Imagino que a História virá a retratar a triste trotineta, com o seu trotineteiro empoleirado numa capa de chuva a piscar os olhos pelo planeta, como já o fez sobre o curioso Penny Farthing [1].
Inusitado. Frágil. Caricato.
As carroças metálicas abrandam impacientemente na cauda das trotinetas, tremendo ante a possibilidade de uma ultrapassagem segura do peão com duas rodinhas que cruzam a rotunda num estranho ângulo obtuso, uma perna no ar a corrigir a curvatura do movimento.
Todas as pessoas se vão fintando mutuamente, e eu sento-me (sinto-me) cá dentro, como a tampa metálica de ferro rebaixada anormalmente no asfalto, a ser martelada com mais uma gota de chuva e mais uma roda irritada (somos
tantas, tantas).
Pam pam! (tampas a saltar).
Viver hoje a queda deste império é viver como a precipitação de ‘comboios atmosféricos’ (parece poesia), uma catadupa de gotas, caudal que excede canos, sistemas que transbordam, que vomitam, que regurgitam. Que se espalham ao comprido entre enormes buracos, máquinas, terra revolvida, caleiras partidas entupidas com as folhas de Outono. A culpa é de todos, a culpa não é de ninguém.
Anda tudo com as dores de costas a vergar, a vergar. Picadas de melgas e a humidade a entranhar-se nas malhas. O dinheiro que falta, o frigorífico mais vazio, a goteira na sala. O passivo dos passivos e as máscaras que jeito dão para esconder as bolhas que entram em erupção de corpos que não gritam, e adoecem. Bombas que estalam ao longe, aqui, ali, e a exigência permanente de uma opinião, uma bandeira, um estandarte.
Paz, pão, educação.
– Estamos aqui há horas e afinal não se decidiu nada!
Ninguém disse que era fácil. Podemos sempre admitir que o queixume e o desalento pertence a quem tem ânsias de poder despótico. Mas digo eu, aqui que ninguém me lê.
– Ninguém quer matar-me… – disse Polifemo
Mais lata de tinta, menos lata de tinta, qual o assunto do dia para atirar contra as paredes e pessoas?
Mariana Santos Martins é arquitecta
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