Autor do 'Falar Global' é jornalista e usa a sua empresa para contratar patrocínios

CMTV arrisca multa de 150 mil euros por programa comercial ‘travestido’ de informação

por Pedro Almeida Vieira e Elisabete Tavares // Novembro 29, 2023


Categoria: Imprensa

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No meio de críticas à gestão de conteúdos de produção externa, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) instaurou um processo contra a Cofina Media, dona da CMTV, por causa do programa “Falar Global”. Em causa está a emissão de conteúdos comerciais sem aviso ao telespectador, ainda mais feitos por jornalistas. A multa pode chegar aos 150 mil euros. Esta decisão veio no seguimento de uma notícia do PÁGINA UM, em Agosto passado, que revelou que o apresentador do programa, o jornalista Reginaldo Rodrigues de Almeida, é simultaneamente sócio único e gerente da Kind of Magic, tendo assinado contratos de prestação de serviços para o próprio “Falar Global”. A intervenção da ERC não teve, para já, quaisquer efeitos: nos mais recentes programas, até há uma secção de promoção de gadgets ao ‘estilo Calcitrin’ com a participação de uma jornalista.


Constitui um pequeno passo para acabar com a promiscuidade entre jornalismo e mercantilismo. No meio de muitas críticas, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) instaurou um processo de contraordenação à Cofina Media por causa do programa semanal da CMTV ‘Falar Global’, que transmite conteúdos comerciais num programa supostamente informativo com a participação de jornalistas e com uma ficha técnica onde surge o nome do director daquele canal televisivo e também do Correio da Manhã, Carlos Rodrigues.

A contraordenação, considerada grave, pode valer à nova dona da CMTV, que tem como sócio o futebolista Cristiano Ronaldo, uma multa entre os 20 mil e os 150 mil euros.

Falar Global, um programa semanal da CMTV com informação de Ciência e Tecnologia, apresentado por jornalistas, mas que afinal é um programa de conteúdos comerciais, sem aviso aos telespectadores.

O caso foi noticiado pelo PÁGINA UM em Agosto passado, depois de se ter detectado no Portal Base que a Kind of Magic Unipessoal, uma empresa do autor do programa da CMTV, o jornalista Reginaldo Rodrigues de Almeida, assinara contratos de prestação de serviços de comunicação com entidades públicas, entre as quais a Universidade de Aveiro e a Câmara Municipal de Oeiras, para serem incluídos no programa semanal da CMTV.

Com a carteira profissional de jornalista 5887, Rodrigues Almeida também é administrador da Universidade Autónoma de Lisboa com os pelouros de Comunicação e das Relações Externas e de Acção Social, e tem a particularidade de se despedir efusivamente das pessoas com quem conversa durante o programa.

Note-se que o Portal Base apenas detecta contratos com entidades públicas, ignorando-se quais as parcerias comerciais que Rodrigues de Almeida terá estabelecido com empresas privadas. Por exemplo, numa das secções do programa, o Global Gadget, uma jornalista (Suely Costa) conversa sistematicamente com a mesma pessoa (Bruno Borges, da empresa iServices) sobre diversos gadgets, perguntando sempre pelas características e até pelo preço de venda ao público, e indicando mesmo um QR Code onde se pode fazer compra de imediato. Ao melhor estilo da ‘clássica’ publicidade dos programas da manhã ao Calcitrin.

De acordo com a Lei da Televisão, “os serviços de programas televisivos e os serviços de comunicação audiovisual a pedido, bem como os respectivos programas patrocinados”, devem ser “claramente identificados como tal pelo nome, logótipo ou qualquer outro sinal distintivo do patrocinador dos seus produtos ou dos seus serviços”. Algo que não sucedeu pelo menos nos casos de diversos contratos públicos revelados em Agosto passado pelo PÁGINA UM.

primeiro em Agosto de 2015, no valor de 66.000 euros, para “aquisição dos serviços de produção de documentários e reportagens relativos à história dos edifícios que albergam os Centros Ciência Viva”; o segundo em Outubro de 2019, no valor de 15.000 euros, por “serviços para produção de conteúdos para jornal impresso, para newsletters digitais, co-gestão das redes sociais e realização de entrevistas no âmbito do Ciência 2019”; e o terceiro em Maio de 2020, no valor de 12.000 euros, para “aquisição de serviços de produção e comunicação de conteúdos no âmbito do Festival da Ciência Online 2020”.

