Podia ser só de vez em quando, uma excepção a quebrar a regra. Mas não. O contrato assinado na quinta-feira passada, neste caso para assessoria jurídica no processo do Novo Banco, entre o Banco de Portugal e a sociedade de advogados Vieira de Almeida segue uma regra basilar: primeiro, dá-se ‘luz verde de boca’ para se começar a prestar serviços jurídicos, por vezes durante meses ou até mais de um ano, e a seguir assina-se um ajuste directo com efeitos retroactivos, argumentando-se com excepções do Código dos Contratos Públicos. Este expediente sui generis de muito duvidosa legalidade e de ética mais do que questionável tem sido proveitoso para a Vieira de Almeida: sem concorrência, acumula 27,3 milhões de euros em 10 contratos desde 2014. A Cuatrecasas, a segunda sociedade na lista de favoritos do Banco de Portugal em ajustes directos, está a 17 milhões de euros de distância.
A sociedade de advogados Vieira de Almeida esteve, desde Dezembro de 2022 até à quinta-feira passada, a prestar assessoria jurídica ao Banco de Portugal sem estar suportado em qualquer contrato. Um ajuste directo assinado na quinta-feira passada, para um período de três anos, no valor global de cerca de 2,2 milhões de euros (IVA incluído), foi o expediente usado para tentar legalizar este procedimento, mas nos documentos a que o PÁGINA UM teve acesso verifica-se que a decisão do contrato somente foi tomada há cerca de um mês, em 19 de Setembro, pela Comissão Executiva para os Assuntos Administrativos e de Pessoal do regulador presidido por Mário Centeno. Ou seja, terá havido uma combinação prévia para que esta sociedade de advogados começasse a executar tarefas antes da celebração de um contrato público, mas havendo garantia de ser paga sem ter de competir contra outros concorrentes.
Tudo numa base de confiança, até porque esta não é a primeira vez que tal sucede – é já a 10ª vez, pelo menos. Mas já lá vamos.
No caso do mais recente ajuste directo, em causa está a assessoria jurídica ao Banco de Portugal para o acompanhamento, entre outros, da execução acordo parassocial e do contrato de compra e venda e de subscrição de acções do Novo Banco entre o Fundo de Resolução e a Nani Holdings, do Acordo de Capitalização Contingente e do acordo de servicing, celebrados entre o Fundo de Resolução e o Novo Banco. O Banco de Portugal decidiu definir um preço de 600 mil euros (sem IVA) por ano, sendo que somente estão garantidos os primeiros dois anos, sendo o terceiro, de igual montante, opcional.
Embora haja referência no caderno de encargos deste contrato a um preço hora pelos serviços, não se encontra nos documentos no Portal Base qualquer valor em concreto do preço a cobrar por hora em função da experiência dos advogados. Em contratos similares, um advogado sénior de uma grande sociedade pode cobrar mais de 300 euros, enquanto os serviços de um estagiário ou de um recém advogado acenderá aos 100 euros.
Mas como não se coloca nenhum valor, deduz-se assim que a Vieira de Almeida garantirá um valor muito próximo do máximo contratualizado – como tem sido prática nos mais recentes contratos com o Banco de Portugal já integralmente executados. Para fazer o quê em concreto dentro do vago objecto deste contrato? Também não se sabe, mas será certamente assessoria jurídica que nenhuma outra sociedade de advogados seria capaz.
Isto pelo menos a atender ao facto de o Banco de Portugal aludir à norma do Código dos Contratos Públicos onde se justifica que o ajuste directo pode ser o procedimento legal caso “não exista concorrência por motivos técnicos”. Ou seja, sem explicitar em concreto o que a Vieira de Almeida tem de especial, o Banco de Portugal passa um atestado de incompetência a todas as outras sociedades de advogados.
Como tem sido hábito em outros contratos destacados pelo PÁGINA UM, o Banco de Portugal simplesmente invoca uma norma de excepção, para evitar um concurso público (com livre e justa concorrência, que visa a melhor qualidade-preço), não procurando sequer ocupar uma linha com uma justificação concreta para a inexistência de concorrência por motivos técnicos.
Este não é, como já se disse, o primeiro ajuste directo entre o Banco de Portugal e a Vieira de Almeida. E nem sequer o único que comete o ‘pecado’ de usar o mesmo expediente: os advogados começam a trabalhar para o regulador sem qualquer contrato e depois, passados uns quantos meses, por vezes mais de um ano, surge então um contrato por ajuste direito com recurso às excepções para não se ter de fazer concurso público.
Assim, desde 2011, esta conhecida sociedade de advogados já celebrou 12 contratos sem o incómodo da concorrência, isto é, por ajuste directo. O novo contrato da quinta-feira passada nem sequer é o mais chorudo. Em Junho de 2018 foi assinado um contrato de 5,97 milhões de euros (IVA incluído), por um prazo de três anos, para serviços de assessoria jurídica e de patrocínio jurídico, que se desconhecem por não constarem no Portal Base. Este contrato abrangeu logo os 179 dias de trabalho anteriores, uma vez que foi assinado em 25 de Junho de 2018, mas entrou em vigor retroactivamente a partir de 28 de Dezembro do ano anterior.
