Recensão: Mentiras de mulher

Estórias de vida

por Maria Carneiro // Dezembro 18, 2023


Categoria: Cultura

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Título

Mentiras de mulher

Autora

LUDMILA ULITSKAYA (tradução: Nina Guerra e Filipe Guerra)

Editora (Edição)

Cavalo de Ferro (Outubro de 2023)

Cotação

15/20

Recensão

Mentiras de Mulher é um romance muito original porque não tem uma narrativa contínua em que as personagens se mantêm do princípio ao fim. É mais um "patchwork" narrativo, constituído por uma manta de retalhos de seis momentos particulares da vida da personagem principal, Génia, única personagem recorrente.

No primeiro retalho, que dá o mote ao livro, conhecemo-la: uma intelectual soviética, com um casamento fracassado que, na companhia do filho, uma criança de três anos, está de férias numa estância balnear na Crimeia. O ambiente é pacato e rotineiro, até que chega Irene, uma ruiva exuberante, faladora e divertida que é hóspede habitual na casa e conta a Génia, que é russo-inglesa, viúva, filha de um espião comunista da Irlanda britânica e faz adivinhar que teve uma vida cheia de peripécias mirabolantes.

As duas mulheres encontram-se todas as noites ao serão, bebericando vinho do Porto (feito na Crimeia – os tradutores optaram por designá-lo por Portwein), e Irene vai contando as desgraças pelas quais passou: quatro filhos e um marido todos mortos em circunstâncias diversas, carregadas de pormenores dramáticos, levando Génia às lágrimas e a nós leitores a compadecer-nos com o seu destino fatal. Com a chegada de outros hóspedes, Génia descobre que tudo o que ouviu de Irene era mentira e, desiludida, sem confrontar a mentirosa, parte para outro destino. Esta primeira história é um choque para nós também. Apanha-nos de surpresa, porque o relato é verosímil e cheio de pormenores perfeitamente plausíveis, apesar de muito dramáticos.

Génia encontrará depois outras mulheres que com ela partilham histórias e episódios, uns mais caricatos que outros, mas que revelam a fascinante vida interior de mulheres e que a autora, num estilo ao mesmo tempo mordaz e terno, vai contando. São relatos de intimidade, histórias de lutos, adultérios, ligações escandalosas e ilusões perdidas, algumas artificiosas e rebuscadas, outras inofensivas e quase infantis.

As histórias desenvolvem-se: a de Nádia, de 10 anos de idade, que inventa um irmão mais velho e mente de maneira muito divertida e invulgar; a mitomania de uma rapariga de 13 anos que diz ter um caso amoroso com um homem de 40, casado, pintor famoso e familiar de Génia, o que se revela ser uma fantasia dela embora o desenlace permita saber que há de facto, um adultério, mas com outros protagonistas.

A história de uma jovem futura engenheira que descobre a poesia com uma velha professora de literatura, e que, após a morte desta, descobre que toda a poesia que lhe lera, como se fosse sua, era afinal de grandes poetas russos do início do século XX.

Há também a aventura suíça de Génia que, tendo sido contratada para escrever um guião de um documentário, tem de entrevistar várias prostitutas russas que lhe contam todas a mesma história: são todas filhas de um comandante da Marinha, morto num acidente, violadas pelo padrasto e obrigadas a sair de casa e a fazerem-se à vida.

É uma pena que com o decorrer da narrativa já não sejamos apanhados de surpresa e fiquemos, logo à partida, vigilantes à espera da próxima mentira, porque Ulítskaia construiu um naipe de histórias ternas e enternecedoras que relevam muito do sentido trágico da condição humana.

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