É lamentável o estado a que chegou a imprensa em Portugal. Jornais centenários correm um risco real de desaparecer, com títulos emblemáticos, como o Jornal de Notícias, a sofrer mais um golpe brutal com o despedimento anunciado de 200 funcionários.
Supostas peças do “quarto poder”, os principais órgãos de comunicação social do país são cada vez menos poderosos. Mas a situação crítica ainda tem margem para piorar e não se vislumbra qualquer sinal que prenuncie uma inversão da actual tendência de queda de vendas e de circulação.
Nada disto é assim tão surpreendente. Quando olhamos para os jornais, o que vemos? Salvo poucas (e honrosas) excepções, aquilo que o vulgo chama palha e mais palha. “Notícias” que apenas fazem eco da propaganda política, meras transcrições de discursos que, na melhor das hipóteses, são vazios e irrelevantes, quando não puramente desonestos. Por vezes, “notícias” com tons de press release de agências de comunicação. Sobre a crise política, jornais de referência titulam agora, por exemplo, que “Costa está “magoado” e questiona se hoje procuradora e Presidente “fariam o mesmo””. O primeiro-ministro coloca-se agora habilmente no papel de vítima, acolhida pela imprensa, quando na verdade apenas aproveitou o famigerado “parágrafo” para se demitir e abandonar o barco depois de o ter levado ao fundo. E a imprensa mainstream, em vez de chamar António Costa à pedra pelo lastro de destruição deixado, vê “valor-notícia” nos seus alegados sentimentos e colabora nestas tácticas de manipulação. Valerá a pena pagar por este material jornalístico?
Já a entrevista de Costa à CNN, na segunda-feira, dispensa grandes comentários. Quando uma das questões colocadas ao principal responsável pelo estado do país é “sabe quem faz anos amanhã?” (referindo-se a Marcelo Rebelo de Sousa), sabemos que o circo está montado e os palhaços somos nós. Bem que podiam ter trocado o excelso jornalista Nuno Santos pelo apresentador do ‘Alta Definição’, Daniel Oliveira, já que a tónica da conversa se coadunou muito mais com este último programa do que com uma entrevista séria e incisiva ao primeiro-ministro cessante.
Com mais de quatro milhões de portugueses que seriam pobres sem apoios sociais, a imprensa embarca no jogo do “fáctico poder” e põe-nos a discutir minudências, enquanto somos levados para o abismo, qual Orquestra do Titanic. O debate público resume-se ao superficial e acessório, como as sondagens e o “carisma” dos líderes ou a sua falta, em vez de se centrar nas políticas de cada partido, nas suas propostas e visões para o país.
Nesta perspectiva, se a classe jornalística atravessa um momento difícil, parece-me evidente que os seus profissionais também fizeram a cama na qual agora se deitam – algo que ficou, aliás, bem patente na semana passada. Descendo mais um degrau na sua credibilidade, vários jornalistas consideraram de interesse público os ‘desabafos’ de Facebook do director de Neuropediatria do Hospital de Santa Maria, António Levy Gomes. O médico que, recorde-se, veio a público no âmbito da investigação da TVI sobre a alegada cunha presidencial no tratamento milionário das gémeas luso-brasileiras, e assegurou que a situação não tinha sido “normal”.
No entanto, talvez procurando descredibilizar o seu testemunho, vários jornalistas – um triste ramalhete onde se inclui a directora da Visão, Mafalda Anjos, Rita Marrafa de Carvalho ou Fernando Esteves (que já não escrevia no “insuspeito” Polígrafo desde Janeiro passado, onde supostamente é de novo director) – divulgaram publicações feitas pelo neuropediatra na sua página pessoal, onde o médico lançava críticas inflamadas (mas legítimas numa sociedade democrática) ao Presidente da República, a António Costa e o director-executivo do Serviço Nacional de Saúde, Fernando Araújo.
É consternador ver outros jornalistas, numa espécie de tentativa de assassinato de carácter, a difundir as opiniões políticas de um médico que denunciou uma situação irregular e grave que envolve o Supremo Magistrado da Nação. Mas é este o calibre dos profissionais que hoje fazem a ‘nata’ da classe.
Domesticados e acomodados, pouco mais fazem do que reproduzir comunicados e narrativas oficiais sem qualquer contraditório, desde a covid-19 até às alterações climáticas e pregações woke, e ainda fazem tábula rasa do direito à liberdade de expressão, tentando desacreditar um delator que – escândalo dos escândalos – não simpatiza com o actual Governo e atreve-se a criticá-lo de uma forma menos “polida”, sem medir palavras.
Enfim, diria que a catástrofe que se tem abatido sobre a imprensa mainstream é indissociável da crise de regime em que nos encontramos. É, em simultâneo, causa e sintoma da falência das instituições. E é esta convergência de factores que torna urgente uma reflexão profunda e, em última análise, uma mudança estrutural no modo como se faz jornalismo.
Mesmo neste cenário negro, mantenho a esperança de que o jornalismo português consiga renascer das cinzas, pela mão de uns poucos que ainda são dignos de serem chamados “jornalistas”.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
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