EDITORIAL DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA

Victor Emanuel Marnoto Herdeiro, um burocrata a torcicolar a transparência e os tribunais

por Pedro Almeida Vieira // Novembro 28, 2023


Categoria: Opinião

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Victor Herdeiro. Melhor. Escrevo em maiúsculas – e a nominata completa para apurar o destaque: VICTOR EMANUEL MARNOTO HERDEIRO.

Para a esmagadora maioria dos leitores, esse nome nada dirá. Se acrescentar que é presidente da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), já haverá alguns, talvez poucos, que saberão de quem se trata. E, aliás, muitos pouco sabem o que é isso da ACSS, e para que serve.

Eu elucido melhor quem é, adiantando já ser ele um burocrata. Mas um burocrata especial. Victor Herdeiro é a personificação do burocrata que qualquer político adora, porque é daqueles dirigentes da Administração Pública que, caninamente – no sentido figurado do termo, mas no sentido literal da eficácia –, tudo fará para esconder o que houver por conveniente e que possa ser sensível politicamente, porque é daqueles que não está ao serviço dos cidadãos, antes se expressa um servidor dos governantes.

Victor Emanuel Marnoto Herdeiro: o burocrata que aguenta uma sentença e dois acórdãos, e mantém a recusa em ceder a consulta de uma base de dados que não identifica as pessoas nos registos informáticos.

Victor Herdeiro é, para trazer à memória dos leitores do PÁGINA UM, o amigo de longa data da ex-ministra da Saúde Marta Temido que, em Julho de 2022, fez desaparecer a base de dados da Morbilidade e da Mortalidade Hospitalar no Portal da Transparência. Por aquelas coincidências, logo após o PÁGINA UM ter escrito um conjunto de artigos de investigação sobre os internamento e a gestão das unidades de saúde durante a pandemia.

Victor Herdeiro é também o burocrata que recusou ceder a consulta, a um jornalista, dos dados anonimizados provenientes da Base de Dados Nacional de Grupos de Diagnósticos Homogéneos (BD-GDH), que inclui toda a informação dos internamentos, sem qualquer identificação de pessoas. Uma possibilidade que não só existe como está, há muito, prevista nas próprias competências da ACSS.

Mas para Victor Herdeiro, defensor-mor de ministros da Saúde, seria um horror que um jornalista com capacidade de análise de dados, independente, pudesse pegar em informação tão sensível politicamente.

E vai daí que se anda há quase ano e meio a tergiversar tribunais, para trás e para a frente. A cada derrota, mais serpenteia para o litígio seguinte – sempre socorrendo-se de uma sociedade de advogados paga a peso de ouro, a BAS, que aliás tem ligações a Lacerda Machado, como há dias escrevi – e aproveitando-se da morosidade e letargia dos tribunais.

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Vem Victor Herdeiro aqui agora à liça porque nos últimos dias tenho estado, com alguma lentidão, a complementar e actualizar a secção da Transparência, aqui no PÁGINA UM, com a informação mais relevante das cerca de duas dezenas de litígios que temos (concluídos e em curso, em diferentes fases) no Tribunal Administrativo, ou seja, intimações para a consulta de documentos e base de dados.

E eis que esta madrugada consegui completar a ‘ficha’ relativa à ACSS, que foi, até agora, a mais morosa e trabalhosa – e compreenderão, assim, a minha ‘fúria’ por me encontrar num país supostamente em democracia que admite um Victor Herdeiro como burocrata. Ou então admite por não ser uma democracia.

Senão vejamos, e podem acompanhar por aqui a cronologia mais relevante (sem os muitos requerimentos, pois em Direito Administrativo quase só há texto escrito).

No dossier “Investigação SNS”, publicado entre 13 de Maio e 1 de Junho de 2022, o PÁGINA UM usou uma base de dados que esteve, durante um período, suspensa pela entidade presidida por Victor Herdeiro, que nunca mostrou de quem veio a ordem. A BD-GDH, pedida pelo PÁGINA UM, tem um potencial informativo muito superior.

Depois de uma recusa formal ao meu pedido de acesso à base de dados dos internamentos, alguns meses mais tarde, em 24 de Novembro do ano passado, uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa a uma intimação deu razão ao PÁGINA UM, mesmo depois de a ACSS, através da sociedade BAS – a tal à qual Lacerda Machado está ligado – ter tentado convencer a juíza da impossibilidade técnica da anonimização da base de dados.

Que fez o burocrata Victor Herdeiro despois da sentença?

Recorreu para o Tribunal Central Administrativo Sul, usando o dinheiro dos contribuintes.

E levou sopa. Em Março deste ano, um acórdão deste Tribunal manteve a decisão da primeira instância sobre o acesso à base de dados dos internamentos.

E que fez o burocrata Victor Herdeiro, muito zeloso de proteger o ‘coiro’ do Ministério da Saúde?

Recorreu, mais uma vez, para a (suposta) derradeira instância, o Supremo Tribunal Administrativo, onde, por ordens de Víctor Herdeiro – ou sob o seu respaldo – se tentou convencer os conselheiros de que o meu pedido era “manifestamente abusivo”. Notem: num país democrático, um burocrata considera que um pedido de acesso a uma base de dados da Administração Pública por um jornalista seja considerado “manifestamente abusivo” para, assim, ser legítimo o impedir de informar.

Perdeu terceira vez. Repito: o burocrata Victor Emanuel Marnoto Herdeiro perdeu em primeira instância, perdeu em segunda instância e perdeu em terceira instância.

Entregou a base de dados?

