Sociedade de advogados 'saca' ajustes directos de 22,3 milhões de euros desde 2018, por incompetência dos outros

À conta do BES, Banco de Portugal mete sucessivas ‘prendas no sapatinho’ da Vieira de Almeida

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Na semana passada saiu mais uma ‘prenda’ para a sociedade de advogados Vieira de Almeida: um ajuste directo, entregue de mão-beijada pelo Banco de Portugal, para ainda tratar da resolução do BES. Sobretudo a partir de 2018, a conta desta sociedade de advogados tem aumentado, com mais seis contratos a ultrapassarem os 22 milhões de euros, sempre sem concorrência, porque o regulador liderado por Mário Centeno alega que não há mais ninguém capaz de fazer o mesmo (ou melhor). Mas os contratos e as peças procedimentais nem sequer explicitam em concreto o objecto dos sucessivos ajustes directos. O Banco de Portugal disse ao PÁGINA UM que a manutenção da Vieira de Almeida se justifica por “interesse público”e que a aplicação das regras deontológicas e eventuais conflitos de interesses, “atento o tipo de litigância em causa, reduz em termos muitíssimo substanciais o universo de possíveis adjudicatários.” Mas não apresenta provas de que esses critérios levem à completa ausência de concorrência, o que pode implicar a ilegitimidade na invocação da norma para afastar concorrentes.


Não há 12 sem 13. A sociedade de advogados Vieira de Almeida garantiu na semana passada o 13º ajuste directo do Banco de Portugal desde 2011, desta vez no valor de 4,6 milhões de euros, IVA incluído, mas as receitas tem estado a aumentar de forma espantosa desde há cinco anos.

De acordo com o Portal Base, os contratos de mão-beijada entre a instituição liderada por Mário Centeno e esta conhecida sociedade de advogados tem ganhado contornos de grande intimidade desde 2018, não tanto pelo número de contratos mas pelos elevados montantes envolvidos sem que haja qualquer concorrência. Com efeito, se o número de contratos entre 2011 e 2017 até são superiores ao do período a partir de 2018 (sete vs. seis), as verbas envolvidas passaram a atingir verbas astronómicas para simples aquisição de serviços que, em abono da verdade, constitui trabalho intelectual sob a forma de trabalho jurídico.

Mário Centeno, governador do Banco de Portugal.

Somando os sete contratos entre 2011 e 2017 (sete anos), a Vieira de Almeida facturou ao Banco de Portugal um total de 7,38 milhões de euros (IVA incluído), enquanto os contratos a partir de 2018 (seis anos) já ascendem aos 22,33 milhões de euros (IVA incluído). De entre os contratos a partir de 2018 destacam-se cinco contratos de valor (sem IVA) igual ou superior a 2,5 milhões de euros: o primeiro assinado em Junho de 2018 (4,85 milhões de euros), o segundo em Fevereiro de 2020 (quase 4,37 milhões de euros), o terceiro em Novembro do mesmo ano (2,5 milhões de euros), o quarto e o quinto em Outubro e Dezembro de 2023, respectivamente de 1,8 milhões e 3,75 milhões de euros.

A divisão dos contratos de mão-beijada entregues pelo Banco de Portugal antes e depois de 2017 não se deve apenas à diferença de montantes. Também o alegado fundamento para o ajuste directo se alterou. Antes de 2017, o Banco de Portugal justificou a não abertura de concurso público e a adjudicação directa à Vieira de Almeida invocando uma excepção no Código dos Contratos Públicos em que, com jeitinho, cabe tudo.

Com efeito, no artigo invocado refere-se que se pode escolher o ajuste directo se “a natureza das respectivas prestações, nomeadamente as inerentes a serviços de natureza intelectual ou a serviços financeiros indicados na categoria 6 do anexo II-A da Directiva n.º 2004/18/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março, não permita a elaboração de especificações contratuais suficientemente precisas para que sejam qualitativamente definidos atributos das propostas necessários à fixação de um critério de adjudicação nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 74.º, e desde que a definição quantitativa, no âmbito de um procedimento de concurso, de outros atributos das propostas seja desadequada a essa fixação tendo em conta os objectivos da aquisição pretendida”.

