VISTO DE FORA

A atracção pelo ódio da extrema-direita

person holding camera lens

minuto/s restantes


O PÁGINA UM achou boa ideia colocar-me frente-a-frente com um libertário, o Luís Gomes, todas as semanas, para discutirmos a actualidade em formato de podcast, O Estrago da Nação. Saiu ontem o segundo episódio dessa experiência, e um dos temas em debate, as eleições na Argentina, fez-me pensar um pouco para lá da gritaria do momento.

Há uma regra simples para uma análise política ter o mínimo de consistência: se Trump e Bolsonaro apoiam alguém, então, em princípio, vem aí problema.

Não é que a presidência argentina influencie o Mundo ou as nossas vidas como, por exemplo, o inquilino da Casa Branca, mas o fenómeno da subida da extrema-direita, um pouco por toda a parte, é digno de debate.

blue and white striped flag

Há um denominador comum na ascensão do extremismo: o descontentamento da população. Os motivos podem ser diferentes – suecos, portugueses e argentinos não se queixarão certamente do mesmo. Mas a forma populista como os políticos apresentam as suas soluções é, essencialmente, a mesma. Radical, de corte, surfando a onda das queixas daquela semana. Raramente há um plano a longo prazo ou sequer algo exequível no futuro imediato, mas a exacerbação do ódio é uma excelente forma de dividir a sociedade e de nos colocar a apontar culpados. Seja qual for o tema fracturante, entenda-se.

Quando o Chega apareceu em Portugal, confesso, fiquei um pouco espantado com o sucesso da receita. Um homem que é a personificação do sistema (André Ventura) gritava com tudo e todos, dizendo que ia acabar com a corrupção, a pobreza, o despesismo, a pesada máquina pública. Ele, cuja função no sector privado era ajudar capitais a desaparecerem para paraísos fiscais, atropelava toda a gente com um misto de populismo, demagogia e racismo que agradou a pelo menos 1 milhão de portugueses. É obra.

Quando o Chega apresentou o seu programa eleitoral, a primeira versão, falava em acabar com o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a escola pública, transferindo essa responsabilidade para os privados. Ao mesmo tempo que sugeriam uma taxa única de 15% de impostos, ou seja, acabando com várias prestações sociais, numa população onde 40% está no limiar da pobreza antes destas ajudas.

Curiosamente, a esmagadora maioria dos eleitores do Chega são tipicamente pessoas da classe trabalhadora, que dependem do SNS e colocam os filhos na escola pública. Há qualquer coisa nesta relação que nunca percebi. Por mais racista que se seja, e se acabe a votar num partido sem quadros e com ideias profundamente anti-democráticas, como é que não se tiram cinco minutos neste processo para perceber que estamos a dar tiros nos pés?

A lógica é simples: se não sou rico, não posso votar em partidos que defendem os ricos e advogam uma selva para os pobres. Boa parte da população portuguesa é pobre. Diria mais: por comparação com os países civilizados e de primeiro mundo, quase toda a população portuguesa é pobre.

Sendo assim, como é que a extrema-direita tem tanto sucesso? Por mais que gritem contra os imigrantes ou a corrupção do actual poder, não conseguimos todos ver que o único interesse da extrema-direita é o mesmíssimo poder e a possibilidade de daí retirar os mesmos dividendos?

Para lá chegar farão o que for necessário consoante as queixas da população. Em Portugal, durante anos, andou André Ventura a pregar contra o Rendimento Social de Inserção (RSI), uma miséria de cento e poucos euros que abrange uma franja mínima da população. Uma gota num oceano do erário público com os ciganos como chamariz. Zero impacto nas nossas vidas, mas óptimo para o grito nos comícios e nos 20 segundos da ChegaTV.

Na Argentina, a corrupção também é um problema gigante, a inflação ultrapassa os 140%, as filas de espera nos hospitais são enormes, a taxa de desemprego é elevada e o risco de pobreza apanha 40% dos argentinos.

E o que propõe Javier Milei? Fechar o Banco Central, reduzir o Governo, acabar com as prestações sociais, pedir dólares emprestados para deixar de usar o peso, permitir a venda de armas, legalizar a venda de órgãos, passar a escola e saúde públicas para as mãos dos privados. Em poucas palavras, pretende deixar uma população pobre à sua mercê. Sem solidariedade social e sem perspectivas de estabilidade e segurança no emprego. Um salve-se quem puder que, na visão dos argentinos, era um risco aceitável, considerando as desilusões dos Governos anteriores.

Um pouco por toda a Europa, vamos vendo isto. Finlândia, Suécia, Rússia, Hungria, Holanda, Polónia, Itália, entre outros, converteram o descontentamento da população em assentos parlamentares para partidos xenófobos e racistas. Os líderes não são todos iguais, reconheço isso: Jimmie Åkesson (Suécia), André Ventura, Javier Milei ou Putin, são homens inteligentes. Bolsonaro e Trump são exemplos de populistas com uma ignorância confrangedora. Mas a mensagem repete-se, o sucesso é o mesmo.

Na Escandinávia, ao contrário do sul da Europa, a discussão não se centra na corrupção ou na inflação. Muito menos no tamanho do Estado, impostos ou falta de emprego. A todos chega tudo, eu diria. O campo fértil para o crescimento da extrema-direita foram os refugiados e as ondas de migrantes. A insegurança, os problemas de integração, as guerras de gangs.

Mesmo que a maioria desses imigrantes sejam trabalhadores e contribuam, também com impostos, para o desenvolvimento do país, pouco importam estatísticas quando existem casos pontuais que possam ser apontados. Foi assim que o SD (o Chega da Suécia) chegou ao ponto de ser a segunda força mais votada do país, com interferência directa nas decisões do Governo. A população fartou-se de quem vinha de fora e o racismo, habitualmente envergonhado e mais reservado, passou a ser assumido.

Tal como os portugueses que dependem do SNS ou da escola pública e votam no Chega, um em cada cinco suecos, que imagino apreciem a economia do país, vota no SD (sverigedemokraterna), um partido que pede aos imigrantes que se vão embora.

Gostava de ver os eleitores do Chega a viverem num país sem SNS e sem escola pública e, já agora, queria ver a Economia da Suécia sem a contribuição dos 20% de imigrantes que por aqui se vão esfolando ao frio. Neste edifício de 14 andares onde trabalho, julgo que ficariam pessoas suficientes para uma partida de Monopólio. Da recepção aos escritórios de engenharia, das limpezas à cozinha, vejo poucos louros. E depois das 16:00, só vejo mesmo peles mais curtidas pelo sol.

grayscale photo of person holding glass

Entendo as queixas nos diferentes países e os problemas em realidades opostas. A saturação com a pobreza e corrupção nos países do sul ou as pinceladas de racismo nos países do norte. O que não entendo é que alguém imagine que a alternativa a partidos do Centrão (sejam mais inclinados para a esquerda ou para a direita), sejam hordas de populistas; demagogos mais preocupados em saber como assaltar o sistema do que propriamente com o bem-estar da população e o crescimento da qualidade de vida nos respectivos países.

Há vida para lá do Centrão e da extrema-direita. Está nos livros. Esperar que as diferentes versões do Chega melhorem a vida das populações, é como beber piripiri para matar a sede. Também está nos livros, do século passado.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.