Se não há duas sem três, para a sociedade de advogados Clareira Legal depois de seis contratos houve um sétimo, e com direito a ‘jackpot’. Na semana passada, o Turismo de Portugal entregou de ‘mão-beijada’, e sem os estorvos de concorrência, um contrato no valor de 1,2 milhões de euros à sociedade fundada por André Luiz Gomes, conhecido por ter sido advogado de Joe Berardo. Os contratos anteriores, vistos na perspectiva do que está em curso, parecem uma ‘pechincha’: custaram, para o mesmo período, ‘apenas’ 190 mil euros.
Todos os anos, desde 2017, a sociedade Clareira Legal – fundada por André Luiz Gomes, que ficou conhecido por ter sido advogado de Joe Berardo – podia contar com uma coisa: uma avença do Turismo de Portugal para patrocínio judicial e consultadoria em litígio com empresas concessionárias das zonas de jogo, ou seja, sobretudo casinos.
Assim foi em 2017 – ainda a sociedade se denominava Luiz Gomes & Associados –, logo com um ajuste directo que, formalmente, se iniciou no dia 18 de Dezembro, e durou apenas 13 dias, pelo valor de 150 mil euros. Continuou em 2018, com a assinatura de novo ajuste em 29 de Novembro pelo valor de 190 mil euros, com a particularidade de ter efeitos retroactivos ao início daquele ano. Repetiu-se a ‘dose’ de 190 mil euros em 2019, com similares circunstâncias: contrato de mão-beijada – leia-se, ajuste directo – celebrado já na segunda metade do ano, mas com efeitos a iniciar-se, mais uma vez, em Janeiro.
E escusado quase seria necessário acrescer que em 2020, 2021 e 2022 foi mais do mesmo: no primeiro destes anos, o contrato por ajuste directo de 190 mil euros foi assinado em 20 de Novembro; no segundo destes anos, o contrato de ‘mão-beijada’ calhou ter a data de 8 de Outubro; e no terceiro destes anos, lá se antecipou a ‘coisa’ para o início de Agosto.
Sabendo-se que já se andava com seis contratos anuais por ajuste directo para o mesmo objecto, cinco dos quais ‘religiosamente’ com a mesma verba, não seria necessário ser-se ‘bruxo’ para prever como certo que este ano, mais dia menos dia, surgisse o habitual ‘beija-mão’ sob a forma de contrato por ajuste directo entre a administração do Turismo de Portugal, agora liderado por Carlos Abade, e pela Clareira Legal, que assumiu esta denominação no Verão passado.
E assim foi, mas com direito a ‘jackpot’ para a sociedade de advogados: em vez de um ajuste directo com os habituais 190 mil euros, o Turismo de Portugal atribui um contrato de 1,2 milhões de euros, ou seja, o equivalente a mais de seis anos da ‘avença habitual’. No convite à apresentação da proposta para o ajuste directo “com base em critérios materiais” – que não são sequer justificados, pese embora a sociedade de advogados ostente um especialista em direito de jogos –, salienta-se apenas que o objectivo é representar o Turismo de Portugal “junto do Tribunal Arbitral no âmbito dos processos arbitrais propostos contra o Turismo de Portugal e/ ou o Estado português pelas empresas concessionárias das zonas de jogo”.
Por sua vez, o contrato não adianta muito mais, apenas referindo que o preço por hora de (suposto) trabalho será de 150 euros, um aumento de 43% face aos honorários praticados no contrato do ano anterior. Mesmo assim o Turismo de Portugal terá contratado 8.000 horas de serviços jurídicos à Clareira Legal, ou seja, 32 horas por dia útil do presente ano.
O PÁGINA UM contactou o Turismo de Portugal no sentido de obter uma justificação com base legal para sete ajustes directos sucessivos no mesmo âmbito com a Clareira Legal, e sobretudo a razão de um contrato desta natureza em 2023 com um montante tão elevado – e com efeitos retroactivos, o que significa que à data da assinatura quase todo o serviço estava afinal já executado –, mas não obteve qualquer reacção.
Sem resposta ficaram assim também as perguntas sobre os processos em concreto no Tribunal Arbitral que estiveram a ser patrocinados pela Clareira Legal e se existem garantias de que o sócio da Clareira Legal especialista em direito de jogo (Gonçalo Proença) nunca trabalhou, ou trabalhará, para as concessionárias dos jogos.
N.D. Pelas 23:18 de 21/11/2023, o PÁGINA UM recebeu o seguinte esclarecimento do Turismo de Portugal:
“O contrato a que se refere o texto [acima] foi celebrado pelo Turismo de Portugal, em cumprimento da obrigação atribuída a este Instituto pelo Estado Português para assegurar os atos e os meios necessários para a representação na defesa do Estado Português, em três ações arbitrais. As ações foram propostas em 2022 e 2023 contra o Estado Português e o Turismo de Portugal, I.P. pelas concessionárias de três zonas de jogo e o valor global dos pedidos de compensação apresentados ascende a mais de 330 milhões de euros.
A contratação em causa, respeitou integralmente as regras da contratação pública, e teve em consideração a escolha de um escritório de advogados especializado em direito público e, em especial, em contratos de concessões e, em particular, com uma experiência de vários anos no acompanhamento de concessões de exploração de jogos de fortuna ou azar em Portugal, atento o seu regime específico e de contornos muito particulares, circunstâncias determinantes nas ações arbitrais propostas, que aliás tinham ligação a outras ações judiciais já propostas e acompanhadas pelo referido escritório.
Para a escolha da referida sociedade de advogados foi ainda determinante o facto de ter conseguido obter vencimento nas ações propostas pelas concessionárias perante os tribunais judiciais, protegendo e beneficiando assim o interesse público. Neste caso foi escolhido o prestador em quem se deposita confiança técnica e profissional, sendo que, nestes casos, as próprias Diretivas Comunitárias de contratação pública não se aplicam a este tipo de contratos.
Daquele que é o conhecimento do Turismo de Portugal, não existe qualquer relação da sociedade de advogados contratada com empresas concessionárias da exploração de jogo em casinos em Portugal.“
Sobre esta matéria, o PÁGINA UM reitera que no contrato por ajuste directo deste ano, pelo valor de 1,2 milhões de euros (mais de um milhão de euros superior às seis avenças anuais anteriores), não se encontra justificação para o montante de horas pagas nas três acções arbitrais, nem ao incremento do preço à hora. O Turismo de Portugal defende que “respeitou integralmente as regras da contratação pública” quando, em sete contratos, todos foram por ajuste directo. Ou seja, aplica a excepção em sete dos sete contratos públicos assinado. O ajuste directo não é a regra do Código dos Contratos Públicos, mas constata-se ser a regra do Turismo de Portugal. Por outro lado, está por provar que a Clareira Legal seja a única sociedade de advogados capaz de defender o interesse público, pelo simples facto de nunca ter tido sequer concorrência. Se for mesmo melhor, em termos de relação qualidade-preço, por certo conseguirá provar isso num regime de livre concorrência, através de concurso público. De resto, o PÁGINA UM continuará a denunciar flagrantes actos de contratação pública, com recurso a dinheiros dos contribuintes, através de ajustes directos decididos por gestores públicos com ‘argumentos’ pouco transparentes.