PÁGINA UM CONTRA SECRETISMO DO REGULADOR

Infarmed diz que contratos dos 33 tratamentos ‘milionários’ para atrofia muscular espinhal são confidenciais

por Pedro Almeida Vieira // Novembro 20, 2023


Categoria: Exame

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Desde 2019, o Infarmed terá autorizado 33 tratamentos para a atrofia muscular espinhal, através da compra de um fármaco da Novartis, conhecido por ser ‘o mais caro do Mundo’, apesar de o Portal Base só registar sete aquisições por hospitais. Quando o PÁGINA UM perguntou as causas, o regulador disse que as compras foram contratualizadas com a Novartis no âmbito de um sistema específico para medicamentos inovadores, e o custo por toma será inferior a dois milhões de euros. Mas o Infarmed não quer mostrar os contratos, apesar do diploma legal, que enquadra a compra deste tipo de medicamentos, não prever a existência de qualquer cláusula de confidencialidade. O PÁGINA UM vai recorrer à Lei do Acesso aos Documentos Administrativos para ver os contratos e as avaliações, podendo avançar também para uma intimação no Tribunal Adminsitrativo.


No segredo dos deuses – isto é, nos corredores do Infarmed, das administrações hospitalares, do Ministério da Saúde e da farmacêutica Novartis – é como estão as condições contratuais e o valor já gasto pelo Estado português no tratamento de 33 bebés afectados com atrofia muscular espinhal através do recurso ao Zogensma, considerado o medicamento mais caro do Mundo.

O fármaco da Novartis esteve recentemente envolvido num escândalo que envolveu suspeita de influências ilegais do Presidente da República, que terá, de acordo com uma investigação da TVI, influenciado a sua aplicação em gémeas luso-brasileiras em 2019, no Hospital de Santa Maria, que, além disso, conseguiram nacionalidade portuguesa em tempo recorde.

Mas mais grave ainda é o secretismo que envolve a aquisição de medicamentos ‘milionários’, que podem atingir os dois milhões de euros, uma vez que as negociações, contratos e avaliações são mantidos secretos pelo Infarmed. E isto quando um diploma legal de 2015, que define e regula o Sistema Nacional de Avaliação de Tecnologias em Saúde, não prevê qualquer confidencialidade; ao invés, estipula explicitamente uma dezena de condições a cumprir nos contratos entre o Infarmed e as farmacêuticas com medicamentos ou intervenções inovadoras e ainda em fase experimental, como é o caso do Zogensma para tratamento da atrofia muscular espinhal.

O secretismo ainda é maior porque os centros hospitalares nem sequer estão a reportar fielmente no Portal Base as compras estabelecidas através dos contratos entre a Novartis e o Infarmed. Com efeito, há duas semanas, o PÁGINA UM revelara que constava no Portal Base a aquisição de sete compras de Zogensma, com cada dose a rondar os dois milhões de euros: uma em 2020 pelo Centro Hospitalar de Lisboa Central; uma em 2021 no Centro Hospitalar de São João; quatro em 2022 (três no Centro Hospitalar do Porto e uma no Centro Hospitalar de Gaia-Espinho); e uma este ano (Centro Hospitalar de Coimbra).

Mas, na verdade, terão sido já adquiridas 33 doses, pelo que assim a esmagadora maioria nem sequer foi colocada no Portal Base. E pior: ignora-se quanto já se gastou, uma vez que o Infarmed diz ser informação confidencial.

Rui Santos Ivo; presidente do Infarmed: o secretismo de um regulador como forma de estar na Administração Pública, onde a protecção dos negócios das farmacêuticas se sobrepõe à transparência.

De acordo com as informações detalhadas fornecidas pelo Infarmed a pedido do PÁGINA UM, as compras pelo SNS contabilizam quatros doses em 2019 – duas para o Centro Hospitalar de Lisboa Norte (ambas em Julho) e duas para o Centro Hospitalar de Coimbra (ambas em Outubro) –, seis doses em 2020 – quatro para o Centro Hospitalar de Lisboa Norte (duas em Fevereiro, uma em Março e outra em Julho), uma para o Centro Hospitalar de Coimbra (em Julho) e uma para o Centro Hospitalar do Porto (em Novembro) –, nove doses em 2021 – duas para o Centro Hospitalar do Porto (em Fevereiro e Julho), para o Centro Hospitalar de Lisboa Norte (em Março, Abril e Julho), outras três para o Centro Hospitalar de Lisboa Central (em Março, Abril e Dezembro) e uma para o Centro Hospitalar de São João (em Abril) – 11 doses em 2022 – cinco para o Centro Hospitalar do Porto (duas em Abril, uma em Fevereiro, uma em Março e uma em Junho), uma para o Centro Hospitalar de Lisboa Central (Março), uma para o Centro Hospitalar de Espinho-Gaia (em Abril) e duas para o Centro Hospitalar de Lisboa Norte (em Outubro e Dezembro) e duas para o Centro Hospitalar de Coimbra (ambas em Novembro – e três doses este ano – duas para o Centro Hospitalar de Lisboa Central (ambas em Janeiro) e uma para o Centro Hospitalar de Coimbra (em Abril).

