Primeiro, estranha-se, depois forçosamente se conclui que, afinal, nem todos os ajustes directos trazem água no bico, e são bem-intencionados, porque, analisados em detalhe, se mostra evidente que mais ninguém, além de uma empresa específica, pode trazer esperança, mesmo se a um custo (muito mais) elevado, a quem sofre de doenças raras.
O caso da aquisição pelo Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) de um fármaco inovador – vosoritida, sob a marca comercial Voxzogo, pela BioMarin –, como terapêutica para uma forma de nanismo (acondroplasia), chamou a atenção do PÁGINA UM por dois motivos: ajuste directo e preço muito elevado.
Mas nem como tudo o que reluz é ouro, também nem tudo o que é ajuste directo com valores elevados é é pechisbeque. E a vosoritida como terapêutica da acondroplasia é disso um exemplo. Esta doença genética, que tem uma incidência em Portugal de 1 por cada 22.000 crianças nascidas – o que significa que, em cada dois anos, há sete que nasce com esta malformação congénita –, tem como reflexos visíveis uma baixa estatura desproporcionada, devido a um menor crescimento dos membros superiores e inferiores, além de malformações da coluna e de outros ossos do crânio.
A vosoritida, que apenas em 2021 recebeu luz verde da Agência Europeia do Medicamento e de outros reguladores internacionais, ‘simula’ uma substância produzida naturalmente em pessoas sem alteração genética no gene do receptor 3 do factor de crescimento de fibroblastos. Antes deste medicamento – que em ensaios clínicos mostrou resultados promissores, sem efeitos secundários relevantes –, quase apenas se poderia recorrer a intervenções correctivas, incluindo cirurgias, e com resultados muito limitados.
Mas além de ser um fármaco ainda sem resultados de longo prazo, há um outro óbice: obriga a administrações de longo prazo, até o crescimento cessar, através de injecções diárias. E o preço não é nada barato: 700 euros por dose. Assim, por ano, para cada criança tratada, o custo atinge mais de 250 mil euros.
Na semana passada, com o contrato a ser publicado ontem, o CHUC adquiriu um total de 7920 unidades deste fármaco, fabricado pela biotecnológica norte-americana BioMarin, por cerca de 5,2 milhões de euros. Com IVA atinge os 5,5 milhões. Mas a este contrato de aquisição recente juntam-se mais cinco desde Setembro do ano passado, todos celebrados com uma empresa de logística do sector da saúde . A factura suportada atinge já os 13,4 milhões de euros, embora inclua o abastecimento para o próximo ano.
De acordo com dados do CHUC, estão neste momento a ser tratadas 27 crianças de todo o país, com o tratamento inicial, até Setembro do ano passado, a ser gratuito para o Estado português, mas depois as facturas começaram a chegar. “Os serviços de pediatria do Hospital de Coimbra são a referência nacional para este tipo de doença genética, e por isso centralizou-se aqui a gestão deste fármaco, a compra e a entrega às famílias das crianças, enquanto o Infarmed não conclui a avaliação económica”, no contexto do Programa para Acesso Precoce a Medicamentos (PAP), salienta José Feio, director de serviços de Farmacologia do CHUC.
Isto significa que, até se chegar à fase de negociação e definição de um preço final e da respectiva comparticipação do Estado – que se prevê total face ao elevadíssimo custo dos tratamentos diários –, será o orçamento do CHUC a arcar com os encargos de todos o país. Daí que José Feio defenda um “financiamento vertical”, em que os hospitais possam recorrer a um suplemento orçamental para fazer face aos encargos suplementares para novos fármacos.
Mas se, num Estado solidário, não parecem existir dúvidas sobre a utilidade de certos fármacos que dão esperança de uma melhor vida a quem teve uma ‘infelicidade genética’, o preço acaba por ser tema sensível mas necessário, sobretudo quando as farmacêuticas apresentam lucros significativos quando um dos seus medicamentos tem sucesso.