Sociedade Vieira de Almeida tem ‘coleccionado’ ajustes directos com o Banco de Portugal sem o incómodo da concorrência.

Portanto, quando não se quer lançar um concurso público em aquisição de serviços, esta norma mais do que vaga serve a contento. Mas com o aumento dos montantes, com contratos acima de 2,5 milhões ou até acima de 4 milhões de euros, o Banco de Portugal terá achado ser abusivo manter a mesma desculpa. E arranjou outra, que tem o condão de ser ainda pior, porque, enquanto entrega de mão-beijada milhões à Vieira de Almeida, passa um autêntico atestado de incompetência à generalidade das outras sociedades de advogados, e a todos os advogados em geral.

De facto, em todos os seis últimos contratos entre estas duas entidades invoca-se a norma que possibilita uma excepção ao concurso público (ou a outros procedimentos em que há concorrência) se “o objeto do contrato só possam ser confiadas a determinada entidade” no caso concreto em que “não exista concorrência por motivos técnicos”. Ou seja, o ajuste directo justificar-se-á por mais nenhuma sociedade de advogados nem outro qualquer advogado em Portugal (ou no estrangeiro) se mostram capazes de fazer o trabalho da Vieira de Almeida para o Banco Portugal.

Não se consegue saber como o Banco de Portugal conseguiu saber isso, porque jamais houve sequer um concurso público anterior ou sequer uma consulta prévia, nem tão-pouco se conhecem declarações públicas de outras sociedades de advogados a proclamarem ser incapazes de fazer aquilo que a Vieira de Almeida faz sobre os assuntos jurídicos a prestar.

Ricardo Salgado e o antigo BES continuam a custar dinheiro aos contribuintes portugueses. Resolução do banco tem sido um maná para a Vieira de Almeida.

Até porque, na verdade, através dos contratos, e algumas peças procedimentais, constantes no Portal Base nem sequer se descortina quais são os serviços jurídicos em concreto que a Vieira de Almeida prestou ou vai prestar ao Banco de Portugal. Por exemplo, no mais recente ajuste directo, o contrato assinado no passado dia 18, diz apenas que, no objecto do contrato, com um prazo de três anos, que “o segundo outorgante [Vieira de Almeida] obriga-se perante o primeiro outorgante [Banco de Portugal],a prestar serviços de assessoria jurídica e de patrocínio judiciário, nos termos e condições definidos nos cadernos de encargos e na proposta adjudicada, que constituem, respectivamente, os anexos I e II do presente contrato, e que dele fazem parte integrante”.

Mas nas peças do procedimento no Portal Base não consta nada da proposta adjudicada, enquanto o caderno de encargos é completamente omisso em detalhes sobre os serviços a desempenhar nem sequer estipula preços por hora. Mais opaco seria difícil.

O contrato assinado em Outubro passado também sofre de similar falta de transparência, mas com a agravante de ter uma cláusula de retroactividade. Ou seja, a Vieira de Almeida começou a trabalhar primeiro antes de facturar. Tudo facilitismos com dinheiros públicos. Aliás, este contrato de Outubro de 2023 – que terá terminado em Novembro – previa a possibilidade de renovações até dois anos. Mas o Banco de Portugal terá optado por fazer outro contrato por mais três anos.

Banco de Portugal invoca falta de concorrência e invoca “interesse público” para ajustes directos com a Vieira de Almeida. Nunca explicou como surgiu a ideia de escolher esta sociedade de advogados no primeiro contrato nem prova que efectivamente há ausência de concorrência, porque todos os contratos foram celebrados por ajuste directo.

Contactado pelo PÁGINA UM, o Banco de Portugal diz que “os elementos publicitados no Portal Base correspondem ao que é legalmente exigido e, bem assim, ao que decorre das regras e dos termos de funcionamento desse Portal”. Convém referir que tal não corresponde à verdade, patente no próprio articulado do contrato onde se salienta que, por exemplo, a proposta de adjudicação faz parte integrante do contrato. Ao optar deliberadamente por omitir a proposta de adjudicação – único elemento que detalhará os serviços a prestar –, o Banco de Portugal estará a colocar um contrato “mutilado” no Portal Base.

