VISTO DE FORA

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O domingo é, em semanas boas e de alguma sorte, o meu dia de folga. Tento, nessa altura, desligar-me da realidade e fazer qualquer coisa que me relembre como a vida era antes de 2020. Tenho a sensação que desde que embirraram com o morcego que trazia o covid-19, nunca mais o Mundo foi o mesmo. Ficámos com os movimentos restritos, perdemos empregos, ficámos sem casas, multiplicaram-se as guerras, levantámos mais muros, empobrecemos em larga escala.

Viver agora numa pequena ilha, algo remota, tem a vantagem de me permitir desligar do Mundo, se assim quiser. Vou pedalar pelas encostas, ver o mar, caminhar na areia, enquanto o mar não a leva para passar o Inverno, ou então escondo-me na garagem, a arranjar o que estiver na lista de afazeres domésticos.

Ontem foi dia de fazer lego para adultos, também conhecido por Ikea. Uma pessoa pode fugir da Escandinávia, mas há sempre uma parte que nos persegue. Em princípio, já é tarefa para irritar por si mas, não satisfeito com a hipótese, resolvi deixar a televisão ligada e fui ouvindo análises, debates e podcasts em atraso. Devo dizer que os melhores momentos desta experiência aconteceram quando tinha o berbequim ligado e deixava, por isso, de ouvir os comentadores locais.

A cada dia que passa constato que, salvo raras excepções, os comentários e análises nas televisões portuguesas são de uma tal pobreza que me pergunto se o campo de recrutamento será assim tão limitado. Enquanto partia a cabeça de um parafuso, deixando o resto dentro da parede (qual seria a probabilidade?), ouvia Helena Ferro de Gouveia (HFdG), sempre naquele tom calmo e pensado, a dizer que Israel já tinha perdido a guerra da comunicação, mas tinha o dever de se defender à luz do direito internacional.

HFdG é o paradigma dos comentadores televisivos com uma agenda presa por ideologia. Não se limitam aos factos e às informações que conseguem recolher. Moldam a opinião dos ouvintes com a sua opinião formada, muitas vezes, por uma ideologia que não se consegue disfarçar. Não tenho nada contra o debate de opiniões; não gosto é de ver esse exercício a ser apresentado como análise isenta de factos.

turned-on flat screen television

Há mais de um ano que ouço HFdG defender activamente o empobrecimento generalizado da população europeia como resultado do incondicional apoio à Ucrânia, para que esta se possa defender da invasão russa. Como todos os que defendem esta tese (mais bombas pela paz), HFdG coloca o relógio do conflito na Ucrânia com início para Fevereiro de 2022, e daí traça toda uma série de cenários onde, basicamente, se deve alimentar militar e financeiramente a Ucrânia até que o último soldado ucraniano morra. É, em resumo, a teoria americana. Ou seja, usar sangue ucraniano enquanto der, até se enfraquecer a Rússia de forma a que fique sossegada nos próximos anos e deixe americanos e chineses a dividirem as rédeas do globo.

Agora, no caso de Gaza, perante factos semelhantes (um invasor e um invadido), a nossa Helena volta a acertar o relógio para o dia 7 de Outubro (ataque do Hamas) e ignora olimpicamente os 70 anos anteriores para apelar ao direito de defesa israelita. Aqui, o estatuto de invasor já não colhe, como se percebe. Mas pior mesmo, é ver a lista de mortos a crescer diariamente naquele território sem fuga possível e ver como alguns dos nossos comentadores, com HFdG à cabeça, a tentar justificar o injustificável.

O “direito de defesa de Israel”, frase que já não consigo ouvir, significa, ao fim de 20 dias de bombardeamentos, um saldo de 8.000 mortos, 7.000 dos quais em Gaza e, notem este detalhe, mais de 3.000 crianças. Ou seja, em cálculos simples, a cada 10 minutos morre uma criança na Faixa de Gaza. Isto não é o direito à defesa: é um genocídio com o alto patrocínio dos Estados Unidos e boa parte da União Europeia.

Estamos novamente na discussão redutora: se não se defende a carnificina em Gaza, então somos apoiantes do Hamas. Já o disse e repito que não acho o Hamas benéfico para a libertação da Palestina, mas pergunto: quem pode criticar o aparecimento de movimentos radicais de libertação entre um povo encarcerado? Recupero aqui uma frase de Miguel Tiago durante um debate com Tiago Mayan Gonçalves: “durante a guerra do Ultramar, também o Estado Novo chamava terroristas aos combatentes que lutavam pela independência dos colonizadores”. Portanto, a visão da História depende sempre de quem a conta e do momento temporal em que é discutida.

Há ainda outro detalhe que raramente se discute nas televisões portuguesas, a propósito deste conflito: Israel não permite a entrada de jornalistas estrangeiros em Gaza e, como tal, tudo o que vemos e ouvimos são relatos do exterior. Em alguns casos, como são as intervenções de Ana Sofia Cardoso (CNN), estamos perante peças altamente sensacionalistas, a largos quilómetros do conflito e sempre a procurar mostrar o sofrimento no interior de Israel.

