RUI ARAÚJO: CADERNO DOS MUNDOS

Repórter em guerra

por Rui Araújo // Dezembro 21, 2023


Categoria: Exame

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Nota aos leitores

É uma honra ter os meus textos publicados no PÁGINA UM, um jornal livre e independente (depende exclusivamente das doações dos seus leitores!), que sai fora da casca e tenta dar notícias e promover a verdade dos factos e, do mesmo modo, uma cultura de cidadania (considera a Informação um serviço e não uma mera mercadoria) ao invés do que defende a quase totalidade da “comunicação social” pacóvia cá da praça com a cumplicidade dos poderes que nos desgovernam.

O PÁGINA UM é, portanto, um projecto ambicioso, fascinante e particularmente importante nos tempos que correm porquanto a Informação (livre, crítica, acessível e responsável) está a ser ameaçada pelos mercadores de vento ou de coisa alguma dos grandes grupos económicos, religiosos, políticos (incluindo wokistas, ecologistas radicais, etc.) cujos “produtos” tendem a monopolizar a produção e a difusão de notícias e a ocupar o espaço público.

As redes sociais são outra praga com a qual estamos, hoje, confrontados: contribuem para o fim do Jornalismo já que nos impedem de dissociar o real do artefacto ou daquilo que é falso ou simples propaganda.

A Inteligência Artificial já produz, por outro lado, artigos (textos, imagens e sons) cuja veracidade dos “factos” é impossível verificar. O mesmo sucede com os rumores que se propagam e proliferam rapidamente e de maneira incontrolável, com ou sem fake news — como escreve Jacques Attali na sua recente obra (não publicada cá) “Histoires des Médias: Des signaux de fumée aux réseaux sociaux, et après”.

O meu velho amigo Alfonso Armada, escritor, poeta e grande repórter (El País, ABC, Frontera D, etc.), vai ainda mais longe: “no espectáculo das notícias a mercadoria somos nós.”

No fim de contas, aquilo que está, aqui, essencialmente em causa é a preservação da própria Democracia. E sem Jornalismo digno desse nome não há Democracia que valha!

Seria desnecessário eu mencionar as outras razões que me animam, mas não resisto…

O grande repórter e escritor Ryszard Kapuściński considerava (?) que “os cínicos não servem para esta profissão” (“Los cínicos no sirven para este oficio – Sobre el buen periodismo”, livro também não publicado em Portugal).

Para o mestre polaco do “jornalismo literário” (autor, aliás, de um livro sobre o período que antecede a independência de Angola, em 1975, publicado em Portugal pela Tinta da China) “o verdadeiro jornalismo é intencional, a saber: aquele que se fixa um objectivo e que tenta provocar algum tipo de mudança. Não há outro jornalismo possível. Falo, obviamente, do bom jornalismo.”

Parece-me que o jornal PÁGINA UM procura isso mesmo: a mudança, questionando por isso os abusos de poder, a corrupção generalizada (que só gera mais miséria e pobreza!), a impunidade que a caracteriza desde sempre, mais a promiscuidade e o conluio entre os grupos de comunicação social (“comunicação” quê?), os governos e as grandes empresas, etc.

E o seu fundador e director Pedro Almeida Vieira é um homem honesto e corajoso.

É quanto me basta para ceder ao PÁGINA UM alguns artigos sobre as andanças por esses mundos fora.

Histórias de gente, sempre e ainda de gente. Histórias de guerras esquecidas ou nem por isso, os combates e a coragem silenciosa dos outros. Dos anónimos. Ou tão somente da vida que corre, aqui, mesmo ao nosso lado ou nos confins do mundo. Estórias de sofrimento, de alegria e da morte, que acaba irremediavelmente por dar sentido à nossa existência.

Aquilo que proponho são algumas reportagens que efectuei durante os últimos 40 e muitos anos em Portugal e nos quatro cantos do Mundo (como Timor, EUA, Zaire, Bósnia, Ruanda, Colômbia, Líbia, Síria, República Centro-Africana, Espanha, …). E a Sul de parte alguma, num dos derradeiros espaços de liberdade do planeta: o mar.

