As investigações criminais em Portugal, feitas sob a supervisão do Ministério Público, têm sido arrasadas, nos últimos anos, por dois motivos fundamentais:
- Perante a suspeita de um crime, os investigadores partem do pressuposto que a primeira opinião que têm é a correcta e, a partir daí, tentam que os indícios que possam encontrar se encaixem na sua teoria descurando uma busca mais racional e lógica da verdade dos factos e chegando a omitir alguns indícios que possam conduzir a “outra” versão;
- Para conseguirem um apoio à sua narrativa, vão passando informações a alguma comunicação social que, com grandes parangonas, a defendem e apoiam. São inúmeros os casos em que jornalistas têm acesso às buscas em escritórios e residências, operação que deveria ser secreta, chegando ao ponto de haver alguns que conseguem a proeza de aparecerem nos locais antes mesmo dos agentes e magistrados.
Os arguidos e os seus advogados, nestes casos, são notificados pela primeira vez já depois de terem lido nos jornais, ouvido na rádio e vendo nas televisões toda a história criada pelo Ministério (para o) Público.
As acusações seguem o mesmo caminho, chegando à comunicação social antes de os arguidos e seus advogados a conhecerem.
Muitas delas delirantes e facilmente desmontáveis em Tribunal.
Mas, e os custos desta distorção da Lei?
Os arguidos entram nos Tribunais já com o rótulo de culpados, com a obrigação de provarem a sua inocência, numa distorção absoluta do espírito da Lei que defende exactamente o oposto.
Muitos chegam a aparecer, no dia do Julgamento, algemados, entre guardas prisionais, por estarem em prisão preventiva.
Nada que preocupe os cidadãos que se regem pela velha máxima “se está preso algo fez porque não há fumo sem fogo”.
Infelizmente, há.
Isto porque, para além da péssima qualidade de algumas investigações, os Tribunais de Instrução tendem a acreditar nelas e também são pródigos nas acusações mal fundamentadas, ou suportadas em indícios frágeis, que muitas vezes acabam por se mostrar insuficientes em julgamento, levando a absolvições.
Muitos dirão que acaba por se fazer Justiça já que, constatando-se que os arguidos são inocentes, os tribunais os absolvem.
Conclusão precipitada e errada já que esquecem as parangonas nos jornais, e as reportagens nas televisões, com os rostos dos acusados em grande plano, motivos mais do que suficientes para destruírem a credibilidade, o carácter e a honra dos implicados que, ainda que posteriormente sejam inocentados, serão sempre observados de soslaio já que, para os portugueses, nunca deixarão de ser culpados, “mas com a sorte de terem sido beneficiados pela brandura dos juízes”.
Assustador é saber que, segundo um estudo que a Direcção-Geral da Política de Justiça tornou público (foi publicado na revista “Visão” de 12 de Novembro de 2015 nas páginas 64 a 72), depois de ter analisado os Processos-Crime findos em Julgamento de 1ª Instância, entre 2007 e 2013, se concluiu que, nesses sete anos, foram acusados pelo Ministério Público, e muitos deles enviados para as cadeias em prisão preventiva, e depois absolvidos – segundo as estatísticas, “154.569, cidadãos, universo superior ao da terceira cidade mais populosa do País, Braga, com 138.000 habitantes.”
Escreve-se naquele estudo: “As percentagens de absolvição por “carência de prova”, em processos-crime findos em julgamento de 1ª instância, em Portugal, oscilam entre 40,4% e 48% do total de arguidos não condenados, estes, na sua maioria, por desistência de queixas em crime semipúblicos ou particulares.”
E acrescenta que houve casos em que o arguido chegou ao Tribunal “depois de dez juízes diferentes terem validado a sua prisão preventiva, até a tese da acusação desmoronar em Julgamento, como um castelo de cartas.”
Em média, em todos os dias desses sete anos, incluindo sábados, domingos e feriados, houve 65 cidadãos que foram acusados, e muitos deles presos, para serem, passados anos, absolvidos.
Como escreve o autor do texto da “Visão”, o jornalista J. Plácido Júnior estas acusações: “chegam a representar 48% do total de arguidos não condenados, quando o máximo admitido por peritos europeus é de 12%.”
Para cúmulo, a 4 de Agosto de 2018, o Jornal “Expresso” apresentou um estudo, sobre presos preventivos, que prova que, em Portugal, em dez anos, houve 562 detidos preventivamente e que foram absolvidos em Tribunal.
Ou seja, que houve um cidadão, por semana, durante dez anos, a ficar preso (porque os juízes consideraram não só que havia indícios fortes para o considerar culpado como, também, que nenhuma outra medida de coacção seria suficiente para que pudesse aguardar o julgamento em liberdade) e, depois, ser absolvido por não se conseguir qualquer prova da sua culpabilidade.
Além do mais, o estudo garante que este número não inclui os cidadãos que estiveram presos preventivamente e, depois, nem sequer foram acusados.
Provado que está, e por um Departamento do próprio Ministério da Justiça, que houve 154.569 cidadãos acusados, muitos deles presos, por erros grosseiros, ou mesmo com bases em ilegalidades, quantos dos magistrados que solicitaram e decretaram as prisões preventivas, ou redigiram as acusações, foram punidos?
Não sei porquê, mas acho que o número deve andar próximo do… zero.
E esta impunidade dói quase tanto como a injustiça de ver alguém com a vida destruída sem qualquer motivo para além da incompetência ou perseguição de quem o acusou de modo leviano.
Temos um Ministério que trabalha na criação de histórias para o Público.
Histórias que provocam ondas de indignação numa população inculta, invejosa, desejosa de criticar quem tem algum poder ou vida mais desafogada que a sua.
Falta-nos um Ministério Público rigoroso, isento, conhecedor da Lei.
Mas… como estão acima desta, e com o Poder de castigar quem se lhes opõe, ficarão impunes.
Temidos, mas não respeitados. Nada que os incomode, segundo parece.
Vítor Ilharco é secetário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.