O Inverno começou nesta sexta-feira, e já se sabe que, mais dia menos dia, haverá, como em todos os outros anos, neve na Serra da Estrela. E é por esse motivo que a Infraestruturas de Portugal tem há anos um centro de limpeza de neve, com mais de uma dezena de equipamentos de desobstrução das vias. Para operar nesta época do ano, tem optado, por regra, em lançar concursos públicos para contratar trabalhadores temporários, por seis meses, mas este ano algo sucedeu e foi feito um ajuste directo de 207 mil euros. Para encontrar uma justificação para este contrato de mão-beijada, a empresa pública invocou uma norma que se torna caricata: assume que a necessidade de limpar a neve no Maciço Central da Serra da Estrela será, este Inverno, uma “urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis”.
Com ou sem aquecimento global, até agora é coisa infalível mesmo se o país continua abrangido pelo clima mediterrânico em grande parte do território: a Infraestruturas de Portugal tem de reforçar esforços de limpezas das vias rodoviárias na serra da Estrela por causa da neve. Quase sempre a partir de Dezembro, excepcionalmente um mês antes, e a desobstrução das estradas de acesso à Torre, a 1991 metros de altitude, e à estância de ski, prolonga-se pelo início da Primavera.
Pelo sim, pelo não, nos últimos anos a Infraestruturas de Portugal tem decidido contratar trabalhadores temporários, em vez de manter um número elevado de funcionários próprios no seu centro de limpeza de neve durante todo os 12 meses do ano. E assim tem sido, a atender pelos registos do Portal Base, desde 2016. Até aqui, enfim, tudo bem, atendendo às opções de gestão que podem considerar mais adequado a opção pelo chamado outsourcing em serviços com variações sazonais.
Mas exactamente pela previsibilidade na necessidade de reforço dos serviços de limpeza da neve na serra da Estrela já causa estranheza que os gestores da Infraestruturas de Portugal tenham decidido este ano contratar a empresa que sempre tem arrecadado a aquisição de serviços em anos anteriores (mas por concurso público), alegando desta vez “motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante”. Ou seja, a própria Infraestruturas de Portugal considerou que este ano a neve naquela região é um acontecimento imprevisível. E assim assinou um contrato por ajuste directo com a Multitrab no valor de mais de 207 mil euros.
De acordo com as peças processuais deste ajuste directo feito pela Infraestruturas de Portugal à Multitrab, o procedimento só foi iniciado no passado dia 17 de Novembro, quando a empresa pública decidiu convidar exclusivamente aquela empresa de trabalho temporário a apresentar uma proposta para fornecimento de 11 trabalhadores durante seis meses. Menos de um mês depois, na passada sexta-feira, 15 de Dezembro, o contrato foi assinado pelas partes.
Poder-se-ia dizer que alguém nas Infraestruturas de Portugal se esquecera, ao contrário dos outros anos, de dar início a um concurso público – que tem maiores burocracias e um processo de decisão mais longo do que um ajuste directo – e que, dessa forma, teve de se encontrar um expediente de última hora. Mas essa possibilidade não colhe, nem pela via legal. Por exemplo, no ano passado, a Infraestruturas de Portugal lançou um concurso público, com o mesmo objectivo e um preço base de 201.500 euros, apenas em 9 de Novembro, concedendo um prazo de apresentação de propostas de oito dias. Isso permitiu a assinatura do contrato em 10 de Janeiro deste ano, ou seja, em termos homólogos em data posterior do ajuste directo da semana passada.
Por outro lado, o Código dos Contratos Públicos limita o recurso ao ajuste directo por “urgência imperiosa”, mesmo que abusivamente muitas entidades públicas se borrifem para esses pormenores perante a generalizada passividade do Tribunal de Contas. Com efeito, o artigo invocado pela Infraestruturas de Portugal salienta expressamente que a escolha do ajuste directo para a formação de qualquer contrato “por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante”, só pode ser feita “na medida do estritamente necessário” e se não for possível cumprir “os prazos inerentes aos demais procedimentos, e desde que as circunstâncias invocadas não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”.
Mostra-se assim caricato que a Infraestruturas de Portugal, com o seu centro de limpeza de neves a funcionar todos os anos, invoque uma norma que a coloca na situação de considerar que não conseguiu prever que irá nevar no Inverno que começou hoje mesmo.
Mas, por outro lado, a Infraestruturas de Portugal não podia jamais alegar um atraso nos procedimentos para dar início a um concurso público, porque a norma impede o ajuste directo se as circunstâncias invocadas forem “imputáveis à entidade adjudicante”. Além disso, mesmo que houvesse mesmo uma circunstância imprevisível – por exemplo, começar a nevar em Novembro, enquanto estava ainda a decorrer um concurso público para serviços a iniciar em Janeiro –, a Infraestruturas de Portugal só deveria apenas fazer um ajuste directo para os meses de Novembro e Dezembro – ou seja, “na medida do estritamente necessário –, mantendo os trâmites para a conclusão do concurso público.
Apesar de tudo isto, fonte oficial da Infraestruturas de Portugal não vê nada de anormal no ajuste directo deste ano por “urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante”, ou seja, por nevar na Serra da Estrela neste Inverno que se inicia agora. “Em situações de caráter excecional e transitório, o recurso a este regime é considerado como a opção mais ajustada, aplicando os procedimentos contratuais adequados a cada situação, sempre no respeito pelas regras do CCP [Código dos Contratos Públicos], não existindo qualquer prevalência da modalidade do ajuste direto, tendo já sido celebrados contratos com diversas empresas”, disse fonte oficial da empresa pública ao PÁGINA UM.
E acrescenta ainda que, ao longo dos anos, “os contratos celebrados com a mencionada empresa Multitrab decorreram, assim, quase exclusivamente de procedimentos por concurso público”, e que o recurso à modalidade do ajuste directo alegando “urgência imperiosa”, ocorreu apenas “a título excecional no presente ano”, não explicando, contudo, os motivos.
O Centro de Limpeza de Neve da Infraestruturas actua no Maciço Central da Serra da Estrela, garantindo a segurança dos utentes das vias e de todos os turistas, contando com diversos equipamentos de desobstrução, entre os quais nove limpa-neves.