Corria o dia 16 de Dezembro, e passava poucos minutos do meio-dia, surgiu a indicação de um buraco junto a um passeio da Rua da Prata, na Baixa de Lisboa. Depois viu-se que afinal era mais grave; que o colector de águas pluviais, antigo desde a época do Marquês de Pombal, estava em colapso entre a Rua Vitória e a Rua de São Nicolau. Fechou-se a via e começaram as obras, que se ‘eternizaram’ por um ano, sem muito mais se saber do que um anúncio recente de restringir o tráfego rodoviário depois da reparação do colector.
Porém, o mais surpreendente é que os dias foram passando, e somente no mês de Setembro a autarquia liderada por Carlos Moedas decidiu, quando as obras já iam avançadas, começar a pensar na elaboração do contrato com a Tecnovia, a empresa rapidamente escolhida para uma intervenção imediata, enviando-lhe então o convite para que se formalizasse a empreitada. Setembro passou. Outubro também. Novembro idem. E só já depois das obras concluídas, depois da reabertura da Rua da Prata concretizada, e anunciada em definitivo a ‘pedonalização’ das vias, a autarquia de Lisboa e a Tecnovia acharam por bem assinar o contratos da obra feita. E dando-lhe efeitos reatroactivos.
De facto, e contrariando o espírito e mesmo a legalidade do Código dos Contratos Públicos, somente anteontem, dia 11, a autarquia de Lisboa e a Tecnovia assinaram o contrato de uma obra que já fora executada e que apenas agora se sabe o valor final: 1.502.126,11 euros. Ora, o contrato estipula que “o prazo de execução da presente empreitada é de 355 (trezentos e cinquenta e cinco) dias, contados à data da consignação da obra em 19 de Dezembro de 2022”, ou seja, a execução do contrato ocorreu no dia anterior à sua assinatura. E salienta também que um milhão de euros será pago ainda este ano e a parte remanescente, cerca de meio milhão de euros, ficará para o próximo ano.
Para justificar a assinatura de um contrato depois das obras finalizadas, numa das cláusulas alegou-se a “eficácia retroativa” – ou seja, a aplicação de algo já executado antes – invocando uma norma de excepção do Código dos Contratos Públicos, que prevê que “as partes podem atribuir eficácia retroactiva ao contrato quando exigências imperiosas de direito público o justifiquem, desde que a produção antecipada de efeitos não seja proibida por lei, não lese direitos e interesses legalmente protegidos de terceiros e não impeça, restrinja ou falseie a concorrência garantida pelo disposto no presente Código relativamente à formação do contrato”.
A forma irregular, e de legalidade muito duvidosa, em que decorreram as obras adjudicadas pela autarquia fica patente no facto de a própria placa com a identificação da empreitada nunca ter tido a identificação do prazo de execução nem do valor da empreitada. Ou seja, se as obras da Rua da Prata se tivessem transformado numas novas obras de Santa Engrácia, a Tecnovia poderia ‘sair de mansinho’ sem quaisquer responsabilidades legais.
Ou seja, podendo ser invocada a urgência, a inexistência de contrato ao longo de toda a duração da obra – sem que estivessem sequer salvaguardadas eventuais indemnizações e responsabilidades entre as partes, até em relação a terceiros – mostra-se de legalidade muito duvidosa, que será agora dirimida pelo Tribunal de Contas que ainda vai ter de dar o visto.
Mesmo não desejando abordar em concreto a empreitada da Rua da Prata, Paulo Morais, professor universitário e ex-vice-presidente da Câmara Municipal do Porto, salienta que, por regra, o ajuste directo para solucionar intervenções desta natureza são justificáveis, mas apenas para o início das obras, “para uma estabilização do problema”, não devendo resultar numa ‘luz verde’ para adjudicações de toda a obra, que deveria merecer um concurso público.
“Não parece aceitável que um contrato seja assinado depois da obra concluída”, defende Paulo Morais, acrescentando ser “expectável que, perante uma obra urgente, o contrato possa demorar algumas semanas até ser assinado, até para salvaguarda das partes, mas já foge do espírito do Código se aparece depois das obras concluídas”.
Uma outra questão relevante, com incidência legal, sobre este ajuste directo prende-se com a escolha da Tecnovia pela autarquia de Carlos Moedas, que terá sido escolhida antes mesmo de se ter uma ideia precisa sobre a dimensão da obra. De acordo com o Código dos Contratos Públicos “não podem ser convidadas a apresentar propostas, entidades às quais a entidade adjudicante [neste caso, o município de Lisboa] já tenha adjudicado, no ano económico em curso e nos dois anos económicos anteriores (…) propostas para a celebração de contratos cujo preço contratual acumulado seja igual ou superior” a 30.000 euros, no caso de empreitadas de obras públicas.
Ora, ao longo deste ano, a Câmara Municipal de Lisboa fez mais oito ajustes directos com a Tecnovia para pequenas intervenções que totalizaram 88.559 euros (sem IVA), das quais se destaca a estabilização urgente de terrenos na Rua da Cruz a Alcântara, junto à Avenida de Ceuta, contratualizada em Setembro passado por 54.210 euros.
Mas no final do ano passado, o município de Carlos Moedas já adjudicara por ajuste directo outro ajuste directo por alegada “urgência imperiosa” para a reabilitação do Viaduto da Avenida Mouzinho de Albuquerque sobre a linha do Norte por um preço de 232.257 euros.