O resto é conversa, que não diz respeito a mais ninguém…

Rui Araújo


No dia do segundo aniversário do PÁGINA UM, começamos a publicar os ‘Cadernos dos Mundos’, uma selecção de dezenas de reportagens, de grandes reportagens (grandes) do jornalista Rui Araújo. Não há palavras para quantificar a honra que recebemos pela permissão do Rui Araújo em ‘ceder’ os seus trabalhos de grande e corajoso jornalismo que realizou ao longo da sua vida profissional na RTP, na Grande Reportagem, na TVI e em muitos órgãos de comunicação social internacional. Rui Araújo é uma referência de ousadia, de irreverência, de rigor (em todos os aspectos) e de verticalidade. É também um leitor atento e crítico do jornalismo, por isso fez um trabalho incómodo como Provedor do Leitor no Público. Mais do que a publicação dos seus textos, as suas palavras introdutórias aos ‘Cadernos dos Mundos’ constituem um incentivo e uma confirmação do bom caminho do PÁGINA UM. Mesmo que tenhamos um Almirante a gastar dinheiro dos contribuintes para me processar por ter escrito verdades incómodas.

Pedro Almeida Vieira


Ilha de Kos, Grécia, um dia destes. No quarto bafiento do hotel em ruínas, Marsal, acocorada junto da porta, abana mansamente a cabeça e fita-me. Tem olhos negros, buliçosos, quiçá enigmáticos, e ao mesmo tempo selvagens.

— Estamos a gravar… — profere Rui Pereira, o meu companheiro.

Um silêncio ponderoso apodera-se do cubículo. Faço sinal à moça para começar a contar.

— Eles mataram a minha avó e o meu avô. E queriam matar-nos. Aí, decidimos vir para a Europa para termos uma vida boa e segurança.

— E agora? — questiono.

Marsal (Foto: Rui Pereira)

A rapariga de dezoito anos sorri-me. Um sorriso bonacheirão, salpicado de afoiteza. E esfrega as mãos.

— Como é que imagina a sua vida, amanhã?

— Quero estudar Medicina. Quero ser médica para poder ajudar os outros, aqueles que sofrem e não têm nada. Médica…

Apetece-me dizer “Inch’Allah”, mas quedo-me calado. Uma sineta rachada soa ao longe. Lá fora, a terra arde. Marsal Ziaee agarra-se ao seu sonho com o desespero da esperança, e dá-lhe corpo. Há doze dias, ela, o pai, a mãe e seis irmãos apanharam uma lancha em Bodrum para chegar aqui. Pagaram oito mil dólares ao passador da máfia turca por meia dúzia de milhas e outras tantas horas de navegação. Cabul pertence irremediavelmente ao passado e o tempo para esta gente do “cemitério dos impérios” ganha outra dimensão.

Hoje, a família vegeta no Captain Elias, um hotel abandonado (longe do centro de Kos e dos olhares dos turistas), sem electricidade, sem água potável, sem portas e janelas, sem apoios. Só os Médicos Sem Fronteiras e os voluntários gregos de Kos Solidarity se dignam aparecer, uns para tratarem do corpo e da alma, os outros para darem sandes, única refeição a que têm direito por dia. Como eles há, aqui, mais quatro ou cinco centenas de refugiados, afegãos, iraquianos, somálios, eritreus, náufragos de uma tragédia humana que nos ultrapassa. Todos esperam o salvo-conduto que lhes permitirá entrar na Alemanha.

Entrada LIBIA livre (Foto: Rui Araújo)

As lágrimas e as imprecações de pouco ou nada valem agora. A Europa da solidariedade é um mito. A islamofobia alastra pelo continente há mais de duas décadas. A política externa europeia para o mundo árabe foi indexada à de Washington em nome do pragmatismo, da conivência e da exportação da democracia (como se de uma mera mercadoria se tratasse) ou mais prosaicamente de interesses inconfessados. Puseram a ferro e fogo o Próximo e o Médio Oriente: Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria. E aquilo que está a suceder, hoje, é, em parte, a consequência directa do seguidismo face ao “polícia do mundo” e da falência dos princípios éticos, se alguma vez os houve.

As imagens e os relatos dos refugiados (ou dos migrantes, porque a semântica é incómoda) atordoaram e atordoam muitas consciências. Nem a mim, que pensava estar vacinado – passei pelos conflitos de Timor, durante a ocupação indonésia, do Zaire (actual República Democrática do Congo), de Moçambique, da Bósnia, do Ruanda e da Líbia – me deixaram indiferente. O sofrimento não pode ser reduzido a palavras.

Esfaqueados e esquartejados

Foi ontem. Só dei por ele tarde e a más horas. A camisa branca, vermelha de sangue, destoava naquele cenário. Estaquei o jipe. O miúdo negro sentado na terra ocre do caminho, encostado a uma parede sem cor, pregou os olhos nos meus.