Não. Mandou um ficheiro Excel, mal-amanhado, com uma suposta password que nunca sequer chegou a abrir o que quer que fosse de relevante, e argumentando que teria de apagar e mutilar dezenas de variáveis da base de dados, a tal ponto que nem sequer se poderia ficar a saber quantos internados em concreto houve em determinado ano, quanto mais fazer qualquer avaliação digna desse nome. Basicamente, mandou sentença e dois acórdãos às malvas, e começou novo circo, porque, infelizmente, mesmo com sentenças e acórdãos em Portugal há sempre formas de o poder ignorar ordens de tribunais – o que mostra bem o (des)nível da nossa democracia.

Desde Junho, de uma forma diplomática, tenho tentado obter acesso à base de dados – um direito que a Lei me consagra e três decisões de tribunais confirmaram.

Mas o burocrata Víctor Herdeiro já sabe as águas onde se move.

Sabe que a sua recusa, mesmo depois de uma sentença e dois acórdãos, não teve repercussão pública significativa. Raramente uma entidade pública é obrigada a dar documentos da importância de uma base de dados sobre os internamentos em Portugal – com a potencialidade de detectar lacunas ou problemas de Saúde Pública. Mas isto nenhum eco teve na imprensa mainstream, pois, enfim, esta não aprecia o que o PÁGINA UM faz (e que ela, com muitos mais meios, é incapaz de fazer somente por falta de coragem, porque existem muitos mais jornalistas tão bons ou mesmo muito melhores do que eu). Portanto, como burocrata, que protege o seu ‘amo político’, ignora-me e ignora o PÁGINA UM, porque ignora qualquer caso que não o belisque na opinião pública.

Para ter acesso a uma base de dados da Administração Pública, e se houver um ‘Victor Herdeiro’ já não é suficiente ter uma sentença do Tribunal Administrativo, um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul e um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo. Eis a força e o poder de um burocrata em Portugal.

Sabe também o burocrata Víctor Herdeiro como funcionam os Tribunais deste triste país, mesmo se os processos de intimação são classificados de “urgentes” – e assim de, repente, mesmo com uma sentença e dois acórdãos, e com o auxílio de uma sociedade de advogados paga pelos contribuintes, assim se entretém agora a tentar ludibriar a juíza responsável pela execução da sentença entretanto solicitada pelo PÁGINA UM no passado mês de Julho, depois de esgotada a paciência.

Mas isto está longe de terminar, e acho que a ACSS, através da sociedade BAS – a tal do Lacerda Machado – já fez entretanto três ou quatro requerimentos, incluindo a inclusão de uma pen com ficheiros que, segundo me diz o meu advogado, não aparecem ainda no Sistema de Informação dos Tribunais Administrativos e Fiscais (SITAF).

O mais recente episódio é do início deste mês, e inclui uma tentativa de convencer a juíza, num processo que já foi decidido, a ouvir uma digníssima testemunha sobre a impossibilidade de anonimização de uma base de dados que já está per si anonimizada: “o Senhor Professor Doutor Luís Antunes, [que] exerce, entre outras, as funções de Encarregado de Proteção de Dados na Comissão Nacional de Eleições, de assessoria ao Encarregado da Proteção de Dados no Banco de Portugal, e é Diretor do Centro de Competências em Cibersegurança e Privacidade da Universidade do Porto”, como refere o requerimento da sociedade BAS, a tal que, a mando do burocrata Víctor Herdeiro, anda a receber bons pecúlios dos contribuintes portugueses para esconder informação a jornalistas incómodos.

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Quem tem medo que se saiba do que padecem, e porque padecem, os portugueses, e como são tratados nos diversos hospitais portugueses?

E querem saber a parte gaga desta bufa e lamentável opereta?

A digníssima testemunha indicada pelo burocrata Víctor Herdeiro, o tal “Senhor Professor Doutor Luís Antunes” (que terá concordado na inclusão do seu nome), é sócio da HealthSystems, uma empresa de cibersegurança e protecção que só este ano já ultrapassou um milhão de euros de facturação em contratos públicos, sobretudo com hospitais tutelados pelo Ministério da Saúde, que tutela a ACSS, presidida pelo burocrata-mor e protector-mor Víctor Emanuel Marnoto Herdeiro. São ‘artistas’ destes, comprometidos até ao tutano, que vão dizer algo isento, não é?

Enfim, depois de mais de 16 meses de batalha, incluindo passagem (teoricamente) favorável por três instâncias da Justiça portuguesa, ainda hoje não sei se vou ter acesso a uma base de dados vital para uma independente avaliação do sistema de Saúde Pública em Portugal.

Neste momento, mesmo após três decisões favoráveis em tribunal, já não me surpreende absolutamente nada que haja mais um ‘golpe de asa’ do burocrata Victor Herdeiro, e/ ou mais uns empenhos da sociedade de advogados BAS, e/ ou mais um juiz que acordou estremunhado e decide dar o dito por não dito, e que tudo fique como um Governo quer: a parecer democrático, mas impedindo que um cidadão, e em particular um jornalista, tenha em concreto o direito de escrutinar a Administração Pública e as políticas públicas.

Mas se esse dia ocorrer, se ficarmos perante a evidência de que somos um fracasso projecto de democracia, onde burocratas como Victor Herdeiro servem como barreira protectora dos políticos, vai custar-me imenso, horrores, até porque têm sido meses de luta extenuante (e quase nunca visível) na companhia do nosso advogado Rui Amores – que, aliás, não recebe tão bem como os advogados pagos pela ACSS com o dinheiro dos contribuintes.

Mas, acreditem também: só desistirei de todas estas lutas se os leitores desistirem de um projecto jornalístico como o PÁGINA UM. Por isso, é tão importante ter os leitores ao lado deste jornal, até poque tem sido esse apoio, através do FUNDO JURÍDICO, que municia as batalhas de um David contra os Golias.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

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