Recensão: A Mesa de Deus - Os Alimentos da Bíblia

Ler a Bíblia de faca e garfo

por Paulo Moreiras // Dezembro 7, 2023


Categoria: Cultura

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Título

A Mesa de Deus - Os Alimentos da Bíblia

Autora

MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI

Editora (Edição)

Quetzal (Novembro de 2023)

Cotação

16/20

Recensão

Como todos talvez saibam, a Bíblia continua a ser não só um dos livros mais lidos e traduzidos no mundo, como também um dos mais estudados, interpretados e analisados, servindo o seu conteúdo a um surpreendente manancial de abordagens diferentes. Nos últimos tempos, uma dessas abordagens diz respeito aos alimentos mencionados na Bíblia, bem como aos utensílios, as práticas à mesa, aos animais, plantas, entre muitas outras referências de igual curiosidade e importância.

Depois de, em 2011, o Chef Luís Lavrador ter dado à estampa Ao sabor da Bíblia (edição Casino Figueira, que registou outra publicação em 2017 na editora Alêtheia), eis que surge uma nova dissertação em língua portuguesa acerca da temática da alimentação na Bíblia, desta feita pela mão de Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti (n. 1950), jornalista e investigadora de gastronomia, que nasce após uma conversa entre a autora com o então padre Tolentino Mendonça, que assina o texto de abertura do livro.

“Entrar na Bíblia pela porta da cozinha é um argumento mais sério do que se possa supor. E também mais espiritual”, assinala Tolentino Mendonça, uma vez que o livro oferece “estratos complementares de conhecimento: constitui uma espécie de micro-história da Bíblia”. De acordo com o agora Cardeal, a autora precisou de mais de uma década para concretizar este projecto, que, nas suas palavras, “não é apenas um ensaio exaustivo sobre a mesa bíblica: é um convite a entrar, um abrir da mesa, uma coreografia de odores, uma prática do saborear”.

Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti leu e releu a Bíblia tendo o cuidado de anotar todas as referências ao tema: “E em cada passagem revela hábitos do povo de Deus, incluindo os alimentares: os sabores estão por toda a parte, do fruto proibido à Última Ceia, do maná no deserto do Sinai aos pães de cevada da Galileia, dos peixes secos do lago de Tiberíades (...) ao vinho que jorrava das talhas de uma casa em Caná”.

Ficamos assim a saber que “a cozinha da Bíblia era feita com uma grande quantidade de ervas, especiarias, cereais e leguminosas, trazidos em caravanas da Índia e da Península Arábica, que eram usados na preparação dos pratos e no fabrico de pão e cerveja”, que “os hebreus utilizavam azeite de oliveira; da uva, faziam vinho e vinagre; com o leite de cabra, ovelha e vaca, preparavam queijos frescos ou secos” e “adoçavam os produtos com mel de abelha”. De todos os alimentos, “o mais importante foi sempre o pão”.

Este livro revela um trabalho minucioso, de filigrana, na recolha de citações referentes à alimentação, todas elas com indicação do respectivo versículo, “desde os livros mais antigos (Pentateuco), até aos posteriores (Novo Testamento), do primeiro (Génesis) até ao último (Apocalipse)”, com notas acerca do contexto histórico, social ou religioso, igualmente cheio de menções a outras obras literárias como a Ilíada, a Odisseia, O Épico de Gilgamesh.

O livro, naturalmente, está recheado de referências, numa abordagem muito interessante, completa e abrangente, onde se vislumbram as influências históricas da actual Dieta Mediterrânica. Mas também se mencionam os animais domesticados para a alimentação ou para outras finalidades, como o gado bovino, que, além da carne, também fornecia leite, queijo e couro, sendo a sua carne especialmente utilizada em ocasiões especiais. O gado caprino, desde o cabrito ao cordeiro, da cabra à ovelha, era o tipo de carne mais presente nas mesas da época.

Acerca de aves, a Bíblia é profusa na referência de muitas espécies, embora para a alimentação algumas fossem consideradas impuras. Já aquelas permitidas “eram quase sempre assadas; mas também podiam ser salgadas e secas ao sol, ou cozidas e conservadas em gordura dentro de grandes recipientes”.

Não sendo possível aqui referir todas as suas singularidades, apenas deixo umas breves notas assaz curiosas e inusitadas que a leitura deste livro proporcionou. Por exemplo, os alimentos estranhos que se encontram mencionados na Bíblia, como os insectos que então se comiam, como gafanhotos ou grilos, sendo João Baptista um dos mais gulosos, pois “preferia comê-los com mel” silvestre. Os excrementos de pessoas ou de animais, em determinadas situações, “também serviram de alimento”. Mas havia também quem se alimentasse de cinza, “do próprio vómito” ou o mais extremo, praticasse o canibalismo.

Um livro que seguramente não deixará ninguém indiferente, seja qual for a orientação religiosa do leitor, pois uma coisa é certa: todos precisamos de comer e o mais importante é saber aquilo que comemos e como comemos.

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