— Ajude-me! — implorou em francês, enquanto “abria os braços no grande gesto das coisas que brilham e se apagam”, como diria Miguel Torga.

Libia check point (Foto: Rui Araújo)

Espreitei pelo retrovisor quantos carros parados havia. Cinco. A imobilidade naquela posição significava a morte. A vulnerabilidade da coluna era total. Para eu salvar um, podiam perder a vida os quinze ou vinte que iam atrás de mim. Encolhi os ombros, resignado, e arranquei com presteza. Condenei o rapaz. E, do mesmo modo, condenei-me a mim próprio. Aqueles malditos segundos perseguem-me há mais de duas décadas. Para mal dos meus pecados…

É ontem. 12 de Abril de 1994. Kigali. Ruanda.

Era noite cerrada quando o C-130 das tropas especiais belgas que me deram boleia aterrou no aeroporto Grégoire Kayibanda.

— Está toda a gente a fugir deste inferno. O que vêm para cá fazer?

Meditei na pergunta e expliquei-lhe, com algum menosprezo, que tinha razão, mas não éramos turistas.

— Devem estar loucos! — tornou o sujeito, cada vez mais histérico.

— So-mos jor-na-lis-tas! — respondeu Alfonso Armada, grande repórter do El País, saindo subitamente do seu mutismo.

Tanque na Líbia (Foto: Rui Araújo)

O responsável branco das evacuações, compadecido, desatou a correr, desenfreadamente, pela placa do aeroporto fora, destino a parte alguma.

Era, de facto, o pior momento para se estar ali. Cinco dias antes, dez pára-comandos (integrados no contingente MINUAR da ONU, chefiado pelo general Roméo Dallaire, com a missão de proteger a primeira-ministra moderada Agathe Uwilingiyimana[1]), tinham sido executados por elementos das Forças Armadas Ruandesas (FAR) a pretexto de os belgas terem abatido na véspera o bireactor Mystère Falcon do presidente do Ruanda, Juvénal Habyarimana, durante a aproximação à pista.

Os capacetes azuis belgas foram capturados diante da residência da primeira-ministra. Seguidamente, viram-se conduzidos para o Campo Kigali. Seis foram esfaqueados e esquartejados. Os outros, comandados pelo Tenente Lotin, resistiram algumas horas. Às três da tarde, uma granada rebentou com eles. Ironicamente, foi o centro de decisão da MINUAR situado a escassas centenas de metros, que os desarmou… psicologicamente. A indecisão, a irresponsabilidade do comando poderão explicar o massacre…

Destroços na Líbia (foto: Rui Araújo)

Os sacos de plástico que eu tinha visto ao lado de um C-5 norte-americano, no aeroporto de Nairóbi, eram os dos corpos deles. Quando os foram buscar à morgue encontraram-nos uns em cima dos outros, nús e despojados de tudo.

No dia 7 de Abril, mal o Sol rompeu, dois mil homens das unidades de elite das FAR, apoiados por dois mil elementos das milícias, iniciaram a “limpeza” dos Tutsi e dos Hutu moderados, de acordo com listas previamente elaboradas.

A 21, o Conselho de Segurança das Nações Unidas decidiu reduzir a presença da MINUAR no país. O contingente passou de 2.500 para 250 homens.

Passados nove dias, a ONU debateu a crise ruandesa durante oito horas. A resolução a condenar os massacres omitiu o termo “genocídio”, o que teria implicado uma intervenção.

No epicentro da chacina

As rajadas tracejantes iluminavam a noite. De repente, surgiram diante do edifício principal da aerogare camiões e pick-ups carregados de miúdos. Eram uns 50, sobretudo órfãos. Feridos, incapacitados, perdidos numa guerra que não entendiam…

A violência alastrava à medida dos ódios e do sentimento de impunidade. Era fartar vilanagem: mulheres violadas, mutiladas, bebés atirados ao ar e decepados à catanada, homens enterrados vivos. Únicos crimes confessos: pertencerem à etnia errada ou serem moderados. No espaço de 100 dias 75% da população Tutsi desapareceu do mapa. Feitas as contas, perderam a vida, pelo menos, umas 800.000 pessoas.

Guerrilheiros e soldados no Ruanda. (Imagem: RTP)

Quando o Hércules C-130 com as crianças descolou de Kigali, dei de caras com uma figura anacrónica naquele caos: um tipo, sentado no chão, lia um livro à luz de um cubo para aquecer rações. Confiei-lhe a mochila e o equipamento.