Apesar disso, o departamento da instituição liderada por Mário Centeno diz que “observa escrupulosamente, no âmbito dos procedimentos aquisitivos impostos pela prossecução das suas atribuições, o disposto nas normas legais aplicáveis e, em particular, no Código dos Contratos Públicos”, incluindo-se a “contratação de serviços jurídicos, em várias vertentes (especialmente, no que concerne ao apoio à representação do Banco de Portugal em juízo, em Portugal e noutras jurisdições).

A mesma fonte do Banco de Portugal acrescenta ainda que na escolha do tipo de procedimento, se “tem em consideração o disposto no CCP [Código dos Contratos Públicos] e a jurisprudência nacional e europeia nomeadamente no que respeita aos princípios e requisitos de legalidade aplicáveis”, defendendo que “o ajuste direto é um tipo de procedimento aquisitivo que encontra previsão normativa no nosso ordenamento jurídico, quer por via do critério do valor, permitindo celebrar contratos até ao limite previsto (…), quer por via de critérios materiais, como sucede no caso vertente, permitindo celebrar contratos de qualquer valor quando se verificam circunstâncias materialmente relevantes que justificam o afastamento da concorrência”.

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Só a partir do ponto 3 dos seus esclarecimentos enviados ao PÁGINA UM, o Banco de Portugal acaba por revelar que tipo de serviços a Vieira de Almeida tem estado a desenvolver para obter tantos ajustes directos nos últimos anos, apesar de nada constar nos elementos disponibilizados no Portal Base,

“Trata-se, fundamentalmente, de assegurar a continuação da prestação de serviços de representação do Banco de Portugal em juízo”, diz o departamento de comunicação do regulador bancário e financeiro, salientando que “estão em causa processos judiciais associados à resolução de uma instituição bancária [que mais adiante identifica como sendo o BES], com a inerente excecionalidade e imprevisibilidade, e que, como é sabido, se prolongam por um extenso período de tempo”, e que “a prossecução do interesse público postula, nestes casos, a manutenção dos serviços de representação em juízo por quem tem o domínio dos concretos processos e tem assegurado a sua condução até ao momento”.

Saliente-se, contudo, que nada existe em concreto na lei, e muito menos no Código dos Contratos Públicos, que postule esta alegação do Banco de Portugal, excepto se estiver em causa a continuação de serviços ou empreitadas que tenham sido alvo de anterior concurso público. Ora, o Banco de Portugal nunca fez um concurso público para a escolha de sociedade de advogados que o assessoraria na resolução do BES. Além disso, o Banco de Portugal – repita-se – alega sistematicamente a ausência de concorrentes por motivos técnicos, e não por um não provado “interesse público”.

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Com ‘jeitinho’, o princípio da concorrência prevista no Código dos Contratos Públicos pode sempre transformar-se em sistemáticos ajustes directos, escolhendo adjudicatários a dedo, e abrindo a porta a eventuais actos de má gestão de dinheiros públicos e até à corrupção. Basta que o Tribunal de Contas tape os olhos a invocações sem fundamento ou a alegações infundadas.

Mas sobre a questão de ausência de concorrência para justificar a contínua contratação da Vieira de Almeida, o Banco de Portugal dá também uma justificação sui generis, sabendo-se que existem centenas e centenas de sociedades de advogados em Portugal. “Ao mesmo tempo, a prossecução do interesse público e as próprias regras deontológicas de exercício de advocacia exigem que se assegure a inexistência de conflitos de interesses, o que, atento o tipo de litigância em causa, reduz em termos muitíssimo substanciais o universo de possíveis adjudicatários”.

De facto, a ser isto verdade, a redução “em termos muitíssimo substanciais [d]o universo de possíveis adjudicatários” a apenas um [a sociedade Vieira de Almeida] só poderia ser confirmada, salvo melhor opinião, através de concurso público, algo que o Banco de Portugal nunca quis fazer.

O Banco de Portugal diz também que, mesmo se a fundamentação feita através de critérios materiais aparenta ser falaciosa (e eventualmente ilegal), não se aplica os limites impostos para sucessivos contratos à mesma entidade.


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