Muitos dizem já que a montanha pariu um rato – e que António Costa se precipitou na demissão. Como o Ministério Público não terá conseguido sustentar a tese da corrupção, e ‘apenas’ a do tráfico de influências, logo surge a ideia de um certo esvaziamento da gravidade, e o Partido Socialista, perante o ânimo e apreço da media mainstream, mostra uma pujança para uma recauchutagem rápida através de um ex-ministro que ainda há meses se demitiu por uma embrulhada com meio milhão de euros.
Numa democracia não há pior erro do que minimizar o tráfico de influência – que é, na verdade, a génese da corrupção financeira, porque constitui, antes de tudo, uma corrupção moral. Ainda mais neste caso do data center de Sines, que me faz lembrar a implantação do Freeport de Alcochete há cerca de duas décadas, também numa zona de protecção ambiental, e que resultou numa estranha e polémica reviravolta na avaliação de impacte ambiental nos tempos de José Sócrates como ministro do Ambiente.
Causou, aliás, um breve frisson em 2009, e não deixa de ser curioso que, daquela vez, não tivemos envolvidos um chefe de gabinete e um (ex-)amigo do primeiro-ministro, mas sim um tio e um primo do então primeiro-ministro. Sugiro a leitura de uma antiga edição do Público sobre esta matéria, de 2009, para descobrir as semelhanças – e já agora, também com um texto de opinião da minha autoria, na página 3.
Na verdade, quando o Ministério Público apanha casos de tráfico de influências, devíamos ficar satisfeitos com a celeridade da sua acção e pela função preventiva e profilática. O tráfico de influência para um servidor do Estado corrupto é, na essência, a sua quota-parte do negócio, que o levará a receber, mais tarde, o suborno.
Cortar esse mal logo à nascença, antes que o corrompido receba o suborno, parece-me de elementar necessidade. Quando a corrupção é apanhada, nos poucos casos, e porque a corrupção já anda numa fase endémica (sem ser necessário de ser antecedida por pandemia), por regra já o mal está feito: a decisão política tomada, a adjudicação consumada, a construção erguida.
Mas, por outro lado, nos tempos modernos, em que se sabe de antemão haver um risco relevante de se ser apanhado pelas tecnologias, um potencial corrupto minimamente inteligente não se expõe, pelo menos de imediato; não recebe envelopes com dinheiro; não revela sinais exteriores de riqueza.
Mostra-se paciente. Recebe mais tarde, sob a forma de remunerações ‘legais’, de sinecuras ou veniagas por parte do beneficiário da acção de corrupção Para passar desapercebido, o suborno pode ser recebido, assim, por consultorias futuras bem pagas.
Cria-se então uma empresa, arranjam-se uns ‘estudos’, e já flui o dinheiro por ‘serviço’ de tráfico de influência cometidos meses ou anos antes.
Por isso, devíamos festejar quando o Ministério Público apanha criminosos públicos, ainda com a boca na botija, por tráfico de influências, porque assim o corrupto sem sequer recebeu o ‘doce’ do corruptor.
Além disso, o tráfico de influências é, muitas vezes, o máximo que se deve esperar conseguir apanhar num acto de corrupção – e há imensa corrupção, não tenho dúvidas, desde o pequeno benefício de um jantar até os muitos milhares em contratos chorudos na área da construção e, cheira-me cada vez mais, no sector da saúde.
A não ser por estupidez do corruptor (activo) e/ ou do corrompido (passivo), a prova da corrupção é extremamente complicada de alcançar, e muitas vezes “travestida” de evasão fiscal. Além disso, como o enriquecimento ilícito – ou seja, um rápido acréscimo patrimonial não explicável – não é prova de existência de corrupção, estamos perante uma dificuldade acrescida para o Ministério Público.
Por isso, o tráfico de influências por parte de um político ou de alguém na esfera governamental ou da Administração Pública deveria ser visto como um crime socialmente tão grave como a corrupção passiva e activa. É um vil e grave acto, ultrajante para uma democracia – e é sobretudo a viçosa raiz da corrupção, porque degrada moralmente toda a sociedade que passa a estar sedenta de pequenos e grandes favores e favorecimentos. Da pequena ‘cunha’ para desbloquear aquela ‘burocraciazita’ até à mega ‘cunhagem’ de um projecto em área interdita.
Até porque o tráfico de influência se exerce muitas vezes sobre funcionários públicos, com contas para pagar e objectivos de vida por concretizar, e que seriam impolutos na defesa de legalidade se não houvesse um superior político a ‘ameaçá-lo’ implicitamente de consequências se não fizessem um ‘favorzinho’.
O tráfico de influências deve ser combatido ferozmente como um cancro social, arrancado como escalracho e lançado ao fogo. E não pode ser menorizado como tem estado a ser feito por alguns opinion makers, para grande satisfação do Partido Socialista. Aliás, fazem-lhe um ‘favorzinho’ na esperança de, depois, ser-lhes retribuído, presume-se.