No caso do segundo contrato, o caderno de encargos estipulou, entre outras funções incompatíveis com a função de jornalista, por serem da área do marketing, que a empresa de Reginaldo Rodrigues de Almeida produzisse e editasse o jornal oficial do Encontro Ciência 2019 e realizasse 10 entrevistas diárias durante os três dias do evento. Um dos entrevistados foi o primeiro-ministro António Costa.

CMTV tentou convencer a ERC de que o programa Falar Global era uma produção externa com autonomia para evitar a contra-ordenação. A ficha técnica do programa não indica essa informação, constando a mesma ficha técnica da generalidade dos programas de informação do canal televisivo da Cofina Media.

Além desses três contratos, Reginaldo Rodrigues de Almeida ainda fez, a título pessoal, outro contrato em finais de Janeiro de 2021 com a presidente da Ciência Viva, Rosalia Vargas, para “aquisição de serviços especializados de apoio à estratégia de comunicação institucional da Rede de Clubes Ciência Viva na Escola”. O contrato nem sequer foi reduzido a escrito e ter-se-á executado em apenas dois dias a um custo de 17.500 euros, ou seja, 8.750 euros ao dia.

Num dos programas, Reginaldo Rodrigues de Almeida fez mesmo um papel duplo: jornalista e produtor de conteúdos para uma universidade. No programa ‘Falar Global’ que dedicou sobretudo ao evento Ciência 2023 realizado na Universidade de Aveiro em finais de Julho, através da sua Kind of Magic, sacou ele mais 24 mil euros num contrato com a Universidade de Aveiro para a “aquisição de serviços de gestão, realização e produção de conteúdos relativos ao plano de comunicação do evento Ciência 2023, a decorrer nos dias 5, 6 e 7 de julho”.

Ou seja, não tendo o dom da ubiquidade, Reginaldo Rodrigues de Almeida conseguiu estar no mesmo sítio – Universidade de Aveiro – a exercer duas funções, mas incompatíveis: jornalista, para o programa de informação ‘Falar Global’, e produtor de conteúdos para um plano de comunicação de um evento. Sem surpresa, o primeiro-ministro António Costa foi entrevistado, o mesmo sucedendo com Rosalia Vargas, presidente da Ciência Viva, e também Paulo Jorge Ferreira, reitor da Universidade de Aveiro, que também contratara a empresa Kind of Magic.

Carlos Rodrigues, director do Correio da Manhã e da CMTV. Mesmo depois do início do procedimento da ERC, nada foi alterado. O programa Falar Global continua exactamente como antes.

Na análise a apenas três programas de Reginaldo Rodrigues de Almeida na CMTV, a ERC começa por salientar que “a participação de jornalistas em conteúdos que resultam do pagamento de contrapartidas por entidades externas compromete não só o seu direito à autonomia e independência, como também o seu dever correspondente”, acrescentando também que “a salvaguarda da independência editorial implica a definição de uma clara esfera de proteção face aos interesses promocionais de entidades externas à redação”.

Salientando também que “daí decorre que a transparência e independência editorial não podem ser caucionadas de forma cabal em conteúdos pagos que são escritos por jornalistas”, o regulador destaca a singularidade de o jornalista, que é um dos autores do programa e que o apresenta [Reginaldo Rodrigues de Almeida] ser o proprietário da empresa (Kind of Magic) que celebrou os dois contratos com as entidades externas ao órgão de comunicação social, o Município de Oeiras e a Universidade de Aveiro, dos quais resultaram os conteúdos exibidos nas três edições do ‘Falar Global’ aqui em análise”.

