Em pleno mês de Novembro do ano da graça de dois mil e vinte e três, o Estado-Maior-General das Forças Armadas considerou que existiam motivos de “urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis” para adquirir materiais de protecção para a “mitigação” da covid-19. E vai daí e gastou cerca de 174 mil euros em materiais que não se sabe o que é, nem a quantidade nem o preço unitário. Só se sabe que foi com dinheiro público. Nos últimos seis meses não se encontra compra similar, nem em valor irrelevante, feita por outra entidade pública.
No início de Maio deste ano, a Organização Mundial da Saúde deixou de considerar a covid-19 como emergência global de Saúde Pública. Em Portugal, o Governo revogou todas as normas mais relevantes associadas à pandemia em Setembro do ano passado, e a própria Assembleia da República, há cinco meses, também ‘limpou’ a eficácia de 50 leis aprovadas em plenário. A normalidade regressou… mas não para todos.
Por exemplo, para o Estado-Maior-General das Forças Armadas a ‘guerra’ contra o vírus continua, em força. Com muita urgência de meios. E com muito secretismo. E com muita despesa, claro. Fazendo lembrar outros tempos, a cúpula militar do país, liderada pelo general José Nunes da Fonseca, achou por bem, e necessário, celebrar no passado dia 16 de Novembro um ajuste directo à empresa Mundo Mercantil para a aquisição de uma ‘bazuca’ de 173.912 euros contra o vírus sob a forma de “material proteção consumo clínico – mitigação covid-19” (sic).
O PÁGINA UM gostaria de saber, em concreto, que material de protecção para mitigar a covid-19 foi efectivamente adquirido, e quais as quantidades e preços unitários, mas nada disso consta no Portal Base, por uma simples razão: a urgência dos ‘misteriosos’ materiais foi tão imensa que não houve tempo para lançar concurso público, e nem sequer para escrever um contrato. Com efeito, o Estado-Maior-General das Forças Armadas alegou “urgência imperiosa” para não disponibilizar qualquer informação em cláusulas contratuais ou em caderno de encargos sobre os materiais e quantidades adquiridas, as e os respectivos preços unitários.
No Portal Base, refere-se que a não redução a escrito do contrato se justifica “por motivo de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis” por parte do Estado-Maior-General das Forças Armadas, pelo que se mostrou “necessário dar imediata execução ao contrato”. O prazo de execução foi de cinco dias, pelo que os materiais já terão assim sido entregues.
Saliente que este contrato surge como um anacronismo, porque há muito que se observam compras de materiais de protecção contra a covid-19, entre as quais máscaras, viseiras, luvas, batas e álcool-gel. Uma consulta ao Portal Base mostra que nos últimos seis meses não se encontram outras compras similares (materiais de protecção) relacionadas especificamente com a covid-19. Além de contratos respeitantes ao projecto educacional Skills 4 pós-covid, desde Junho destacam-se apenas algumas compras associadas a testes de presença do SARS-CoV-2 em hospitais, além de instalação e desinstalação de módulos hospitalares na Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo.
O ajuste directo feito à Mundo Mercantil – uma empresa de importação e exportação de produtos médicos – é o maior que esta empresa conseguiu com entidades públicas. Mesmo durante a covid-19 não fez, comparando com outras empresas que nem eram do sector, muitos negócios com entidades públicas. Contudo, curiosamente os seus clientes públicos – com quem já celebrou 29 contratos no valor total de cerca de 597 mil euros – são quase apenas instituições militares e a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais.
O PÁGINA UM tentou obter esclarecimentos do Estado-Maior-General das Forças Armadas sobre este contrato de quase 173 mil euros, mas o gabinete do general Nunes da Fonseca reagiu esta manhã dizendo apenas que ”o assunto foi encaminhado para os órgãos competentes a fim de ser analisado”.