Por exemplo, as receitas da BioMarin com o seu Voxzogo quase quadruplicaram no primeiro semestre deste ano, passando de 54 milhões de dólares em período homólogo de 2022 para 201,2 milhões, sendo já o seu terceiro medicamento mais rentável e, de longe, o maior crescimento de facturação.
Como neste momento a BioMarin é ainda a única farmacêutica com um tratamento para a acondroplasia – os desenvolvimentos pela Ascendis Pharma, BridgeBio e Pfizer ainda não estão concluídos –, ignora-se ainda quais os encargos totais para o erário público, tendo em conta que, podendo o tratamento começar a partir dos 2 anos de idade e seguir até ao fim da adolescência, potencialmente, no futuro, poderão vir a ser tratadas cerca de duas dezenas de crianças por ano. Aos actuais preços unitários do tratamento anual (255.500 euros), significaria que o custo global ascenderia aos 10 milhões de euros por ano.
José Feio considera, contudo, prematuro apontar um custo, estando, porém, muito confiante na capacidade de negociação quando a avaliação económica do Infarmed estiver concluída. “A equipa do Infarmed que conheço integra um painel de especialistas de grande valor e seriedade, e excelente capacidade de negociação”, salienta, acrescentando que “em fármacos desta natureza, Portugal, mesmo sendo um país de pequena dimensão, consegue preços mais baixos do que a generalidade dos países europeus”. Por agora, o custo médio em redor dos 2.500 euros por ano é substancialmente inferior aos 3.000 dólares (2.837 euros ao câmbio actual) anunciado em 2021 pela biotecnológica norte-americana.
Para o director de serviços de Farmacologia do CHUC, no caso da vosoritida, além dos resultados até agora obtidos “coincidirem ou até se mostrarem melhores do que os ensaios clínicos”, também se deve fazer uma avaliação sobre as poupanças nos tratamentos médicos de pessoas com nanismo. Entre as afecções médicas associadas à acondroplasia estão a apneia do sono, infecções de ouvido, compressão da medula espinal e acumulação de líquido no crânio. Além disso, sem rastreio, o risco de morte súbita em crianças com menos de 5 anos com acondroplasia pode ser quase 50 vezes superior.
Contudo, talvez paradoxalmente, a descoberta de uma terapia para esta doença genética não foi festejada de forma unânime, incluindo mesmo pelas associações de apoios às pessoas com nanismo. Por exemplo, em 2020, quando a vosoritida ainda estava em ensaios, uma reportagem do New York Times transmitia o receio de que o medicamento pudesse afectar a vida dos adultos com acondroplasia, com associações muito dinâmicas que incentivam ao ‘Orgulho Anão’, ou seja, à capacidade de fazer uma vida normal e plena mesmo nessa condição.
E ainda mais recentemente, no passado dia 30 de Agosto, uma esclarecedora reportagem da Nature salientava que, embora a procura deste medicamento tenha sido recebido de forma entusiástica e esperançosa por alguns pais com filhos sofrendo de nanismo, houve também movimentos de desaprovação.
A Nature cita um bioeticista da Universidade de San Diego, Joseph Stramondo, que diz que certas “pessoas responderam como se isto fosse um ataque à subcultura e à identidade das pessoas com nanismo”. E uma importante associação norte-americana, a Little People of America, que conta com oito mil membros, fala mesmo em apagamento ou mesmo em eugenia de pessoas anãs. Aliás, como salienta a reportagem da Nature, as relações entre a Little People of America a a BioMarin têm sido tensas.
O contrato para aquisição da vosoritida integra o Boletim P1 da Contratação Pública e Ajustes Directos que agrega os contratos divulgados entre a passada sexta-feira e domingo. Desde Setembro, o PÁGINA UM apresenta uma análise diária aos contratos publicados no dia anterior (independentemente da data da assinatura) no Portal Base. De segunda a sexta-feira, o PÁGINA UM faz uma leitura do Portal Base para revelar os principais contratos públicos, destacando sobretudo aqueles que foram assumidos por ajuste directo.
