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Javier Milei: a requentada ameaça do fascismo

silver bell alarm clock

por Maria Afonso Peixoto // Novembro 21, 2023


Categoria: Opinião

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A Argentina está no centro da agenda mediática por causa de Javier Milei, o novo (excêntrico) presidente. Com a sua eleição neste domingo, a imprensa mainstream nacional mostrou-se mais comedida se comparamos com o retrato que lhe fizera quando candidato à primeira volta (algo que não agradou a alguma esquerda), mas vimos, ainda assim, uma tentativa de o colar à extrema-direita e de o apresentar como um perigo para aquele país sul-americano. Um pouco à semelhança do que aconteceu com Donald Trump ou Bolsonaro, nas redes sociais e nos jornais portugueses muitos reciclaram o fantasma do “fascismo” que se abateria sobre os argentinos com o resultado da eleição.

Ora, este receio é um déjà vu; vimos levantar-se medos similares por diversas vezes no passado até se mostraram falsos. Muitas críticas poderemos apontar àqueles ex-presidentes dos Estados Unidos e do Brasil, mas hoje é mais do que claro que nunca houve qualquer fundamento sólido para os receios da imposição de regimes autoritários e repressivos, com usurpação do poder. E, ainda assim, hoje há quem insista muito num mito exasperante de que alegados “fascistas” chegarão ao poder e quando tal suceder será o fim dos tempos.

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Agora que Milei surge como uma realidade política, porque foi mesmo eleito Presidente da Argentina, ecoam vozes de ele vir a ser ‘pior’ do que Trump e Bolsonaro. E juntos! E anunciam que pior que um pavoroso fascista, é virmos assim a ter um fascista elevado ao quadrado…

Vejamos como Milei surge no contexto político da Argentina, e como se posicionam os seus críticos. Então, por um lado, temos um país enterrado numa crise económica e social, com taxa de inflação acima dos 140% e cerca de 40% do povo vive abaixo da linha da pobreza, mas afinal será com a vitória de um assumido anarco-capitalista liberal que os argentinos está condenados? Ou seja, com o lastro de destruição deixado por políticos de esquerda – embora, já sabemos, “não era esquerda de verdade” –, há quem consiga pintar um monstro sobre quem ainda não governou.

Não querendo defender os Governos de Trump, de Bolsonaro e, mais recentemente, de Georgia Meloni, é um facto que todos eles contrariaram a tese de que estas figuras de direita são o diabo em forma humana, o horror e desgraça das populações. Aliás, convém recordar que durante a psicose pandémica, vários políticos proeminentes da dita “extrema-direita” estiveram entre a minoria de vozes a insurgir-se contra medidas anti-covid que passaram por restrições de liberdades individuais e mesmo pela suspensão de direitos constitucionais.

Mas os exemplos que desmontam esta oca narrativa do “fascismo” não acabam aqui.

Ainda antes da pandemia, temia-se, entre outros cenários, que o destravado antecessor de Joe Biden começasse uma Terceira Guerra Mundial. Não deixa de ser irónico que, afinal, tenha sido com a Administração Biden – sempre vendido como sendo a todos os títulos melhor do que Trump –, que se iniciaram duas terríveis guerras ainda sem fim à vista. Contudo, incapazes de dar a mão à palmatória e não se deixando demover pelos factos, muitos ainda não alteraram em nada as suas ideias iniciais acerca de ambos os presidentes.

Quanto ao Brasil, aqueles que dizem defender a liberdade artística e de expressão não se indignaram com a censura levada a cabo pelo Governo de Lula da Silva, e que inclui o silenciamento, por meios legais, de comediantes adeptos de humor negro, como Leo Lins. Talvez porque a liberdade que tanto preconizam apenas se aplica a certas ideias e pensamentos, sendo por isso muito condicional.

É certo que não ser um temeroso fascista não basta para que um político mereça a nossa aprovação, mas aqueles que catalogam qualquer posição à direita do ‘nosso’ PSD como fascista deveriam repensar a sua argumentação – porque é enganosa, incoerente, e já roça mesmo a infantilidade.

Seria mais proveitoso discutirem-se os evidentes sinais que indiciam uma democracia frágil, e tentar combatê-los. Sinais que, nos últimos tempos, crescem de forma alarmante com os partidos supostamente moderados, cujos Governos somos levados a apoiar precisamente pela sua moderação. Como se, nas suas mãos, as liberdades estivessem eternamente asseguradas, e só houvesse necessidade de despertar quando surge o papão da ‘extrema-direita’.  

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As políticas “moderadas” trouxeram-nos ao ponto onde nos encontramos, e dizê-lo não serve para fazer apologia de políticas “imoderadas”, mas para apelar a um espírito crítico independente de rótulos superficiais e de facciosismo ideológico.

Condenar um acto perpetrado por um político do lado adversário, e assobiar para o lado perante igual acto do nosso campo político, demonstra um tribalismo e um fanatismo que, na verdade, contamina o debate e corrói a democracia. Deixamos de falar em políticas e propostas concretas, e passamos só a trocar galhardetes clubísticos, recorrendo aos epítetos habituais como armas de arremesso.

Posto isto, não sei se Javier Milei logrará algo de bom para a Argentina – tenho até sérias dúvidas, mesmo fazendo votos para que esta mudança radical acabe bem. Mas gostava, confesso, de ver algum decoro por parte de quem olha para um país a braços com uma inflação acima dos 140% e apenas consegue indignar-se com a hipotética ameaça da “extrema-direita”.

Maria Afonso Peixoto é jornalista


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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