Além destes contratos de ‘mão-beijada’ – em que se mantém sempre o mistério sobre quem ‘pega no telefone’ para entregar empreitadas a determinada empresa a serem pagas pelo erário público – a Tecnovia também obteve mais dois contratos mas por concurso público: um em Agosto passado para a “execução de obras prioritárias e urgentes de conservação e manutenção de obras de arte, no valor de 650.000 euros, e outro em Fevereiro do ano passado para diversas obras, também prioritárias e urgentes”, de conservação e manutenção de muros e vedações. Mas aí a Tecnovia teve de ‘fazer pela vida’, candidatar-se contra a concorrência, e fazer por merecer a adjudicação e os dinheiros públicos por justa retribuição de serviços prestados.
O contrato entre o município de Lisboa e a Tecnovia integra o Boletim P1 da Contratação Pública e Ajustes Directos que agrega os contratos divulgados no dia 6 de Dezembro. Desde Setembro, o PÁGINA UM apresenta uma análise diária aos contratos publicados no dia anterior (independentemente da data da assinatura) no Portal Base. De segunda a sexta-feira, o PÁGINA UM faz uma leitura do Portal Base para revelar os principais contratos públicos, destacando sobretudo aqueles que foram assumidos por ajuste directo.
PAV
Nota: Fotos das obras, da autoria de Frederico Duarte Carvalho.
Ontem, dia 12 de Dezembro, no Portal Base foram divulgados 884 contratos públicos, com preços entre os 19,95 euros – para aquisição de medicamentos, pelo Centro Hospitalar Tondela-Viseu, ao abrigo de acordo-quadro – e os 34.128.000,00 euros – para fornecimento de energia eléctrica, pelo Município de Lisboa, também ao abrigo de acordo-quadro.
Com preço contratual acima de 500.000 euros, foram publicados 12 contratos, dos quais oito por concurso público, três ao abrigo de acordo-quadro e um por ajuste directo.
Por ajuste directo, com preço contratual superior a 100.000 euros, foram publicados 17 contratos, pelas seguintes entidades adjudicantes: Município de Lisboa (com a Tecnovia – Sociedade de Empreitadas, no valor de 1.417.100,11 euros); seis do Hospital de Braga (um com a Siemens Healthcare, no valor de 462.600,00 euros, dois com a Johnson & Johnson, um no valor de 462.563,53 euros e outro no valor de 271.073,62 euros, outro com a Smith & Nephew, no valor de 329.501,28 euros, outro com a Medicinália Cormedica, no valor de 247.376,00 euros, e outro com a Boston Scientific Portugal, no valor de 112.644,00 euros); Centro Hospitalar Tondela-Viseu (com a Takeda – Farmacêuticos Portugal, no valor de 309.031,20 euros); Ministério da Defesa Nacional – Marinha (com a Leonardo MW LTD, no valor de 217.232,97 euros); dois da Rádio e Televisão de Portugal (um com a Avantools, no valor de 182.669,00 euros, e outro com a Vantec, no valor de 143.923,00 euros); Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia – Espinho (com a Luso Palex, no valor de 131.725,00 euros); Instituto de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (com a Multicert – Serviços de Certificação Electrónica, no valor de 130.000,00 euros); Hospital Garcia de Orta (com a Pharmakern Portugal, no valor de 127.500,00 euros); Infraestruturas de Portugal (com a SMA und Partner AG, no valor de 125.000,00 euros); Estado-Maior-General das Forças Armadas (com a Alpha C2, no valor de 117.204,05 euros); e o Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira (com a Sanofi, no valor de 103.998,48 euros).
TOP 5 dos contratos públicos divulgados no dia 12 de Dezembro
1 – Fornecimento de energia eléctrica a instalações e escolas municipais
Adjudicante: Município de Lisboa
Adjudicatário: Iberdrola Clientes
Preço contratual: 34.128.000,00 euros
Tipo de procedimento: Ao abrigo de acordo-quadro (artº 259º)
2 – Empreitada de beneficiação de troço em Castro Daire
Adjudicante: Infraestruturas de Portugal
Adjudicatário: Construções Carlos Pinho, Lda.
Preço contratual: 6.184.531,43 euros
Tipo de procedimento: Concurso público
3 – Empreitada designada “Unidade de Saúde Familiar do Parque das Nações”
Adjudicante: Município de Lisboa
Adjudicatário: Construções Corte Recto – Engenharia & Construção
Preço contratual: 5.983.365,97 euros
Tipo de procedimento: Concurso público
4 – Aquisição de serviços de viagens aéreas, alojamentos e serviços conexos, para um período de 36 meses
Adjudicante: Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal
Adjudicatário: Transalpino – Viagens e Turismo
Preço contratual. 4.353.587,00 euros
Tipo de procedimento: Concurso público
5 – Reabilitação de bairro municipal em Sacavém – PRR
Adjudicante: Município de Loures
Adjudicatário: Wikibuild, S.A.
Preço contratual: 3.498.659,56 euros
Tipo de procedimento: Concurso público
TOP 5 dos contratos públicos por ajuste directo divulgados no dia 12 de Dezembro
1 – Empreitada de execução de trabalhos urgentes no colector da Rua da Prata
Adjudicante: Município de Lisboa
Adjudicatário: Tecnovia – Sociedade de Empreitadas
Preço contratual: 1.417.100,11 euros
2 – Upgrade da Ressonância Magnética
Adjudicante: Hospital de Braga
Adjudicatário: Siemens Healthcare
Preço contratual: 462.600,00 euros
3 – Aquisição de material de ortopedia
Adjudicante: Hospital de Braga
Adjudicatário: Johnson & Johnson
Preço contratual: 462.563,53 euros
4 – Aquisição de material de consumo clínico diverso
Adjudicante: Hospital de Braga
Adjudicatário: Smith & Nephew
Preço contratual: 329.501,28 euros
Adjudicante: Centro Hospitalar Tondela-Viseu
Adjudicatário: Takeda – Farmacêuticos Portugal
Preço contratual: 309.031,20 euros
MAP