, especulando que o dito texto patrocinado pela EDP foi, de início, artificialmente ‘inflacionado’ para surgir no ranking, suscitando assim que, por curiosidade (como a minha), os leitores o visitem… Há gente para tudo, mas eu não quero aqui insinuar nada, embora me apetecesse…

Segunda: com este modelo de textos patrocinados por empresas – e daqui a nada por Governos, e, porque não, por partidos políticos –, e se for economicamente bem sucedido, está a alimentar-se uma casta de “jornalismo prostituto”, onde directores editoriais se transformam em directores comerciais, que passam a buscar clientes para textos de promoção em vez de buscarem notícias para os leitores.

Terceira: com o sucesso deste tipo de textos patrocinados por empresas (ou Governos ou partidos políticos, um dia…), deixa de haver espaço para o jornalismo de investigação, de denúncia, de pressão, de consciência cívica, daquele jornalismo que incomoda e que, lamentavelmente para os ‘directores comerciais’ travestidos de jornalistas, podem afugentar potenciais patrocinadores de textos que seguirão para o topo dos “Mais Populares”.

Miguel Pinheiro, director executivo do Observador.

Como isto anda, tenho a convicção de que haverá, em breve, consumando-se este processo de prostituição do jornalismo (notem que não meti aspas), haverá mais do que um “imoral despedimento colectivo”, como o da Bola, criticado (obviamente) pelo Sindicato dos Jornalistas.

Mas quando esses eventos se massificarem, expectáveis pela crescente degradação da ética nesta profissão (afinal, para que servirá, se basta no futuro saber escrever para agradar a clientes?), o Sindicato e todos os outros que se calam agora, assobiando para o ar (enquanto garantem o salário por ‘bom comportamento’), só terão então uma coisa a fazer: culparem-se pela omissão. E nem será culpa por negligência. Será por dolo: os jornalistas, em tempos alcandorados como a consciência cívica das sociedades, serão os culpados por se tornarem vítimas, porque aceitaram esse papel.

Ah, e já agora, e de que se tratava afinal a notícia mais popular do Observador nos últimos dias? Ora!, poupem-me…

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.