Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…
… em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira
16 – Propensão para traçar tribufus, mocreias e jaburus
A russa interrompeu a falação no exato momento em que entrava na sala um terceiro escritor: o famosíssimo Georges Sim Et Non, criador do casmurro detetive Jales Maigrot.
Parei de respirar, à beira de um ataque de nervos. Nunca pensei que Medalhão falava a sério quando me mandou para o tal congresso de autores de livros de suspenses.
Como disse, simplesmente parei de respirar. E não me lembrei de recomeçar.
O francês Sim et Non é um dos meus autores favoritos. Tenho mais de trezentos dos romances que escreveu. Reli inúmeras vezes seus livros mais importantes: O homem que via passar o bonde, Sangue na névoa e O cachorro verde-amarelo.
Pequeno, magro, ligeiramente encurvado, ele chegou com as mãos enfiadas nos bolsos da capa de gabardina, que estava com a gola levantada. Segurava entre os dentes a haste de um cachimbo fumegante. Com passinhos miúdos e rápidos, dirigiu-se ao estrado. Parou por trás da cadeira que lhe cabia, segurando o recosto.
Seus olhos claros, de um verde esmaecido, giraram gelados em volta da mesa até que se detiveram em mim, que estava agonizando, quase morto de falta de ar. Com o choque daquele olhar, recomecei a respirar.
O francês sentou-se e em voz alta e forte, com acentuado sotaque carioca, cheio de xis inexistentes e de erres arrastados, dirigiu-se ao Batota:
– Meu irrmão, me diga um negócio: vamuix ou não vamuix ter recepcionixtaix neixte Congresso? Falo de garotaix, claro.
Havia desapontamento na voz dele. Era do conhecimento geral que Sim Et Non apreciava mulheres jovens e bonitas, especialmente se desfrutáveis. Mas também era famosa sua propensão para, na falta daquelas, traçar tribufus, mocreias e jaburus. Papava o que pintasse. Sua fama de mulherengo empedernido e de amante frenético corria o mundo.
– Não, mestre! – disse Batota, tão vergado que parecia decidido a lamber o chão.
– Putisgrila! Já que estamos nos trópicos, pensei que teríamos aqui tradutoras, estenógrafas e massagistas – disse o francês, e passou a língua pelos beiços para recolher a saliva. – Enfim, os mais variados exemplares da variada população feminina nativa.
– Ficou combinado que, além dos senhores escritores, apenas eu e este jornalista permaneceremos nesta sala – explicou o português.
– É homem demais pro meu gosto – lamentou Sim Et Non. E, depois de lançar um rápido olhar a Fedorova e Águeda Christine, perguntou: – E escritoras? Teremos outras? Mais jovens?
– Só está faltando aqui dona Miguela de Alcazar y Casas de Bourbon – disse Batota.
– A bruxa espanhola? – o rosto do francês franziu-se num esgar de desprezo. – Pensei que já estivesse no inferno dando trabalho ao Diabo.
– Ela vai entrar agora – disse o gerente do hotel consultando um papelucho que tinha na mão. – Pelo sorteio, é a quarta pessoa a adentrar esta sala. Ou seja, neste exato momento…
Com um rápido giro de pescoço, todos – escritores, Batota e eu – voltamo-nos para a porta. Foi um movimento uniforme, bonito mesmo, como se orquestrado, aquele que nasceu das palavras do português.
Estávamos certos de que veríamos enquadrar-se na moldura o vulto magro e rosto seco e enrugado da velha escritora espanhola. Mas passaram-se muitos preciosos segundos, um minuto, dois minutos, e nada de Miguela de Alcazar aparecer.
– Vixe santa, o que estará a fazer a megera? – perguntou lá pelas tantas Águeda Christine. – Espanhóis não costumam se atrasar.
17 – Morte é sempre a primeira hipótese
Passados dois minutos, três minutos, o que apareceu na porta foi a cara de lua de Dax Chamber, o mais famoso autor americano de livros e de roteiros policiais. Após observar-nos com atenção, um por um, ele perguntou:
– Mas, bah, tchê, adonde está a Miguelita?
Eu já não tinha mais espanto para gastar. Acabava de ver em questão de minutos quatro dos meus maiores ídolos literários, todos falando em português brasileiro, cada um com um sotaque diferente. Para culminar, ali estava Dax Chamber falando com o sotaque peculiar da minha terra. Se quisesse ter uma emoção à altura, eu precisaria cair vítima de uma síncope, sucumbir, falecer. Para depois ressuscitar feliz.
Notei que o americano empalidecia rapidamente. O sangue que lhe alimentava as veiazinhas da face – conferindo-lhe um tom róseo – fugia-lhe às pressas do rosto.
– Adonde anda a piguancha baixinha? – insistiu ele. – Ela não deveria ter entrado antes de mim?
Todos os outros escritores se movimentaram, inquietos, nas cadeiras. Fedorova tossiu e a caneta que estava diante dela rolou até o centro da mesa.
– Ora, por certo estará a ajeitar-se no quarto – disse Batota, sem muita convicção. – Atrasou-se um pouquinho, apenas isso.
– Miguela é pontualíssima – comentou Águeda Cristine. – Sempre chega na hora marcada que é pra poder aborrecer por mais tempo a paciência dos outros.
– Mas, bah, viventes, me digam uma coisa: adonde é que se enfiou a castelhana? – insistiu Dax Chamber.
O rosto do americano – que lembrava um prato, no formato; uma geléia, na consistência; e um lençol, na cor – mostrava grande preocupação.
Todos os presentes se entreolharam, cismados.