Numa primeira fase, o PÁGINA UM confrontou o Infarmed sobre os custos destas terapêuticas – com um preço de referência a rondar os dois milhões de euros – e as razões pelas quais nem todos os contratos estavam publicados no Portal Base. O Conselho Directivo do regulador começou por afirmar que, “para efeitos de aquisição por parte das entidades do Serviço Nacional de Saúde foram negociadas condições de aquisição mais favoráveis, em contrato celebrado com a empresa titular de Autorização de Introdução de Mercado, que estão abrangidas por cláusulas de confidencialidade”, acrescentando que no caso da terapêutica para a atrofia muscular espinhal “o pagamento é feito através de um contrato de partilha de risco assente no tipo de doente e no resultado clínico, e é feito num prazo de quatro anos”.

Hospital de Santa Maria adquiriu doses que não declarou no Portal Base, tal como muitos outras unidades de saúde.

Ou seja, segundo o Infarmed, “após o pagamento de uma primeira percentagem (anual), se o tratamento não apresentar as melhorias expectáveis, não existirá lugar à continuação do pagamento do medicamento por parte das unidades hospitalares”, referindo ainda que “o valor negociado e aprovado com a decisão de financiamento foi aplicado aos doentes que já tinham utilizado o medicamento até esse momento”. O Infarmed informou ainda o PÁGINA UM de que “existiu ainda um Plano de Acesso Precoce, colocado em prática antes da conclusão do processo de financiamento, onde foi incluído um tratamento sem custos”, que terá sido o da bebé Matilde.

Atendível o facto de o enquadramento destes contratos não prever qualquer confidencialidade – pelo contrário, o diploma de 2015 estipula aspectos que devem ser incluídos, o que implica que possa ser confirmado por terceiros, incluindo jornalistas –, o PÁGINA UM voltou a questionar o Infarmed sobre a justificação legal para o secretismo.

O Conselho Directivo do regulador liderado por Rui Santos Ivo, não fazendo referência ao diploma específico de 2015 – porque não prevê, de facto, qualquer secretismo – garante existir “enquadramento no regime legal aplicável, dentro do objetivo central de viabilizar um compromisso bilateral em sede de contrato de partilha de risco”. E acrescenta ainda que “este tipo de contrato é essencialmente regulatório, tendo um conteúdo normativo próprio que enquadra, nomeadamente, ‘as condições de comparticipação ou da decisão de aquisição mediante avaliação prévia da tecnologia de saúde, comprometendo de modo efetivo o titular dessas tecnologias com os objetivos do sistema de saúde’”.

Zolgensma é considerado o fármaco mais caro do Mundo, mas apresentou-se como uma terapia de uso único para substituir um medicamento da Biogen que custa 200 mil por cada ano de tratamento contínuo. Quantas vidas já salvou e quanto já custou? Não se sabe porque é segredo.

Mesmo sabendo-se que a transparência é um preceito não apenas legal mas também um princípio democrático, sobretudo quando estão em causa dinheiros públicos – e ainda mais numa situação de défice em termos de Saúde Pública –, o Infarmed diz ser aceitável este secretismo porque “em Portugal vigora o princípio da liberdade contratual e o princípio da legalidade (…) sem que exista qualquer proibição das partes contratantes estabelecerem por acordo entre si a confidencialidade de determinadas condições contratuais, na medida em que a lei lhes concede a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, desde que em obediência à lei e ao direito e dentro dos limites dos poderes conferidos e em conformidade com os respetivos fins”.

E ainda, considera o Infarmed, que pela conjugação do regime do SINATS e de directivas comunitárias de transparência e de proteção de segredos comerciais, nada impede que “os preços finais pós-negociação não possam ser sujeitos a cláusulas de confidencialidade”.

Ou seja, tal como sucedeu com as vacinas contra a covid-19, o Infarmed defende um segredo absoluto sobre quanto se pagou, e em que condições, quanto se devia pagar e quanto não se deveria pagar e pagou, e quanto se pagou a mais. E isto tudo, aos milhões de euros, sem sequer se saber se tudo o que se gastou dos impostos dos portugueses conseguiu salvar qualquer vida ou se apenas serviu para cumprir os objectivos dos accionistas das farmacêuticas.


N.D. O PÁGINA UM considera inadmissível que, mesmo sabendo da bondade de medicamentos que podem salvar vidas, se pactue com secretismos. Vai por esse motivo solicitar formalmente os contratos e avaliações ao Infarmed deste e de outros medicamentos similares, podendo, em caso de recusar, apresentar uma intimação ao Tribunal Administrativo de Lisboa, com o apoio do FUNDO JURÍDICO.

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