Além de dar um conjunto de ‘recados’ críticos à CMTV, a ERC decidiu ainda remeter a sua deliberação para a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) para “averiguação de eventual incumprimento dos deveres profissionais dos jornalistas”, incluindo-se aqui também a jornalista Suely Costa, que se destaca nas conversas ‘amigáveis’ com um responsável da iServices onde se promovem comercialmente gadgets. Nos mais recentes programas, pode-se assistir a Suely Costa, que tem a carteira profissional de jornalistas 3519, a auxiliar a promoção da venda de auriculares com purificação de ar, de caixotes de lixo que fecham os sacos e até cotonetes electrónicos.

Saliente-se, contudo, que o envio do caso para a CCPJ tem uma elevada probabilidade de cair em saco roto. A ERC destaca que Reginaldo Rodrigues de Almeida e Suely Costa terão eventualmente incumprido dos deveres profissionais dos jornalistas, “previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º, e na alínea c) do n.º 1 do artigo 14.º, do Estatuto do Jornalista”, onde se refere que “o exercício da profissão de jornalista é incompatível com o desempenho de funções de angariação, concepção ou apresentação, através de texto, voz ou imagem, de mensagens publicitárias”, e que este tipo de profissionais deve “recusar funções ou tarefas susceptíveis de comprometer a sua independência e integridade profissional”.

Mas a CCPJ tem argumentado que legalmente apenas pode agir do ponto de vista disciplinar se forem incumpridos os deveres previstos no nº2 do artigo 14º do Estatuto do Jornalistas, razão pela qual outros escândalos de jornalistas a executarem tarefas comerciais têm ficado, até agora, impunes. Além disso, um dos três membros da secção disciplinar da CCPJ, Miguel Alexandre Ganhão, é editor de Política e Economia da CMTV e do Correio da Manhã.


N.D. No início do texto da deliberação da ERC refere-se, abusiva e lamentavelmente, que “deu entrada na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (doravante, ERC), a 10 de julho de 2023, uma exposição de Pedro Almeida Vieira (Página Um), remetendo para a existência de dois contratos assinados pela empresa Kind of Magic, Unipessoal, Lda. (adiante, Kind of Magic), os quais anexa à sua comunicação“.

Não é a primeira vez que a ERC não responde a questões do PÁGINA UM (como foi o caso da missiva enviada a 10 de Julho para uma notícia que seria publicada apenas a 3 de Agosto) e as transforma em denúncias com os dados que são remetidos para enquadramento do (esperado) comentário. Não sou ingénuo: a ERC quer agir mas com a desculpa de ter sido ‘obrigada’ por um denunciante, ou seja, há um claro fito de me colocar no papel odioso de bufo. Pensava que isso seria uma má prática do Conselho Regulador do senhor juiz conselheiro Sebastião Póvoas, mas parece que está no DNA do regulador, porque se evidencia também logo no início do mandado da professora Helena Sousa.

Lamenta-se que o regulador dos media ignore, ou queira ignorar, no caso do PÁGINA UM, que o papel fundamental de um jornalista é descobrir situações irregulares, auscultar opiniões e revelar tudo como notícia. É isso que o PÁGINA UM fez, faz e fará, incluindo em matérias sensíveis para a imprensa e para o regulador como a promiscuidade de certos jornalistas que prestam serviços comerciais para entidades externas. Por isso, quando o PÁGINA UM se dirige à ERC a colocar questões, ainda mais dizendo para o que é, a ERC deve interpretar as questões como questões de jornalistas.

O director do PÁGINA UM quando quiser fazer uma exposição à ERC, identifica a exposição como sendo uma exposição. Ou seja, justifica ao que vai, como se sabe. Julgar-se-ia ser isto claro para o Conselho Regulador da ERC, mas parece não ser.

De resto, pessoalmente, considero que a ERC tem um papel fundamental na moralização do sector dos media, porque é evidente que a auto-regulação permitiu a ‘selva’ actual. Programas como o ‘Falar Global’, nos moldes apresentados, e a existência de pessoas como Reginaldo Rodrigues de Almeida a vestirem um fato (o de jornalista) que eticamente não se lhe encaixa, apenas contribuem para a degradação do jornalismo. Se o PÁGINA UM é odiado nos meios da imprensa por denunciar esses casos, não é por estar errado – é por estar certo.

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