A primeira a sair do torpor foi Fedorova:
– Onde está o corno do garçom que não volta com a minha pinga? Será que o condenado aproveitou a viagem pra assassinar Mikahilucha? Ou será que os agentes da KGB, que estão sempre tentando me liquidar, se enganaram de apartamento e mataram a velha?
– Morte é batata! – disse Sim Et Non e soltou uma tétrica baforada. – Sempre que há um furdunço num congresso de escritores de histórias policiais, a morte é a primeira hipótese a ser levada em conta.
Senti que havia como que uma carga elétrica no ar. Todos que estavam naquela sala trocavam rápidos olhares escorregadios.
A pergunta de Dax Chamber – sempre pronunciada no mais genuíno gauchês – veio em nova roupagem:
– Mas eu pergunto pra vocês, baguais: peladonde anda a cucaracha velhusca?
Nesse momento, surgiu ao lado de Dax Chamber um homenzinho de terno preto. Por baixo de uma basta cabeleira preta, havia uma máscara amarela, na qual se destacavam dois olhos rasgados, nada mais que finos traços horizontais.
Meu combalido coração mais uma vez disparou. Sem dúvida, aquele era Foo Lee Shi Men, o genial escritor chinês.
Passando à frente do americano, o baixinho disse:
– A morte, mano, se confunde com o sono mais profundo. Ou dona Miguela foi ferrada pelo sono ou foi ferrada pela morte! As chances de que uma pessoa deitada esteja morta são, meu, sempre de cinquenta por cento.
Além do mano e do meu, Foo Lee Shi Men havia dito cinqueinta por ceinto. Seu sotaque, conclui, era paulistano da gema.
18 – Recorde mundial de movimentação em elevadora
Morte.
Também nas frases do escritor chinês surgira a palavra terrível. Ora, quando vários escritores de livros policiais, num mesmo lugar e hora, falam em assassinato ou morte, as pessoas ficam muito nervosas. Foi o que aconteceu então.
Nós todos nos entreolhamos. Trocamos olhares surpresos, espantados, inquietos, interrogativos, suspeitosos e assustados. Nessa ordem exata. Se nossa imobilidade persistisse, logo faltariam adjetivos para descrever nossos olhares.
Batota foi o primeiro a reagir à tétrica insinuação. Saltou da cadeira e apressado deixou a sala.
Segui as pegadas dele.
Ofegante, o português deteve-se diante da porta do apartamento de número 1313, ocupado por Miguela de Alcazar. Após um segundo de hesitação, bateu de leve.
Nada de resposta.
Estávamos já cercados pelos escritores ansiosos. O silêncio era profundo, mas pareceu-me escutar o surdo rumor daqueles cérebros brilhantes funcionando.
Mais uma vez, mais forte, o gerente do hotel bateu à porta.
– O silêncio está cheio de facas sedentas – disse uma voz muito rouca.
Voltamo-nos todos na direção daquela voz. Vimos um velho magro de arrepiadas sobrancelhas grisalhas avançando pelo corredor. Tateava o chão e a parede com uma bengala.
– É Jorge Luís Bugres! – gritei.
– Todos aqui o conhecem – disse Batota.
– É o divino Bugres! – continuei, excitado. – O poeta cego de Buenos Aires, o maior escritor das Américas, senhor das adagas, rei dos labirintos, domador de tigres, semideus dos espelhos…
– Deixa-te de mariquices! – rosnou o português para mim. E, em voz alta e clara, indagou do recém-chegado: – O que quer dizer o senhor poeta com isso das facas sedentas?
Bugres deteve-se perto de nós e falou:
– Vocês batem à porta de Miguela porque temem pela vida dela. Bem, se ela estiver morta, será o fim deste hotel porque jornais do mundo inteiro dirão que no Brasil turistas são assassinados até mesmo dentro de quartos fechados. Porém, se Miguela estiver só sesteando, será ainda mais terrível porque os espanhóis defendem com garras e dentes o seu sagrado direito de tirar uma soneca no meio do dia. Miguela tem o gênio de um touro furioso e certamente vai matar aquele que a acordar.
Batota levou o indicador à fronte e o girou. Para ele, o famoso Bugres não passava de um maluco. Depois, como para afrontar o poeta, esmurrou com força a porta do apartamento 1313.
– Se a espanhola investir, sai-lhe bandarilha! – ameaçou o português.
Passou-se um longo minuto e nada.
Vendo o garçom que chegava, trazendo na bandeja uma garrafa de cachaça, o gerente do hotel gritou a ele:
– Corre à portaria, pedaço de asno, e traz-me a chave-mestra. Já!
O garçom girou nos calcanhares e sumiu no ventre do elevador que o havia trazido.
– A minha birita! – urrou Fedorova. – Puta que pariu esse garçom! Eu devia dar-lhe um murro nos cornos! Vou morrer de sede! Volte aqui, chifrudo!
– O serviço aqui é ruim demais da conta – comentou Águeda Christine, torcendo o nariz. – Os nativos são todos meios lesadinhos.
Como que para contrariar a inglesa, o elevador se abriu um segundo depois e dele saiu o garçom. Acabara de bater o recorde mundial de descida e subida de elevador com bandeja. Fedorova voou em direção a garrafa de cachaça, derrubando Foo Lee Shi Men e Bugres.
– Perdão, oxente, mas eu não suportaria ver esse baitola desaparecer outra vez com a minha pinguinha – disse a escritora russa à guisa de desculpas, e arrancou com os dentes a tampa da garrafa.
Ofegante, o garçom entregou a chave-mestra ao gerente do hotel. Lenta e silenciosamente, Batota enfiou a chave na fechadura. E ainda mais vagarosamente a girou. Ouvimos um estalido. Em câmera lenta, o gerente foi abrindo a porta do apartamento 1313.
(cont.)
Sobre os autores (actividade literária)
Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.
Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).