PAV
Ontem, dia 30 de Outubro, no Portal Base foram divulgados 633 contratos públicos, com preços entre os 12,35 euros – para aquisição de medicamentos, pela Unidade Local de Saúde de Matosinhos, ao abrigo de acordo-quadro – e os 5.993.347,58 euros – para empreitada de construção de Polo de Saúde, pelo Município de Cascais, através de concurso público.
Com preço contratual acima de 500.000 euros, foram publicados 16 contratos, dos quais 11 por concurso público, um ao abrigo de acordo-quadro, um por ajuste directo e três por consulta prévia simplificada.
Por ajuste directo, com preço contratual superior a 100.000 euros, foram publicados oito contratos, pelas seguintes entidades adjudicantes: Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (com a Alloga Logifarma, no valor de 5.228.467,20 euros); Laboratório Nacional de Engenharia Civil (com a TIS.pt – Consultores em Transportes Inovação e Sistemas, no valor de 213.730,00 euros); Município de Almada (com a Algeco – Construções Pré-Fabricadas, no valor de 171.518,96 euros); Banco de Portugal (com a Tubos Vouga – Sistemas de Engenharia, no valor de 163.244,16 euros); Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (com a C. Santos VP, S.A., no valor de 130.560,00 euros); Sociedade de Desenvolvimento do Porto Santo (com a Magnolia Golf Design, no valor de 124.800,00 euros); Estado Maior da Força Aérea (com a Interlimpe – Facility services, no valor de 123.980,94 euros); e o Hospital Garcia de Orta (com a Blueclinical, no valor de 100.000,00 euros).
TOP 5 dos contratos públicos divulgados no dia 30 de Outubro
(todos os procedimentos)
1 – Construção do Polo de Saúde de Cascais
Adjudicante: Município de Cascais
Adjudicatário: Construções Corte Recto – Engenharia & Construção
Preço contratual: 5.993.347,58 euros
Tipo de procedimento: Concurso público
Adjudicante: Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Adjudicatário: Alloga Logifarma
Preço contratual: 5.228.467,20 euros
Tipo de procedimento: Ajuste directo
3 – Empreitada de construção da Unidade de Saúde de Ribeira Nova
Adjudicante: Lisboa Ocidental, SRU – Sociedade de Reabilitação Urbana
Adjudicatário: NVE Engenharias
Preço contratual: 2.681.629,65 euros
Tipo de procedimento: Concurso público
4 – Empreitada de recuperação e construção dos edifícios destinados a ERPI, CD e SAD
Adjudicante: Centro Social e Paroquial de Alcaide
Adjudicatário: Construções J.M.R.B.
Preço contratual: 1.995.100,92 euros
Tipo de procedimento: Concurso público
5 – Empreitada de construção de lar para a terceira idade
Adjudicante: Centro Social da Paróquia S. Martinho de Medelo
Adjudicatário: António Freitas Castro, Lda.
Preço contratual: 1.825.863,40 euros
Tipo de procedimento: Concurso público
TOP 5 dos contratos públicos por ajuste directo divulgados no dia 30 de Outubro
Adjudicante: Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Adjudicatário: Alloga Logifarma
Preço contratual: 5.228.467,20 euros
2 – Aquisição de estudo para aumentar a capacidade aeroportuária de Lisboa
Adjudicante: Laboratório Nacional de Engenharia Civil
Adjudicatário: TIS.pt – Consultores em Transportes Inovação e Sistemas
Preço contratual: 213.730,00 euros
3 – Locação de salas de aulas em monoblocos para a Escola Básica do Alfeite
Adjudicante: Município de Almada
Adjudicatário: Algeco – Construções Pré-Fabricadas
Preço contratual: 171.518,96 euros
4 – Andaimes para as fachadas do Edifício Portugal
Adjudicante: Banco de Portugal
Adjudicatário: Tubos Vouga – Sistemas de Engenharia
Preço contratual: 163.244,16 euros
5 – Aquisição de serviços especializados para o parqueamento de viaturas de luxo
Adjudicante: Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça
Adjudicatário: C. Santos VP, S.A.
Preço contratual: 130.560,00 euros
MAP