As tropas das FAR ocupavam o aeroporto e parte da capital. Os rebeldes da FPR cercavam-nos. E estavam a ganhar a guerra. O tiroteio prosseguiu, interrompido apenas por gritos ocasionais de crianças feridas. Um militar abeirou-se e meteu conversa comigo.

— É tarde. Porque é que não vai dormir?

Eu não podia.

— Qual é exactamente o ponto da situação, aqui, capitão? — perguntei.

— Complicado. Temos um golpe de Estado para colocar no poder uma facção política radical e acabar com o processo de paz e de transição para a democracia, mas…

Ninguém impedia aquele jogo de massacre. No átrio do aeroporto, o tema das conversas era o mesmo. As operações da ONU para salvar o mais importante — as vidas e os princípios — eram uma autêntica fraude. Qualquer semelhança com a actual postura dúbia da Europa é, obviamente, uma coincidência…

Por volta da meia-noite, um coronel carrancudo convocou-nos para uma reunião.

— Ponto um…

Puxámos imediatamente dos blocos (que era o que havia naquela altura) e gatafunhámos: 12 jornalistas autorizados a integrar a última missão atribuída às tropas especiais belgas ou, por outras palavras, autorizados a reportar a evacuação de um grupo de freiras “perdidas” no interior do país. A partida da coluna estava prevista, impreterivelmente, para o nascer do Sol.

— Ponto dois…

Alfonso Armada, enviado especial do jornal madrileno EL PAÍS. (Foto: RTP)

Pediu-nos a lista dos 12 eleitos. Éramos 23; 23 loucos, dispostos a perder a vida a troco de nada para contar a guerra; 23 viciados em adrenalina e no resto; 23 tipos perdidos naquele inferno à procura de uma verdade, porque ali não dava para mentir.

Decidimos sortear a invejável viagem com palhinhas: quatro lugares para a imprensa escrita, quatro para a rádio e outros tantos para a televisão e para os fotógrafos.

— Simone Reumont, RTBF. Alfonso Armada, El País…

Eu sorri com o embuste. Como o nome do meu companheiro galego saiu na rifa iam ter de abrir jogo.

— Não pode ser! Ele não é belga. Isto é uma operação militar da Bélgica só para jornalistas belgas! — rosnou um jornalista necessariamente belga.

— É uma operação belga! — reforçou o coronel.

Toda a gente — ou quase — concordou. Era de esperar. Encolhi os ombros e provoquei:

— Pensava que aqui só havia jornalistas, mas, pelos vistos, enganei-me. O jornalismo com bandeira é que conta. E como isto é uma farsa, não vale a pena perdermos mais tempo com fingimentos…

— Eu passo-te as minhas imagens, não há problema — disse-me, apaziguadora, Simone Reumont, da RTBF, a televisão pública francófona de Bruxelas.

Puxei do cigarro, calma e profundamente, e reprimi um suspiro. Tinha sido confrontado com cenas idênticas noutros teatros de guerra, mas teimava em continuar a indignar-me. Longe dos grandes “circos mediáticos” e sem tecnologia, só me restava acreditar na sorte e improvisar…

Inseri dois tampões nos ouvidos (por causa do ruído do tiroteio), assentei praça no alcatrão tépido e adormeci. O cameraman despertou-me pouco depois.

— Como é que consegues dormir no meio dos tiros?

— Dormir é preciso. É como navegar… — ironizei.

O grupo dos jornalistas embandeirados abalou às seis. Alfonso Armada arranjou boleia dos militares italianos. A meio da manhã, foi constituída uma coluna que não estava prevista no programa.

Rui Araújo no Ruanda. (Imagem: RTP)

— Qual é a missão?

— É preciso resgatar três gajos no centro de Kigali! — respondeu-me o oficial.

O tipo devia estar a brincar. A cidade estava a ferro e fogo, era o epicentro da chacina. Guerrilheiros e tropas governamentais disputavam troço a troço, rua a rua, prédio a prédio, apartamento a apartamento…

— Não tenho lugar para si. Se arranjar carro, pode acompanhar-nos! Não tem medo da morte? — indagou em tom de desafio.

— Tenho, mas preciso de uma reportagem. Televisão é imagem. Dê-me cinco minutos — retorqui.

