Recensão: Salazar Confidencial

A cunha como instituição

por Pedro Almeida Vieira // Dezembro 26, 2023


Categoria: Cultura

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Título

Salazar confidencial

Autor

MARCO ALVES

Editora (Edição)

Ideias de Ler (Maio de 2023)

Cotação

16/20

Recensão

Os documentos históricos têm uma enorme virtude para os investigadores, em comparação com a actualidade (objecto dos jornalistas): enquanto na actualidade, o poder tende a esconder e a manipular, depois da sua 'queda', tudo aquilo que se fixou no crivo obscurantista e manipulatório, e se não foi destruído, passa a ser matéria útil para caracterizar o passado. À posteriori, é certo.

Por isto, fazer História, aparentando ser mais fácil porque baseado em documentos, nem assim revela(rá) toda a verdade. Por exemplo, daqui a uns anos podemos continuar sem saber se o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa fez ou não a ‘ponte’ – leia-se, cunha – entre o seu filho, o doutor Nuno, e o Ministério da Saúde para se usar um medicamento de dois milhões de euros em gémeas luso-brasileiras. Ora porque se destruíram provas que confirmariam para a posteridade quer porque se manipularam provas para desmentir a realidade.

O mesmo se aplicará, por exemplo, à pandemia da covid-19, que curiosamente foi um tema muito abordado por Marco Alves, autor deste Salazar confidencial. Enquanto como investigador andava ele na Torre do Tombo a ler os calhamaços que a queda do Estado Novo lhe (nos) deixou, zurzia em simultâneo, como jornalista, naqueles que procuravam obter informação, questionar o Poder e propor medidas racionais de gestão da Saúde Pública. 

Esqueceu Marco Alves, neste período, que apesar de serem tarefas muito distintas, tanto jornalistas como historiadores ‘amassam’ a mesma farinha – os factos –, apenas em períodos diferentes, mas onde 'cohabitam' duas características essenciais: a curiosidade e a desconfiança, que os obrigaria a conferir supostos factos, questionando a sua veracidade. Aliás, a História tem mostrado que os 'factos' na actualidade podem ser bem diferentes dos 'factos' na realidade, por causa da influência do Poder.

Mas esqueçamos as 'obras' do jornalista Marco Alves, repórter da revista Sábado, que, disparatando, disparava a palavra 'chalupa' a qualquer um que questionasse a 'narrativa oficial', como o cão de Pavlov salivava a cada pedaço de carne, e dediquemo-nos ao seu objecto de interesse histórico, que deu neste livro: as cunhas no Estado Novo, tendo como óbvia figura central António de Oliveira Salazar. E podemos já adiantar que se saiu ele muitíssimo melhor como historiador do Estado Novo do que como jornalista da pandemia, o que convenhamos não seria difícil perante a fraca figura que nos ofereceu entre artigos e comentários nas redes sociais durante os dois primeiros anos da crise sanitária em 2021 e 2022. A História o julgará; não propriamente a ele, mas ao jornalismo.

Passemos à frente.

A figura de Salazar, como ditador é, convenhamos apetecível para qualquer historiador por várias razões, mas nem tanto por ter estado no poder tanto tempo: 36 anos. Se formos por aí, houve portugueses no poder com maior duração e com um domínio ainda mais absoluto: os reis D. João I (48 anos), D. Afonso Henriques (46 anos), D. Dinis (43 anos), D. João V (43 anos), Afonso V (42 anos) e D. Maria I (39 anos, embora grande parte dos quais sob regência do filho D. João VI). Mas naquelas épocas não se escrevia tanto, não se expunha tanto, e destruía-se muito mais. 

Por isso, Salazar é um ‘objecto’ histórico apetecível sobretudo por ser um governante que, além de ser ditador 'contemporâneo', “recebia, aliás, correspondência sobre todos os assuntos, o que só era possível numa sociedade fortemente reverencial, hierarquizada e pequena, onde o presidente do Conselho ocupava o lugar cimeiro, incontestado, temido e ao mesmo tempo próximo e paternal”, como bem salienta Marco Alves (pg. 59).

Ora, é exactamente por isso – por haver extensíssima correspondência, nunca destruída – que Marco Silva, tal como outros jornalistas e investigadores, possuem hoje matéria-prima riquíssima para contar detalhes mais ou menos picarescos sobre uma das principais ‘instituições’ lusitanas, que está longe de ser um exclusivo do salazarismo (antes fosse): a cunha, que inclui favorecimentos e outras ajudas por quem está no centro do poder, e que é tanto mais intenso quanto mais afastado nos encontramos da democracia (plena).

Usando assim o ‘espólio’ de 2.466 processos individuais, onde se destacavam cartas, relatórios, currículos e fotografias, Marco Alves relata profusamente casos singulares que, se cometidos hoje (e revelados) dariam pena de prisão, onde se salientam episódios de peculato de uso, de pequenas ofertas (que poderiam ser agora classificadas de corrupção), de casos de infidelidade, de ‘jobs for the boys’, de favorecimentos, de veneração para obtenção de favores, etc., etc., etc..

Ao longo das páginas, os casos são muitos, talvez demasiados – e se o objectivo principal era mostrar um Salazar ao estilo de um frei Tomás (‘bem prega frei Tomás, olha para o que ele diz, não olhes para o que ele faz’), Marco Alves mais do que nos convence; comprova. Desde logo na introdução, quando refere que cerca de seis mil pessoas escreveram ao governante desde que entrou em funções públicas, como ministro das Finanças em 1928, até à queda da cadeira em 1968.

O livro de Marco Alves, como documento – e elogia-se o seu trabalho de investigação, bem protegido nas ‘catacumbas’ da Torre do Tombo durante os dois primeiros anos da pandemia – está mais próximo de um estilo de História, até pelos detalhes das transcrições das cartas e pelos pormenores cronológicos, com datas e horas precisas.

Pessoalmente, talvez preferisse – e porventura teria ele mais leitores – que Marco Alves tivesse optado por uma selecção de casos exemplares, e os usasse como crónicas. Há ali uma boa trintena de casos apetecíveis que, em cada um, daria até para outros tantos romances. E haverá, como já houve muitos sobre uma personagem histórica muito similar a Salazar: o marquês de Pombal.

Em suma, Marco Alves deveria dedicar-se mais à investigação histórica, e menos a assuntos de Ciência (que mostrou nunca saber dominar), até porque sobre assuntos do passado (ou seja, em temas não actuais) ele até demonstra capacidade de isenção, de rigor e de honestidade. Neste Salazar confidencial não se vislumbra, como deve sempre fazer um historiador (e um jornalista), qualquer tipo de 'ideologite', e por isso esta obra consegue apresentar-nos a figura de Salazar como era perante o povo e como este (infelizmente, diremos agora) então o via: "seu dono e senhor, como uma figura tutelar, acima dos outros, que tanto podia ser um pai, um chefe, um mestre, ou o próprio Deus".

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