Eu percebo ser difícil mostrar os dois lados quando a entrada em Gaza não é permitida, mas, convenhamos, com crianças a morrer todos os dias debaixo dos bombardeamentos israelitas, torna-se algo anedótico um momento de reportagem com uma janela partida numa prédio intacto, por causa de um rocket do Hamas. Ou ‘rámas’, como a própria Ana diz, fazendo as vezes de Milhazes do Médio Oriente.

green tree on brown sand during daytime

Mudei o canal porque não consigo mesmo ouvir mais este nível de hipocrisia e racismo básico.

Entretanto, resolvi o problema do parafuso sem cabeça. Não foi bonito de se ver, acrescente-se.

Paro na RTP e estou na análise de Rui Moreira. O tema é a TAP. Não prevejo grande futuro, mas lá está, como já vos expliquei, não resisto a um bom acidente.

Desligo o berbequim, porque adivinho asneira da grossa. Rui Moreira analisa o veto presidencial ao negócio da venda da TAP e, entre outras coisas, explica que alguns dos grupos interessados já foram falar com ele, enquanto presidente da Câmara do Porto, por causa do investimento pretendido no Aeroporto Sá Carneiro. Segundo ele, a Iberia estaria interessada em passar muitas rotas para lá, dadas as limitações existentes em Lisboa. Expliquem-me, porque o meu limitado vocabulário de emigrante me vai pregando rasteiras, se a palavra “incompatibilidade” ainda está contemplada no dicionário da Língua Portuguesa.

Como é que um homem que há anos faz campanha contra a TAP pública, com o aberrante argumento que “não serve o Porto”, pode agora estar no papel de comentador a opinar sobre a venda, hubs, interessados e o que melhor serve Portugal,quando há anos que faz, a proveito dos votos, exactamente o contrário? Não há um mínimo de vergonha na cara e alguma coerência no alinhamento informativo? É a RTP, caramba! Não é a CMTV. Exige-se algo mais.

Voltei a carregar apressadamente no comando e passei pela homilia do Paulo Portas, que desfazia António Guterres, a propósito das declarações do secretário-geral das Nações Unidas sobre o aumento da violência por parte de Israel. Aqui não aguentei sequer um minuto, e decididamente não entendo como há espaço de propaganda e restauração de imagem para políticos que se viram envolvidos em escândalos de corrupção, abuso de poder ou conflito de interesses.

José Sócrates, Paulo Portas, Miguel Relvas, entre outros, estiveram debaixo das objectivas em diversos momentos das respectivas governações por crimes, suspeitas ou abusos. Como é que aparecem nas televisões, algum tempo depois, como senadores da opinião e alguém a quem os portugueses devem prestar atenção? Não há mesmo mais ninguém? Como é que um político português a quem ainda hoje não se conseguiu retirar toda a verdade do desastre da compra dos submarinos, pode vir criticar Guterres, depois deste ter sido o único dirigente do mundo ocidental a alertar para o genocídio que acontece em Gaza?

Desisti da televisão e passei para os podcasts. O primeiro era o do Rogeiro com o Milhazes. Ao fim de cinco minutos, já ouvia o Milhazes a dizer que “não nos podemos esquecer da Ucrânia”, como quem faz um apelo de emprego. Compreendo-o. Quem é que quer perder receita depois destes dois anos de sonho? Foi sol de pouca dura e continuei a desfazer móveis ao som de uma playlist do Spotify que era exactamente por onde deveria ter começado. E ficado.

Motherland Monument among green trees on embankment in Kiev

Enfim, mas o que custa afinal fazer jornalismo mostrando os dois lados do mesmo conflito? Custa assim tanto dar às pessoas as diferentes versões do mesmo tema e deixá-las formar opinião livremente? Na Al Jazeera, um destes dias, via um painel com um professor de História Árabe, um antigo funcionário das Nações Unidas ligado à ajuda humanitária em Gaza e um antigo membro da Mossad.

Portanto, um debate com três visões (duas delas totalmente opostas) sobre um conflito com 75 anos. Não há um despejar de narrativas e muito menos horas e horas de especulação criada a partir de um lado. Há discussão, troca de opinião e um verdadeiro debate com argumentos de parte a parte que permite, a quem vê, criar uma opinião mais informada.

Parte da nossa pobreza e atraso estrutural vem, também, da forma como aceitamos tudo aquilo que alguém, sentado num estúdio de televisão, nos diz. Mesmo que a coerência não exista, o contraditório seja raro e os argumentos mudem entre situações semelhantes.

Em 10 milhões de habitantes, não deve ser assim tão difícil conseguir ouvir pessoas, em análises televisivas, com mais conhecimento e menos ideologia. E certamente, mesmo entre os antigos políticos que tanto parecem apreciar, devem existir duas mãos cheias que tenham mesmo feito os cursos através de aulas e exames ou não tenham desviado dinheiro público.

Se a bitola está na CMTV, então tudo bem. Se queremos um pouco mais do que uma população que ainda vê o Big Brother, então é preciso dar um pouco mais do que palha em horário nobre. A começar pelos canais de informação.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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