– Posso pêra?
Olhei-a com estranheza, enquanto os cabelos negros lhe invadiam a boca e com trejeitos sorridentes de criança balouçava o corpo, com um joelho apenas apoiado na cadeira, brincadeiras inventadas sem fim.
“Posso pêra?”, repeti eu de olhos arregalados num inevitável zangar despótico, pela aparente insolência de ela combater o uso de verbos ou artigos e desprestigiar assim o bordado da língua materna.
Hesitamos as duas. Ela a avaliar se tinha pisado uma risca comigo, ou se eu ia ceder. Eu a avaliar o quão ridícula me sentia por fincar pé, em coisas. Meras coisas, tantas coisas que, na verdade, poderia ceder, poderia deixar ao critério dela seguir ou não, mas avós agarrados aos meus ossos sussurram-me que endireite as costas e vinque a coisa, qualquer coisa, pelo menos uma coisa que a segure à terra quando as ventanias começarem a redemoinhar os cabelos negros e seja obrigada a franzir os olhos para conseguir ver melhor.
(É para te ver melhor.)
– Posso comer uma pêra?
Ah! Podes. Assim está melhor!
Mas que sei eu, na verdade? Se falantes de outra era, de roupas mais guarnecidas, nos ouvissem hoje a algaraviar, perguntar-se-iam como que raio havia degenerado a tal ponto a língua que, abdicando de rendilhados e vocábulos, se tinha convertido nesta coisa (qualquer coisa, pelo menos uma coisa) e talvez seja orgânico, talvez seja depurar de forma natural, pôr na borda do prato meias luas de cebola que serviram de tempero. Pode ser comido, mas pode ser recusado, porque há pressa, não há tempo, não importa.
Se tens dois verbos, usa um. Se tens artigos (pronomes) cospe-os entre os dentes, como pevides, estão a mais, cospe! Já agora, aponta apenas. Faz ugh e aguarda a interpretação. Ou que te atirem a pêra à testa a ver se acertam.
Mas que sei eu na verdade? Só o que vi que ela não viu. Não saberei o que ela verá depois de eu me finar, mas ela poderá sempre reler o passado, reler-me aqui a mim até depois de eu ser apenas um eco. E poderá até contemplar novas reflexões e interpretações deste meu rastro. Não sei. Não sei se é o culto da moda dedicado à adolescência. Dedicado aos meninos que não querem ser adultos
(e não são)
e dedicado ao abandono dos velhos, a era dos prazos de validade carimbados em Ver fundo da embalagem (o tempo perguntou ao tempo).
Que verá ela um dia, ao reler este mundo que viveu, mas não sofreu? Verá que vivíamos a era da feminilidade tóxica? A era onde homens se atreviam a fingir-se mulheres e a cobiçarem-nos o que é só nosso? A era onde os homens se baralhavam se tivessem a voz mais grave, o corpo mais maciço, a barba mais rija, a força mais bruta?
Não recordo nem suspiro por uma era em que os homens dominavam. Em que os Kilonewtons associados à força e velocidade do punho anunciavam a sua passagem num troar seco de tenor, em que o mero olhar carregado de testosterona tentava vergar a nossa mais pequenina (insolência) forma de desafiar, de dizer que estamos aqui, somos metade, somos a metade multifunções, somos a metade portal, a metade guardiã, a metade que circunda o fogo em segurança. Não somos só uma coisa, eu, ela, nós todas, meninas e mulheres.
Como se atrevem a achar que sabem o que somos? Como se atrevem a dizer que a vossa imaginação é superior a nós próprias, inteiras, ao nosso corpo, a como o nosso corpo informa a nossa alma, a como se o sangue que nos corre e alumia fosse igual a qualquer ciência do Dr. Frankenstein.
E vocês… Meninas “aliadas”, criadas de servir… Feminilidade tóxica que vos emprenha a secura (da alma), estridentes capachos de homens que invadem o nosso sexo em enorme despudor, em enorme desrespeito, a acusar outros de masculinidade tóxica. A ironia. A ironia.
– Posso pêra?
Comam, comam. Comam os verbos. Comam as essências. Cuspam as pevides.
Que sei eu? Não estarei cá para ver o destino, só estou cá para segurar a ponte neste momento. Foi o sussurro que os avós me deram, enquanto se penduraram nas minhas costelas, com peso, um por um, com ternura firme e costas direitas.
A chuva continuará a cair. Miudinha talvez. Ventanias vão e vêm, só temos de segurar a ponte.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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