A APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso e a OVAR – Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos denunciaram, durante anos seguidos, a presença de centenas de reclusos inimputáveis espalhados pelas 49 cadeias portuguesas.
Uma vergonha num país europeu que se quer moderno e democrático.
Sobre este gravíssimo problema Mafalda Pissara escreveu, a 10 de Maio de 2017, no Jornal Universitário do Porto (JUP) um texto com o título “A Inimputabilidade no Direito Penal Português” onde esclarecia:
“Para que se compreenda a inimputabilidade, importa primeiro falar na culpa. Para haver um crime, a ação que lhe corresponde tem de ser, entre outros, culposa, isto é: há um juízo de censura que se dirige ao concreto agente que cometeu o crime. Portanto, atendendo aos seus conhecimentos e às circunstâncias concretas do crime, pode ser censurável ou não.
Ora, o inimputável é aquele que é incapaz de culpa; ele pratica condutas que não são admitidas pelo Direito – são ilícitas -, mas sem culpa. O regime da inimputabilidade está previsto nos artigos 19.º e 20.º do Código Penal (CP).
No artigo 19.º estabelece-se a inimputabilidade em razão da idade – “os menores de 16 anos são inimputáveis”.
O artigo 20.º do CP, por sua vez, consagra a inimputabilidade em razão de anomalia psíquica: essa anomalia tem de impedir o agente de distinguir aquilo que é permitido do que não é permitido (o lícito do ilícito); ou, conseguindo distinguir, é-lhe impossível controlar-se e agir de acordo com o que é permitido.”
O que acontece, todavia, é que um inimputável é julgado em Tribunal, muitas vezes condenado a uma pena de prisão, e não internado num hospital ou clínica psiquiátrica.
Pior, quando acabava de cumprir os anos a que fora condenado era analisado por médicos que determinavam se continuava a ser perigoso para a Sociedade sendo que, nesse caso, era determinado que continuasse preso por períodos de mais dois anos após o que se seguia nova perícia e novo prolongamento da pena.
Maneira encapotada de condenar um cidadão (para mais doente) a prisão perpétua que, como se sabe, foi abolida no nosso país onde ninguém pode ser condenado a mais de 25 anos de cárcere.
A recente denúncia – por parte das duas Associações acima indicadas – do caso de um recluso, considerado inimputável, que estava preso há 37 anos, talvez porque tenha tido acompanhamento na comunicação social, fez tocar as campainhas de alarme e aconteceu o habitual: foi publicada, rapidamente, uma Lei a tentar corrigir a situação.
Só que, analisada friamente, acabou por agravá-la.
Determina essa Lei que nenhum recluso pode continuar preso após ter cumprido a sua pena, na íntegra.
O que parecia ser uma descoberta digna de La Palisse resultou, neste caso concreto, no agravar de uma situação já de si dificílima.
O recluso inimputável é colocado em liberdade. E depois?
Quem protege a Sociedade de um cidadão perigoso?
E quem o protege da Sociedade que se sente no direito de se defender?
E quem protege a Família com um problema destes em casa?
A APAR defendeu, sempre, que quando um cidadão chega a tribunal, para ser julgado, caso haja suspeitas sobre a sua saúde mental, os juízes devem requerer uma perícia médica.
Se as suspeitas se confirmarem, e o cidadão for considerado inimputável, independentemente do crime que tenha cometido, deve sair da alçada da Justiça e passar para os cuidados do Ministério da Saúde.
Pelo simples facto de ser um doente e não um criminoso na verdadeira acepção da palavra.
Deve ser internado num quarto de hospital psiquiátrico, tratado e guardado por enfermeiros e médicos e não numa cela de uma qualquer prisão ao cuidado de guardas prisionais, sem capacidade para com ele lidar e para segurança de todos.
Para além do mais, se a sua doença não for curável, o que infelizmente acontece com frequência, poderá e deverá ficar internado até ao fim da sua vida e sem se infringir qualquer lei.
É doloroso reconhecer isto, mas é a realidade.
Para além do mais há a situação dos juízes que, certamente, não ficarão confortáveis ao condenar à prisão alguém que ali está por ser doente.
Todos sabemos que a única razão para esta prática é que a falta de hospitais psiquiátricos, e a necessidade de isolar estes doentes, obriga ao recurso desumano de os “internar” numa cadeia.
Poucos saberão, todavia, que ali são duplamente punidos porque a comunidade reclusa deles se defende, muitas vezes com violência, quando são fisicamente perigosos, ou deles abusa quando são apáticos, desligados do mundo, inofensivos.
Esta lei é uma tentativa de lavar as mãos de décadas de inércia e incompetência de vários Governos.
Como muitas outras, agravou o problema, repete-se.
Não sei como o resolver, confesso, a não ser com a criação de mais clínicas e hospitais psiquiátricos.
Vivendo em Portugal sei que isso é extremamente difícil.
As prioridades, no nosso País, são estranhas.
Aqui governa-se com prazos de quatro anos, no máximo, porque o que conta são os resultados das eleições e os inimputáveis não votam.
Embora, por vezes, e atendendo aos resultados, eu fique com muitas dúvidas.
Vítor Ilharco é secetário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso
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