Foi a partir de 2018 que a facturação da Vieira de Almeida com o Banco de Portugal passou para outros patamares. No primeiro ajuste directo, em 2011, a sociedade de advogados conseguiu apenas previsão de facturar 800 mil euros (IVA incluído), mas acabou por receber um pouco menos de 200 mil euros, porque tudo foi contabilizado à hora. O mesmo sucedeu com o contrato de 2013, que estava previsto atingir também os 800 mil euros, mas ficou-se pelos 100 mil. Nestes dois contratos não é possível saber se tiveram efeitos retroactivos porque não constam documentos no Portal Base.
Entre 2014 e 2017, a Vieira de Almeida começou a ter direito, por rotina, a assinar um contrato por ano no valor máximo de 1,85 milhões de euros, tendo arrecadado praticamente toda a verba. E foi aqui que começou o expediente de começar a trabalhar antes para garantir o ajuste directo depois. No contrato de 2014, a Vieira de Almeida trabalhou 144 dias antes da assinatura do contrato, no de 2015 foram 266 dias, no de 2016 contabilizam-se 207 dias e no de 2017 são 244 dias. Em 2015 ainda houve um pequeno ajuste directo, que se previa de 246 mil euros, mas a sociedade de advogados só facturou pouco mais de 36 mil. Até neste o início da prestação de serviços é anterior à data do contrato: 75 dias antes.
Com o contrato de 2018, no valor de 5,97 milhões de euros, subiu-se a parada, até porque se foram acumulando contratos em vigor. Por exemplo, quando foi assinado o contrato de 2018, ainda não tinham sido integralmente executados os contratos de 2016 e 2017, uma vez que estes abrangiam três anos.
Assim, embora em 2019 não tivesse sido assinado qualquer contrato, ainda estavam em vigor dois. Na verdade, estariam três, mas um deles só se soube em 2020: em 31 de Janeiro desse ano foi celebrado mais um ajuste directo, no valor de 1,1 milhões de euros, mas o Banco de Portugal considerou que a prestação de serviços começara 609 dias antes, em 1 de Junho de 2018. Ou seja, um ano e oito meses!
Independentemente de se saber ao certo, em determinada data quantos contratos afinal estavam em vigor, certo é que em 2021 o Banco de Portugal entregou dois contratos à Vieira de Almeida. O primeiro foi assinado em Fevereiro, no valor de quase 5,4 milhões de euros e com duração de três anos; e o segundo assinado em Novembro no valor de cerca de 3,1 milhões de euros e com a duração de dois anos. Mas, enfim, ambos já tinham afinal começado no ano anterior, respectivamente em 1 de Dezembro e 1 de Agosto.
Para se ter uma ideia da trapalhada legal, se no dia 31 de Dezembro de 2020 alguém quisesse saber quantos contratos existiam entre o Banco de Portugal e a Vieira de Almeida, a resposta seria: um – o contrato de três anos que se iniciara em 1 de Junho de 2018. Porém, no dia 2 de Fevereiro de 2021 afinal ficou-se a saber que havia outro, que se iniciara em 1 de Dezembro, e depois, em 31 de Novembro de 2021 ficou-se também a saber, por um outro contrato, que afinal no dia 31 de Dezembro de 2020 havia em vigor um terceiro contrato. Confuso, não? Ou dever-se-á dizer antes que é ilegal?
O segundo contrato de 2021, no valor de quase 3,1 milhões de euros, constitui o cúmulo da irregularidade jurídica na contratação pública: sendo assinado em 18 de Novembro de 2021, a cláusula segunda que diz que “o contrato reporta os seus efeitos a 1 de Agosto de 2020 e mantém-se em vigor pelo prazo máximo de 2 (de dois anos)” Ou seja, quando foi assinado um contrato de dois anos, afinal já teriam sido executados serviços ao longo dos 15 meses e 18 dias anteriores.
Tudo somado, e mesmo sabendo-se que o Banco de Portugal possui um departamento de serviços jurídicos, a Vieira de Almeida já sacou, com estes expedientes sob a forma de ajustes directos desde 2014 um total de 27,3 milhões de euros em serviços jurídicos, dos quais quase 18 milhões desde 2018.
De acordo com a consulta do PÁGINA UM ao Portal Base, a Vieira de Almeida destaca-se, com larga distância, da concorrência em contratos de mão-beijada: a segunda sociedade com mais ajustes directos com o regulador é a Cuatrecasas que, desde 2015, ‘só’ conseguiu oito contratos desta natureza no valor global de 9 milhões de euros (IVA incluído).
Suceder tudo isto com o regulador do sector financeiro e bancário e envolvendo uma das mais conceituadas sociedades de advogados, perante a passividade do Tribunal de Contas e do Ministério Público, mostra bem o estado da gestão dos dinheiros públicos. E parecendo isto ser uma opinião jornalística, é na verdade a conclusão honesta com base em factos comprovados por documentos oficiais.