É como aquele abraço, o corpo cede, as mãos rodeiam, em volta das costas, mas os polegares ficam estendidos, para fora, recusando o toque, recusando agarrar… Um passo para trás, um pé de fora.
Agora, a noite chega mais cedo, todos sentimos o aviso do inverno, um novo inverno que acabrunha a mente, a pensar como aquecer a toca para nos escondermos. E suponho que a leste, pelas mesas e cadeiras emboloradas onde o regime do comediante herói treme, o horror do avanço da neve nas botas russas alucine as mentes cegas (polegares para fora), cismadas na fantasia gelada e petrificada de medo do gigante europeu, que é asiático.
O Zé envelheceu, entretanto, profundamente, embrulhado e implodido na recusa em admitir ter sido usado como peça menor neste jogo americano de vergar velhos europeus como colunato avançado contra a ameaça chinesa. Encorrilhado na noção que os traficantes de guerra das televisões, confortavelmente aquecidos e maquilhados debaixo do holofote brilhante, deixaram de falar nos ossos ucranianos que se espraiam nas planícies de Zaporizhia.
A crença terá sido sincera. Que eram bastiões de um ideal europeu, democrata, ocidental… Que estavam a combater o mal e a defender o bem… Que cada vida de uma geração chacinada na lama, por estes anos, valia o sacrifício e elevava o legado de homenzinhos arrogantes que julgavam o seu papel na História como glorioso a conduzir jovens para a morte vã…
Que parvoíce. A glória. A vã glória (polegares para fora.)
Os únicos vencedores no jogo da História mantêm-se na sombra, a engordar as teias de influência obscura. Repousam em almofadas fofas em Genebra, entretidos a debater formas de comunicar o apocalipse climático e manter o gado informado e obediente nos cercados.
Enquanto o Zé perde o sono e repara que Israel é afinal o novo bastião dos valores e dos ideais superiores da ideologia vigente, contra o avanço da areia nas botas jihadistas, os ratos que o rodeiam começam a encher todos os bolsos com riquezas portáteis. Tudo se assemelha em ecos do passado, quando um lunático líder entrincheirado num bunker vociferava que o Reich de mil anos nasceria em cima das costas de todos os alemães estendidos sob as bombas aliadas.
Nos corredores aumentam os sussurros de como resolver a saída de cena do palhaço triste, que tipo de punhal cravar entre as suas costelas. Se a História for meiga com o Zé, surgirá um breve momento de lucidez na sua cabeça que o fará envergonhadamente fugir, já, fugir para longe, esconder-se do mundo que o quer devorar. Mas se o medo dessa vergonha for demasiado insuportável, talvez a Primavera nasça em cima das suas costas, estendido sob a deslealdade de quem lhe bateu com as mãos no lombo (polegares para fora).
De Gaza vemos as crianças estendidas entre sangue e escombros. Pequenas. Partidas. Convulsões que nos cortam o ar. Mães e pais que gritam ou mães e pais que já nem lá estão, ficando os corpos debaixo de toneladas de pedra, e aquelas crianças sozinhas, mãos enluvadas tentando acudir-lhes o corpo sem saber por onde começar.
Guerra – que nojo.
Se não existissem homens e mulheres aprestando-se a serem botas, veríamos crianças mortas na areia ou corpos abandonados na geada de leste?
Recusem. Digam não. As armas estão nas vossas mãos, pela glória de um Zé vacilante, medroso, de um Bibi aviltante, sorridente e psicopata, de um pobre velho Joe, demente, gaguejando chavões dados em cábula por falcões.
Se as pessoas despirem o uniforme, estendendo armas, e recusando o seu uso, nos pés destes patetas, veremos que a carne cobrindo-lhes o esqueleto cansado é afinal igual à do inimigo que mandaram matar. Vejam-se nus. Para que serve um exército?
Porque mantemos soldados ao fim de centenas de anos de história de holocaustos e vísceras espalhadas por entre pedras? Porque permitimos perder agricultores a enfiar as mãos na terra semeando alimento, enquanto insistimos em promover coveiros a enfiar o futuro na lama semeando a morte?
Não queiramos bandeiras, fronteiras, muros ou países, que se alimentam de soldados, todos nossos filhos, condenando-os, assim, sem pejo, a mortes frias e violentas, em prol de medrosos, fanáticos e dementes, que se arrastam por veludos vermelhos sem sequer sentirem o peso da culpa a crescer-lhes nos tornozelos.
Não há direito de defesa. Não existe. É a mentira com que os maquilhados e quentes debaixo de holofotes brilhantes nos violam a alma, decididos a salgar a terra por abstracções inúteis. E é a mentira com que se convencem fanáticos nas ruas a maltratar outro ser humano.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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