ARQUITECTURA DOS SENTIDOS

Pirâmides

brown and blue wallpaper

minuto/s restantes

Parte 1 – Indevida

Estranha espécie que se dedica a erguer pirâmides de pedra para encerrar labirintos, para encerrar mortos, múmias, objectos. Antecâmaras, túneis estreitos (labirintos), blocos, blocos, blocos. Tudo a barrar o caminho.

Estranha a espécie que quer entrar nesse labirinto, cuidadosamente, esgueirando o que possa por caminhos asfixiados, como escaravelhos luzidios, espalmados, deslizantes junto a grãos sólidos enquanto, magicamente, numa bolsa de ar, revelam asas e se erguem a flutuar, se afastam do mundo compacto (não são daqui, não são daqui).

person walking near The Great Sphinx

Talvez as pirâmides, talvez as barragens, talvez as pontes (o ferro, cravado na alma do globo), talvez as torres, talvez as estradas, tenham sido feitas para escaravelhos luzidios (espalmados) que, se quiserem, revelam asas e se erguem (a flutuar), voam e afastam-se (do ferro cravado na alma), pois, visto de longe, olha o lindo que é, olha a linda espécie que ali desliza junto a grãos sólidos, e afinal nem sólidos são (o que é sólido?) e o vento leva sem problema, sem esforço, revelando asas e erguendo-os a flutuar, numa tempestade de areia sem fim a esconder pirâmides (e barragens e pontes e torres e estradas).

Nada sobra.

– Eu sei fazer casas. O triângulo é o telhado, mãe.

Pois é. O triângulo é só o telhado, o que está abaixo é que é a casa (o que é uma casa?) As casas servem para guardar coisas, às vezes também nos guardam a nós (desde que mantenham o telhado), traumas, vidas, silêncios, ruído. Um choro, uma gargalhada, o eco de uma discussão (coisas), e às vezes os mortos (os nossos), e até os vivos (mortos), que esquecemos lá dentro cuidando que cuidam das coisas, que as alimentam e duvidam (duvidam, duvidam).

a roof with a triangle shaped window on top of it

Os mascarados prosseguem, vestem as coisas e são blocos de pedra que erguem pirâmides, cuidando que dentro deles os labirintos não importam, ar escuro não ocupa espaço, nem constitui caminho (não entrem, não entrem, não entrem).

As pirâmides mantêm-se porque precisamos de as ter no horizonte, a pontuar o êxodo, a areia infinita erguida a flutuar perante os nossos olhos, que alívio, ali há gente (e coisas e mortos). Desde ali podemos mapear, referenciar, encontrar rotas. O mundo sem rotas é enorme e pode comer-nos. A deriva assusta e causa-nos hesitação (duvidam, duvidam).

Rotas e rotinas (precisamos de as ter no horizonte, a pontuar, a flutuar, que alívio) devoram-nos e empurram-nos para dentro de labirintos. Se já não sabemos encontrar a entrada, não vale a pena voltar atrás, mesmo adivinhando (duvidando) o risco de não chegar ao fim, e ficar morto num espaço de ar escuro (não ocupa espaço), ficar ali sem chegar ao fim – afinal qual era o fim, qual era a saída, qual era o centro, qual era o propósito?

Nada sobra.

maze garden

Parte 2 – Devida (à leviandade dos cadernos virtuais, que se apagam quando mudamos de andamento)

É possível morrer de coração partido. Parte. Põe-se o órgão dentro de casas com triângulos, labirintos, ar escuro que não ocupa espaço.

Estará tudo a morrer de coração partido. Parte. Não há cola que chegue para restaurar estilhaços desses. Almas em bocadinhos não voltam tão cedo.

Reparem que as folhas que são levemente sacudidas lá fora parecem pardais, para o míope ou para o desavisado, certamente pardais, passarinhos tímidos em pequenos saltos. Se partidas (as folhas) não saltam tanto, encostam-se umas às outras à espera da vassoura, a compostar o caminho.

Mas caindo destes esvoaçares (saltitando), que isto de movimentos diáfanos não aquecem o corpo em tempos outonais, nada como ver aquelas três mulheres de avental e mangas arregaçadas, saindo do prédio cor de rosa (e o cabelo de uma está também cor de rosa, escuro, curto, encaracolado), com várias vassouras, mopas, esfregonas e um balde em cada mão.

assorted-color lear hanging decor

O sol de São Martinho a cruzar as sombras e a embater-lhes nos olhos (que se franzem), duas gerações (e aposto que a mais velha é danada com as outras duas!), argolas douradas nos lóbulos das orelhas, um meio sorriso e aquela aura de alheamento, aquelas ondas enquanto caminham, aquele saltitar do que é que interessa tudo isso, se é preciso é esfregar devidamente aquele canto desprezado entre o caixilho e o peitoril, que se acumula em negrumes húmidos e infecta a vida das pessoas.

Do salto de pardal à pirâmide, as folhas de outo tono a acumularem na valeta, o escaravelho a esgueirar-se nas areias, os blocos à nossa volta e chamem as senhoras da limpeza! Chamem-nas que alguém tem de limpar isto e tem de limpar várias vezes, daqui até ao equinócio de Março, não sobra assim tanto tempo para decidirmos se concretizamos um ensaio sobre a nossa lucidez. Não sobra assim tanto tempo para sermos amargos e evitarmos partir mais corações na vã esperança de os ver mais leves na balança final.

Mariana Santos Martins é arquitecta


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