Larguei a correr em direcção ao parque, repleto de carros abandonados. Dei com uma carrinha Volkswagen. Pedi a um soldado para rebentar um vidro com a coronha da espingarda automática. À falta de chave, optei pela ligação possível, a directa, mas a carripana deu um solavanco e foi-se abaixo: faltava gasóleo. E o tempo corria. Aproximei-me de um jipe branco novinho em folha. Bingo. Depósito cheio. Pedi ao solícito militar para partir o vidro do pendura para o cameraman poder filmar.

A procissão lá partiu — depois de eu dar boleia a outras seis “sentinelas do desastre” que, como eu, tinham ficado apeadas. Juan Mirales (La Dernière Heure, Bélgica) e Vincent Dudant (freelance) sorriram, irónicos.

No caminho, ziguezagueámos entre troncos, pedregulhos e mortos. Tropas governamentais e rebeldes disputam o troço, restam ainda alguns corpos na estrada de adolescentes abatidos à catanada, corpos despedaçados.

Avistámos o cadáver de uma menina prostrada na picada. Depois, evitámos um homem esquartejado — os cães famintos começam sempre pelas pernas.

No domicílio do diplomata egípcio que procurávamos não vislumbrámos vivalma. A primeira emboscada ocorreu instantes depois: rajadas de AK-47. Eles não estavam longe. A coluna parou. Por um longo, estúpido momento, fiquei petrificado. Abri a porta, atirei-me ao chão e rastejei para o outro lado. Os soldados belgas responderam de imediato ao fogo inimigo. O meu cameraman não estava a filmar.

— Então? Não gravas imagens? — questionei.

— Nunca estive numa guerra!

Era uma desculpa de mau pagador. Ou talvez não. Eu também tinha medo, felizmente, mas tentava controlar as emoções. Deitei a mão ao bolso, saquei de um cigarro, mas não encontrei o meu Zippo de estimação. O isqueiro estava diante da minha porta, do outro lado do jipe. Fui recuperá-lo. Enfiei um Peter nos lábios. Instantes depois, passou uma coluna da UNAMIR com tropas africanas e a saraivada cessou. Ao fim daquele interminável quarto de hora retomámos a marcha forçada.

Mal chegámos ao hotel Méridien, onde se encontravam alguns capacetes azuis, sofremos o segundo ataque da manhã: morteirada com fartura, incluindo no jardim. Decididamente, preferia o som das Kalashnikov ou, em alternativa, o tac-tac-tac das “costureirinhas”. Arrancámos em direcção ao estádio de triste sina: campo de detenção e extermínio – ali como na América Latina…

Como o recinto estava cercado não parámos. Mais adiante sofremos nova emboscada. Os atacantes usavam espingardas automáticas. A estrupada de 7.62 tinha um som especial? Era urgente optar por outro percurso. Metemos por um troço de terra batida. Foi aí que dei de caras com o miúdo ferido.

No aeroporto encontrei Alfonso Armada. Tinha uma reportagem do arco-da-velha.

— Foi fascinante, mas muito triste — confidenciou-me em galego-português.

Alfonso sacou um “scoop” de triste memória. Fora o único repórter a conseguir entrar em Musha. 1.180 aldeões massacrados só porque eram da etnia errada, Tutsi. Decidi entrevistar o pároco Litric Danko, um dos raros sobreviventes.

— Eram seis e meia da manhã quando começaram a matar toda a gente com granadas de mão, espingardas, forquilhas e catanas. No dia seguinte fui à igreja. Havia um grupo de 50 crianças com as mães. Viraram-se para mim e disseram: “Padre, Padre, Padre…” O que é que eu podia fazer? — narrou.

— De onde é?

— Sérvia. Sérvia…

Padre Litric Danko (imagem: RTP)

Outra tragédia que eu conhecia bem. 45 dias de reportagem na Bósnia, Sérvia e Croácia, mais uma guerra igual às demais.

Naquele dia, em Kigali, em vez de ficar-me pelas lamúrias patéticas e a indignação bem pensante, pedi uma arma para matar. Acabei por regressar sem ter dado cabo de ninguém, nem sequer do Diabo dentro de mim. Tento escapar aos pesadelos. Jurei que nunca mais faria reportagens de guerra. Promessa ou intenção inútil. Desde então, estive noutras. Pensava que pior que o Ruanda era impossível, mas cheguei à conclusão — veja-se o que está a acontecer hoje na Europa com os refugiados — que os conflitos são todos iguais. E as vítimas também…

N.D. Esta reportagem foi publicada originalmente na revista mensal espanhola Luzes, em Dezembro de 2015.

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