Sentada numa cadeira de assento puído e desengonçada, baixou-se para apanhar uma pastilha cerâmica (rosa) que se soltava do chão, no meio da ausência já de muitas outras, como um charco de ruína que alastrava naquele fundo da sala do café Les Deux Moulin, encostada à passagem para a casa-de-banho onde Jeunet ilustrou um dos seus famosos e gritantes orgasmos.
Recordação, pensou, leva com ela e guarda como tesouro incógnito para os descendentes reencontrarem e ficarem desconcertados. A versão em película estava mais envernizada, aromatizada de canela, lustrosa, mas nesta versão pode arrancar bocado como quem descarna a crosta da ferida para levar com ela.
São pequenos gestos, de criança, que repara que tudo termina. Pequenos gestos, como quando se vive um tempo apressado e estouvado em que todos os dias se roça os nós dos dedos em muros ásperos e se carrega a pele esfolada, a lembrar que as arestas nos rompem a carne quando a alma quer esvoaçar demasiado rápido (azul). Não há tempo para tantas referências a mapear o caminho, recordações de encher os bolsos, paus e pedras, folhas secas de árvore que se colhem no caminho e que povoam a casa. As pedrinhas mais brancas, mais polidas. As rochas mais brilhantes com cristais de quartzo.
– Mãe, ensinas a desenhar uma bola de Kémon?
– Uma bola de “cámone”?
– Sim!
– Se desaguarmos de novo na estação de São Bento, e a usares, vais apanhá-los a todos?
Mantos verdes a atapetar o caminho das ruas e, no entanto, “não pise a relva” para atalhar a viagem; mas, se no destino encontrarmos bivalves abandonados na praia do mar de Inverno, lá vão eles para a caixa de recordações (azul) em que os objectos absurdos, perdidos, abandonados, quebrados e esquecidos, se guardam para cristalizar memórias de cada ano. 1989. 1998. 2004. 2019. Canhoto de concerto, de comboio, de cinema. Cartão desbotado.
Será que alguma vez pudemos realmente partilhar uma discórdia sem trincheiras? Parece que já foi há tanto tempo. 2020. 2021. 2022. 2023.
O que é a covid?, o que é a vacina?, o que é a Ucrânia?, o que é uma mulher?, o que é Gaza?
Objectos absurdos, perdidos, abandonados, quebrados, esquecidos…
Somos o que comemos; e quando ela se baixou para apanhar o chão desfeito, raspou a mão ao de leve em reboco areado, o suficiente para romper a pele. E será que, na verdade, somos uma rabanada, um pão frito, um leite com casca de limão, um ovo batido? Somos o que comemos; e mesas fartas junto a mesas vazias, paredes não divisórias se encostarmos os ouvidos ao reboco (areado), o suficiente para romper (a pele), e ouvir que na casa ao lado se pode falar outra língua e sorver o caldo com colheres diferentes.
Somos como comemos; e quem se sente (sente) no chão endireita a coluna de maneira diferente da nossa, se sentarmos na cadeira quem se alimenta de cócoras, corremos o risco de entortar a pessoa. Então fazemos o farrapo velho e honramos os ascendentes. Digo farrapo porque roupa pode trazer o cheiro de cedro do armário e naftalina esquecida nos cantos do fundo. Já nem as traças nos comem as roupas, deram uma trinca em poliéster e acrílico, e partiram com indigestão para outras paragens mais doces.
Sacos de excesso e seres humanos a alastrar em cadeiras puídas e desengonçadas. Discussões com boca cheia ou silêncios compungidos, comendo pecados, oleando beiços. Rega com vinho, vamos falar de política? Qual delas?
Um pateta de barba rala e cinzenta, tão mais pateta como os patetas que o clamam como mal menor. Chefe, mas pouco. Larápio, mas pouco. Chão desfeito em pastilhas cerâmicas (rosa).
Um sorriso de sapo com esgar de alface (fora de época), tão mais sapo e verruguento como quem o clama como mal necessário. Os truques do costume na embalagem, boas contas, porte de patriarca (laranja), mais cómico só se entrar de braço dado na missa do galo com madeixas lisas e baças (azul), papagaios a saltitar em busca de poleiro presos por corrente curta nos tornozelos.
Ui, ui, ui, mas o bicho papão que papava bola no pequeno ecrã, para entrar na sala de estar da vizinhança e alapar-se no sofá com alarvidades, durante anos, no quentinho a debitar, pôs-se em bicos de pés e foi trepando um degrau de cada vez e agora ui, ui, ui, melhor é ser saneado na entrada. De certeza que patetas e sapos não usam o bicho papão para mandar dormir as criancinhas. De certeza que o bicho papão é diferente. Ou de certeza que o bicho papão é real.
Mas como ela se baixou para apanhar do chão desfeito e guardou na caixinha das recordações, eu sei e lembro de pequenos cubos de memória, como quem sugeriu confinamento especial e agravado a ciganos, como quem defendeu mais dinheiro português enviado para leste. Pequenos cubos. Coisa pouca. De certeza que é real, de certeza que é diferente. Coisa pouca.
Sobram os sacos de excesso (de gatos), da minha esquerda que fica à direita de alguém, saudosa Odete, que gargalhada darias tu à bola de bilhar que faz tabela em tacadas, o povo, unido. E ainda as gémeas de Kubrik, a dar ao pedalinho com os joelhos para fora para caberem no triciclo, devagarinho lá chegarão, mordazes, ferozes, com a probabilidade genética de ambas não possuírem sentido de orientação nem encontrarem o norte que lhes permitiria defender o próprio sexo, em vez de sucumbirem à treta ideológica de fábulas mágicas com sabor a alcaçuz de panteras cor-de-rosa.
Ui, ui, ui que consolo de humor é ver os animaizinhos a rabear cheios de fome, e o pastorinho já a descamisar para o primeiro mergulho do ano, a ver se esquece a vergonha, tronco nu e aberto, que isto de fazer simpatias e favores é coisa pouca, de certeza que é real, de certeza que é diferente. Coisa pouca.
Abram as portas, depois vê-se, vai tudo ficar bem. Baixem-se para apanhar do chão desfeito, que entre cerâmica de recordação e bivalves, com jeitinho conseguimos construir um muro de retalhos que mantenha o lobo à porta e nos preserve os aromas de canela enlatados em casa.
Pudim.
E o serviço da Vista Alegre a banhar-se na torneira na sua saída anual.
Fruto da época, cada um de nós terá de falar sempre do que a árvore apresenta. Será demasiado enfado debruçar-nos no tronco ou na raiz, porque áspero e rompe a pele dos nós dos dedos. E mais a mais, que importará afinal falar de cascas? Se nada mais rompe que as nossas mãos, ninguém quer comer conservas de há muitos anos que isto avinagra e nem todos têm cascos de carvalho para embrulhar a pinga.
Fruta da época, comam laranjas. Tangerinas, dióspiros, se ainda os houver por aí e talvez um kiwi, que as constipações voltaram a existir e disse-me a minha mãe que Deus pôs uma farmácia para nós nas florestas.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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